“Ser anfitrião das belas letras.”
Com esta legenda, o presente Blog pretende abrir espaço para os talentos da literatura (com ênfase na fluminense). Tal sítio é reservado ao fomento e divulgação da boa poesia, da crônica, do conto, da crítica e, também, da vivência em meio às Instituições acadêmico-literárias. Preservar a memória dessa literatura, promover o trabalho de autores cujas obras já se encontram consolidadas e apoiar as promessas que ingressam na senda literária é o nosso papel.
Aos 100 anos e cheio de histórias, mais antigo jornalista do país continua ativo
Luís Pimentel: carrega sempre uma máquina fotográfica no bolso
Guito Moreto / O Globo
RIO - Luís Antônio Pimentel se considera um sujeito de sorte. Sobreviveu a uma malária e uma febre amarela. Estava no Japão durante a Segunda Guerra Mundial, mas conseguiu sair do país antes que a bomba atômica fosse lançada. Circulou entre a nata da intelectualidade e da classe artística por várias décadas, incluindo Cecília Meirelles, Carmem Miranda, Barão de Itararé, Graciliano Ramos e Monteiro Lobato. Escreveu livros, músicas, poesias e, como jornalista, cobriu os eventos mais marcantes da História do Brasil. Colecionou romances com belas mulheres. Aos 74 anos, pôde, finalmente, viver seu grande amor, que conhecera 40 anos antes e com quem foi morar aos 96. Hoje, aos 100 anos, completados em março, seu fôlego parece não ter fim: vai a todas as festas em homenagem ao seu centenário, numa intensa agenda em Niterói, sua cidade do coração. Estão em cartaz duas exposições sobre sua vida e uma adaptação para o teatro de uma novela que escreveu em 1944, além do lançamento de uma antologia de seus textos em prosa e verso, "O amor segundo Luís Antônio Pimentel" (Editora Nitpress).
Não será preciso esperar tanto a ponto de se esquecer na espera: Café pingado, mais novo livro de Wanderlino Teixeira Leite Netto, será lançado em junho próximo.
Enquanto aguardamos para bebericar em sua poesia, que tal um pouco da prosa do autor?
Mudavam-se à revelia. Por vontade
própria, Aurélio e Mercedes permaneceriam no velho apartamento. Mas, aos
oitenta, os desejos trocam de dono. Os filhos haviam decidido tê-los por perto,
assim seria. Impotentes, presenciam a profanação de seus guardados. Os filhos,
o genro, a nora, os netos, remexem armários e gavetas. Urge selecionar o que os
homens da transportadora irão embalar e eles não tardam.
Mercedes vê os sacos de retalhos dos
mais variados tecidos serem postos de lado. Aurélio não entende o descarte dos
papéis de embrulhar pão, dos pedaços de barbante, das bulas, das caixas e dos
vidros de remédios vazios. Afinal, estavam todos meticulosamente arrumados...
Miçangas e paetês espalham-se pelo chão, assim como
pedaços de isopor, purpurina, velas de aniversários e enfeites de Natal.
Do bojo
de um armário, saem sapatos fora de moda, bolsas dos mais diferentes feitios e
tamanhos, alguns chapéus, todos vetados por uma comissão de netos.
Enquanto
o genro amontoa junto à lixeira jornais amarelecidos, a filha descarta bibelôs.
Os álbuns de retratos sofrem verdadeira pilhagem, cada um abocanha um naco do
passado. Quando chega o pessoal da transportadora, tudo está definido.
Aurélio e Mercedes entreolham-se. A
cumplicidade de mais de meio século é suficiente para indicar-lhes o que fazer.
De uma pasta de couro, já um tanto desbotada, retiram os documentos. Com
tesouras de ponta fina, em silêncio, picotam as cédulas de identidade.
(NETTO, Wanderlino Teixeira Leite. Laços de afeto. In: Retrato sem
moldura. Niterói: Clube de Literatura Cromos, 1999).
Acredito. Vai atravessar o século
em cima de suas fortes pernas de filho de camponeses. Rijo e narigudo. Aos
poucos, o tempo foi fazendo dele uma ilha cercada de mil epigramas e de
sessenta mil livros. Falou mal de todo mundo e todo mundo falou mal dele. Com
uma desvantagem para Grieco: falou sempre bem mal dos outros. Sempre desancou
os adversários em excelente estilo, no mais alegre e guisado estilo que alguém
já inventou para dizer mal de alguém neste país. Agora, na sua casa do Méier,
quase na marca dos oitenta anos, o velho diabo escreve, em chinelas, suas
memórias, páginas e páginas em que a vida tem um encontro com um dos homens
mais faiscantes do Brasil. São cinquenta primaveras de convivências com ideias,
homens, acontecimentos e paisagens. E todo esse mundo é passado a limpo numa
antiga máquina de escrever, espécie de mamute de parafusos e letras, mais velha
do que as próprias memórias que datilografa. Lá está ela, cansada de guerra,
sobre a mesa desarrumada de Agrippino, numa sala quieta de uma tarde de abril.
Não é propriamente uma máquina. É um serpentário. Desse piano de dizer
desaforos, que Grieco toca com um dedo só, têm saído os mais alegres ditos
deste Brasil, as melhores caricaturas em palavras já feitas por mãos nacionais.
A conversa do velho diabo tem feitio de festa italiana – bandolins,
estandartes, flores, bandeiras com as cores dos pavões e piruetas de clown. As mãos de Grieco também falam.
Seu nariz, como uma virgula enorme, marca a pontuação. Começa o show.
(...)
Caricatura de Agrippino Grieco no traço de Theo.
Ironia a domicílio
Não poupa ninguém. Nem amigos nem
parentes. Nem ele mesmo. Ao espelho, ao fazer a barba, certamente dirá coisas
de Grieco. Conta Donatello, seu filho e belo escritor abafado pelos veludos da
diplomacia:
– Em casa, sempre fomos mais ou
menos farpeados pelo velho. Depois que meu mano Francisco de Assis e eu fizemos
concurso para o Itamarati, Grieco deitou frase dizendo que “no Brasil quem não
dá para nada vai ser funcionário público, e quem não dá nem para isso vai ser
diplomata”.
A frase correu mundo. É
antológica.
Elogio da traça
Agrippino avança o nariz sobre a
parede para mostrar um sujeito também narigudo, escritor do seu agrado e do seu
convívio permanente: Eça de Queirós. Há ainda outras recordações que a vida
dependurou na sala de Agrippino, desde quadros do seu cunhado Guttman Bicho a
aquarelas compradas ao acaso de suas navegações pelo mundo, em Paris ou em
Roma, em Belém do Pará ou no Largo do Rossio. Vou caminhando por entre os muros
de livros de Grieco, os seus famosos 60 mil volumes. O Brasil, de cabo a rabo, está
nesta montanha de papel e tinta, encadernado e naftalizado. Falo das traças,
Grieco abre os braços para elogiar essas inimigas do papel:
– Não há uma Sociedade Protetora das Traças,
com planos de produção intensiva. É uma necessidade nacional, como o petróleo.
Nisso o velho diabo do Méier está
redondamente enganado. Traça que se preza não rói livro ruim. É o que garante o
romancista Herberto Sales. E eu com ele.
(...)
Os 4 grandes
Indago:
– Quais as suas grandes admirações
brasileiras de todos os tempos?
A resposta vem fácil:
– Castro Alves, José de Alencar,
Euclides da Cunha e Machado de Assis.
Não empresta livros. E tem um medão
danado de cachorros, embora tenha apregoado, em boa prosa, as virtudes deles. Não
aprecia verduras. É inimigo pessoal dos agriões e das alfaces. Detesta o vento
e o trovão. E crê, sem fanatismo, em coisa do além. Não que tenha visto algum
fantasma, mas por não poder explicar certos acontecimentos. E, pelas dúvidas, mantém
em seu quintal um bem regado e mimado pé de arruda. Não é verdura. É pé de coelho.
Capa de um exemplar de Os vivos e mortos de Grieco, primeira edição, 1931. Acervo da biblioteca pessoal de Roberto Kahlmeyer-Mertens
Brincadeira de morrer
Não sei por que o nome de Manuel
Bandeira entrou na conversa do Méier. Agrippino manda brasa: – Há mais de cinquenta
anos que Bandeira diz, em prosa e verso, que vai morrer. E não cumpriu a
palavra...
Em verdade, Grieco não quer, nem
de longe, a morte de Bandeira. Nem de Bandeira nem de poeta nenhum, mesmo
desses que rimam sabão com limão.
(...)
Ex-libris de Agrippino Grieco
O diabo de calças curtas
Agrippino Grieco, fluminense de
1888, quase um século de bem ler e melhor escrever. Tem espalhado talento em
tudo que escreve, em páginas definitivas, ou no fogo de artifício de seus
inigualáveis epigramas. No fundo, não quer mal a ninguém. Continua sendo o
mesmo menino da Rua Lava-Pés, o pegador de passarinhos dos campos de Paraíba do
Sul. O menino que ainda agora tantos anos passados e repassados, escuta as
noites sossegadas do Méier um rumor de águas antigas. É o rio de sua infância
que está cantando.
(CARVALHO, José Cândido.
Agrippino Grieco – O Diabo manda lembranças. In: Ninguém mata o arco-íris. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1972. p. 3-8).
Concedida ao escritor e acadêmico
Carlos Rosa Moreira, a presente entrevista do literato Affonso Romano de Sant’Anna
foi originalmente publicada no Literato – O Jornal das Letras de Niterói. Tendo cumprido seu papel de figurar
impresso naquele veículo, o texto de entrevista é gentilmente cedido por Carlos
Rosa para divulgação virtual no Literatura-Vivência.
Ler um trabalho como este não é
um excelente modo de começar a semana?!
“Tudo me inspira: sobretudo o nada” entrevista de Affonso Romano de Sant'Anna concedida a Carlos Rosa Moreira.
O mineiro Affonso Romano de Sant’Anna ensaista cronista, jornalista, professor e um dos maiores poetas da lingua portuguesa. De forma gentil, concedeu ao Literato (Jornal de Letras de Niterói) a entrevista que se segue. Nestes tempos em que tudo é “arte” desde rabiscos em muros a frases mal articuladas e berradas, seguidas por batidas ou marteladas, levantam-se a voz pausada e os persamentos cristalinos de ARS apontando caminhos em direção à verdadeira arte, jogando luz de uma crítica não agressiva, mais incisive sobre questões importantes de nossa cultura. Para mim, ouvi-lo é alimento. Apenas temo que sua voz seja das últimas, tornando-o quase um transgressor.
Carlos Rosa Moreira: Durante seis anos você dirigu a Bibiblioteca Nacional e fez, entre outros, aquele projeto admirável de criação e increment de bibliotecas por todo o Brasil.Se fosse agora, que projeto gostaria de fazer?
Affonso Romano de Sant'Anna: No livro Ler o mundo (Ed.Global) fiz uma síntese dos projetos realizados. Falar do que falta seria escrever outro livro.
CRM: De que sente falta na Literatura Nacional?
ARS: De críticos (não jornalistas, que façam reportagens). Que os cadernos culturais abram espaço para os brasileiros, que não sejamos meros importadores de best sellers estangeiros.
CRM: Pelo que se vê no atual meio cultural brasileiro, você é um transgressor?
ARS: A palavra “transgressor”, que entrou na moda, já me cansou. Já é possivel fazer um Museu da Transgressão.
CRM: É possivel ser escritor sem se export?
ARS: O escritor se expõe, queira ou não.
CRM: Qual a responsabilidade de um intelectual em seu meio?
ARS: Cada um sabe de si. Eu sou uma pessoa doente de história e do presente.
CRM: Duchamp se tivesse nascido no Brasil, faria aquele sucesso todo?
ARS: Nem pensar. Ele deu o golpe certo, percebeu que tinha que ir para os EUA terra do kitsch e da novidade
(Nota: Leiam O enigma vazio e Desconstruir Duchamp, livros nos quais ARS analisa Marcel Duchamp, o homem que influenciou a arte do sec.XX ).
CRM: Se estivesse na mesma situação do “Gil”personagem interpretado por Owen Wilson no “Meia noite em Paris”do Wood Allen, com que turma de escritores gostaria de encontrar?
ARS: Em geral, os escritores mitológicos são uma decepção na intimidade, preferia continuar a lê-los, apenas.
CRM: O que gostaria de reler, pelo prazer simples de ler?
ARS: Qualquer coisa. As leituras aleatórias são fecundantes. Dos grafitos nos muros às revistas de consultório.
CRM: Outras artes inspiram você, abrem caminho para a prosa ou a poesia?
ARS: Careço de arte como de uma vitamina imprescindível. Tudo me “ inspira”, sobretudo o “nada”.
CRM: Algum autor influenciou você?
ARS: Todos, inclusive os ruins, que indicam o caminho a não seguir.
CRM: Em que lugar gostaria de recitar uma poesia sua (se é que falta esse lugar)?
ARS: Já falei poesia em grutas, em teatro grego, na cama, no palco, na sala de aula, em igreja, bibliotecas, jardins, deserto, praia. Atualmente falo para dentro.
CRM: Que novidade gostaria de perceber em nossa cultura, Affonso?
ARS: Que a cultura fizesse parte do cardápio trivial do brasileiros.
Depois de uma passagem pelo Rio de Janeiro e de uma
temporada no Memorial da América Latina, em São Paulo, a exposição
"Guerra e Paz", de Candido Portinari, termina hoje, 20 de
maio de 2012. A
mostra, que recebeu mais de 120 mil pessoas, apresenta os painéis
"Guerra" e "Paz", que medem 14 metros de altura e 10
de largura, e cerca de 100 documentos preparatórios das obras, realizadas entre
1952 e 1956 sob encomenda do governo brasileiro.
A grandiloquência a exposição pode ser medida pela
importância da obra e de seu autor. Dimensão, esta, dada pelo texto crítico de
Israel Pedrosa (artista plástico que foi aluno de Portinari) veiculado na
presente postagem:
Sempre que se quis definir Portinari, a partir da
visão de sua obra, essa definição atingia tal abrangência que ultrapassava em
muito a caracterização, simplesmente humana, do pintor.
Foi assim quando de sua exposição no Museu de Arte
Moderna de Nova York, apresentando-o como Portinari of
Brazil,
formulação que dava-lhe o foro de pintor nacional de seu país.
No catálogo da exposição Cem
Obras Primasde Portinari,
realizada pelo Masp (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), seu
diretor Pietro Maria Bardi o qualificara como “um intérprete das misérias do
Terceiro Mundo”, tendo Antônio Bento, algum tempo depois, denominado-o
simplesmente: o pintor do Terceiro Mundo.
Ao reduzir o termo, Bento ampliava-lhe o sentido,
como que dissesse ser ele não apenas o intérprete das misérias, mas também das
lutas, alegrias e esperanças comuns a esse universo majoritário de nosso
planeta.
Hoje passadas várias décadas desses esforços de
definição, delineia-se claramente o perfil de Portinari como o de O
pintor do NovoMundo.
Epíteto que, ultrapassando o significado simplesmente geográfico, representa
sobretudo o novo mundo social e espiritual que o perene labor humano vem
construindo, como fruto de seus melhores anseios: a NovaEra
de
que Paul Klee e David Alfaro Siqueiros sonhavam ser os pioneiros. E que
realmente o foram, cada um a seu modo.
Este Novo Mundo, de
que Portinari viria a ser seu grande intérprete e magno representante, é o Novo
Mundo que
começa a emergir em meio às lutas e às aspirações, não apenas dos visionários
das regiões periféricas e dos atuais países emergentes, mas também às de toda a
humanidade progressista. Mundo de paz, de trabalho produtivo, de alegria,
felicidade e amor entre os seres humanos, e de fraterna confiança entre os
povos. Mundo que, alheio às desalentadoras especulações cerebrinas sobre o fim
da História, começa a palmilhar as sendas vislumbradas de superiores estágios
sociais da irrefreável História, nutridas pela incansável busca da
perfectibilidade da condição humana.
O Realismo do século XX
Se aplicarmos à obra de Portinari o conceito de John
Ruskin, de que para a análise da obra de arte a primeira pergunta a se fazer é:
“O que ela nos ensina?”, a resposta será o espanto. Veremos que melhor que nos
compêndios de história, de economia, de sociologia ou de política, o relato
visual de Portinari expressa os mais avançados conceitos da cultura de seu
tempo, que aponta sempre para um horizonte promissor.
Tomada em seu conjunto, como um imenso painel que
aborda todos os aspectos da alma humana e da vida social, da miséria e da
desgraça, aos anseios da bem-aventurança terrestre. O brilho do olhar de seus
miseráveis e degradados seres amoráveis tem a chama reivindicativa da
esperança. Sua obra, expressão coerente de sua generosa visão de mundo, não
decorre apenas de um “otimismo da vontade” em meio ao “pessimismo da razão”. É
expressão de uma razão combatente que, em meio à adversidade, revela os
lenitivos de uma cantata ao porvir. Então, tal como Shakespeare, Bach, Mozart
ou Goethe, em puro aporte ao conceito gramisciano, sua arte “ensina enquanto
arte, não como arte educativa”, adentrando o reino do conhecimento sensível,
tal como vislumbrara Vico. Sem desfalecimento a obra de Portinari assume
autêntica expressão do Realismo do século XX. Realismo herdeiro do mesmo clima
espiritual de Goya, Turner, Daumier, Millet e Courbet. Nutrida por hermenêutica
de toda a História da arte, a saga portinariana revela ressonâncias sensíveis
dos pré-renascentistas, dos renascentistas, dos tormentos de Grunewald, dos
arroubos expressionistas e até de insólitos ângulos cubistas. Seu Realismo,
expressão sublimada do modernismo estético do século XX, reveste-se com toda a
riqueza ancestral do vocabulário plástico universal. Contudo, não é um Realismo
sem fronteiras, como aspirava Roger Garaudy, pois nele, como
assinala o próprio Portinari, em seu poema Grunewald, há
um inequívoco norteamento humanístico:
O bem é teu, permanecerá.
Malditos eles donos do mal
Não existirão.
A universalidade de seu vocabulário plástico é ao
mesmo tempo a única forma de expressão de seu postulado estético. É com ela que
desde o início de sua saga ele revela um universo novo para a historicidade da
arte. Daí surgem as reminiscências rurais de sua infância, o cenário humilde
das nascentes metrópoles, cenas e alma da vida brasileira. A singeleza ou a
monumentalidade dessas visões estão expressas nos murais da casa de Brodósqui,
da capela da Pampulha, do Ministério da Educação, da Biblioteca do Congresso,
em Washington, e dos painéis e quadros que percorreram o território das três
Américas. Em período sombrio para a humanidade, a exposição de elementos dessa
imensa obra fez parte da “política de boa vizinhança” entre os Estados Unidos
da América do Norte e os povos da América Latina, na mobilização continental
contra o nazifacismo. Período que antecedeu a entrada do Brasil na 2ª Guerra
Mundial ao lado das potências aliadas.
A Exposição Da Galeria Charpentier
No imediato pós-guerra, quando Paris preparava-se
para reassumir sua condição de capital mundial da pintura, no outono de 1946, é
montada na Galeria Charpentier a grande exposição de Candido Portinari,
idealizada pelo historiador de arte e conservador do Museu do Louvre, Germain
Bazin, que escreveu o prefácio do catálogo da mostra.
Nele o crítico francês afirma que, sozinho e no
outro lado do mundo, o pintor de Brodósqui tomara espontaneamente essa posição
social, cuja inquietude começava então a surgir na França. Acrescentando que
confrontavam-se em sua obra todas as forças de expressão. Agia como se tivesse
de inventar por conta própria a pintura, abordando todas as técnicas e todas as
harmonias. Ao lado de telas cheias de ternura, havia outras de um
expressionismo pungente, cuja violência sem medida talvez causasse surpresa aos
parisienses, habituados a verem respeitados, mesmo nas maiores audácias, os
cânones elaborados por 30 anos de especulações plásticas obedientes ao bom-tom.
Essa violência soprava como um vento impetuoso,
vindo de seu próprio país. Terra dominadora dos trópicos, cuja força, no espaço
de uma geração, assimilava os brasileiro, à véspera da inauguração, Paris
apareceu coberta de cartazes anunciando a exposição de Portinari na Galeria
Charpentier. O êxito da mostra foi registrado em inúmeros noticiários e em mais
de 50 artigos de crítica e assistido por numeroso público: “comparecimento em
massa, verdadeira multidão”. Através da cadeia nacional da radiodifusão
francesa, o poeta Louis Aragon, um dos criadores do surrealismo, ressaltou a
expressão profunda, exata, humana e surpreendente de um artista estrangeiro
como Portinari, que em cuja obra se sentia representada sua nação... No mesmo
período da mostra de Portinari, realizaram-se em Paris o Salão de Outono e a
exposição de Kandinsky, dando início ao revigoramento da abstração pictórica.
A origem desse revigoramento
encontrava-se do outro lado do Atlântico, no êxito da distante exposição de
1913, no Armory Show, de Nova York. Evento catalisador de
público e prestígio para as vanguardas artísticas e para todo o movimento
modernista europeu, criando em meio aos artistas, à intelectualidade e à alta
burguesia norte-americana o decisivo apoio para o triunfo e a expansão
planetária dessas correntes artísticas que caracterizaram a cultura e as artes
do último século.
No curso da segunda metade desse citado século,
verifica-se a morte das denominadas vanguardas artísticas, dando início ao ciclo
de culto aos grandes artistas revelados por elas.
O fim das denominadas vanguardas artísticasestá ligado ao declínio do poder dospólos estéticos hegemônicos das grandespotências ocidentais.Em
decorrência do vigoroso surto de renovaçãocultural
que vinha se desenvolvendodesde o século XIX
e início do século XX nasantigas regiões
periféricas, caracterizadasagora como
universo emergente, juntando-se ao que de melhor produziram algunsartistas dos países desenvolvidos, surgemno decorrer do século passado excepcionaisexemplares de uma arte que abre caminho anovos estágios de fruição estética, apontandopara um almejado e inigualável mundo novo. Falamos
de uma cosmovisão alicerçada pelas sonoridades díspares de Aran Katchaturian,
Samuel Barber e Heitor Villa-Lobos; pela dramaturgia de Bertold Brecht; pelas
espantosas visões literárias de Mikhail Cholokhov, de Theodore Dreiser, Guimarães
Rosa e Gabriel García Márquez; pela poesia de Nazim Hikmet, Paul Valéry, Pablo
Neruda e Carlos Drummond de Andrade; pelos relampejares sísmicos de Serguei
Eisenstein, Akira Kurosawa, Frederico Fellini e Glauber Rocha; pela imagística
de Paul Klee, David Alfaro Siqueiros e Candido Portinari.
Os painéis Guerra e Paz
Para Portinari, os últimos anos da década de 1940 e
os primeiros da seguinte são marcados pela realização de seus grandes painéis
móveis: A
Primeira Missa no Brasil (1948), Tiradentes (1949),
Chegada
deD.
João VI ao Brasil (1952) e Guerra e Paz
(1952-1956).
Em 1952, atendendo a convite do Itamaraty, Portinari
inicia a realização das maquetes dos dois imensos painéis (14 x 10m cada) para
a decoração do edifício sede da ONU, em Nova York, projetado por Le Corbusier, e em cuja
elaboração trabalhara Oscar Niemeyer. Os temas escolhidos para os painéis foram
a Guerra
e a Paz –
síntese das preocupações e objetivos primordiais dos trabalhos das Nações
Unidas.
Decorridos quatro anos de árduo trabalho, no dia 5
de janeiro de 1956 os imensos painéis foram entregues ao Ministério das
Relações Exteriores. Durante o período de sua realização, a imprensa do país e
do exterior acompanhou com interesse o trabalho do artista. Ao ser anunciado o
seu término, desencadeou-se imenso movimento de opinião pública liderado por
eminentes intelectuais, artistas e organizações culturais e até por sindicatos
operários desejando a exposição dos painéis no Brasil, antes de seu envio para
Nova York.
Atendendo a este clamor geral, o Itamaraty organizou
a mostra dos painéis Guerra ePaz, no
Theatro Municipal do Rio de Janeiro, transformando-o no mais amplo salão de
exposição visto no Brasil até então, e no templo reverencial de um momento
específico de nossa contribuição à historicidade artística da humanidade.
No dia 27 de fevereiro de 1956, nas presenças do
presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira, e altas autoridades,
de representantes políticos de todas as tendências, de intelectuais, artistas e
de eufórica multidão em clima de júbilo nacional, foi inaugurada a
extraordinária mostra.
Pouco mais de um ano depois, ante o secretário-geral
das Nações Unidas, Dag Hammarskjold, e representantes do Brasil, o embaixador
Cyro de Freitas-Valle e o ministro Jayme de Barros, em setembro de 1957, foram
inaugurados no edifício sede da ONU, em Nova York, os painéis Guerra
e Paz,
de Candido Portinari.
Considerações Gerais
Em 2007, marcando o cinquentenário da inauguração
dos painéis, o Projeto Portinari publicou o livro comemorativo da efeméride: Guerra
e Paz – Portinari. Nele, eu afirmara que os dois painéis constituíam
[...] um discurso visual uno em
sua complexa
complementaridade sobre os
extremos
da desgraça e da
bem-aventurança,
na trágica e comovedora visão
pintada por
Portinari.
Nas páginas da história da
arte, em que
surgem incontáveis guerras
datadas
e localizadas, como as de
Tróia, e do
Peloponeso pintadas por
Eufrônio, as
Batalhas de San Romano e
Anghiari, de
Paolo
Uccello e de Da Vinci, ou Guernica,
de Picasso, todas são narradas
por cenas
que as identificam, localizam e
datam.
Com os recursos próprios
ligados ao
tempo da pintura, cada uma
delas participando
da variada gama de conceitos
que vai do heroísmo à dor e ao
desespero
ou defendendo um solo, uma idéia
ou
uma causa que as
particularizam. A abordagem
de Portinari é outra. Não
identifica
guerra alguma, como se
afirmasse
que em essência todas se
equivalem no
desencadeamento de horror e
animalidade.
Nenhuma arma identificável, em
Portinari; a cavalgada apocalíptica
que
corta a cena em todas as
direções com
seu cortejo de conquista,
guerra, fome e
morte, não traz as cores
bíblicas do fogo
e do sangue, nem o preto, o
branco ou o
amarelo. É o azul que domina.
Uma trágica
e dorida sinfonia em azul,
passando
por toda sua escala. Os tons
escuros,
soturnos, ricos em variadas e
profundas
nuanças violáceas, desenham as
cenas
sobre fundo de claros azuis de
reflexos
verdátreos, tendentes aos leves
citrinos.
Contrastando com esse universo
azulado,
valorizando-o cromaticamente,
em contraponto
tonal, o cavalo manchetado de
carmim, a carnação de rostos,
braços e
pés saindo das vestes escuras
surgem em
vibrantes alaranjados que vão
das sombras
trevosas violáceas, aos quase
vermelhos
e rosas de intensa crepitação
luminosa.
Nesse clima de violentos
contrastes, de
soturna féerie,
o tropel ininterrupto liberta
as feras que aterrorizam o
mundo.
Estamos diante de um cataclismo
aterrador
em que os tempos remotos
confundem-se
com a origem dos tempos. Se
o terror
nos traz à memória reminiscências
de
anátemas de Luca Signorelli e
de Dürer, a
concepção, inventiva e fatura
nos trazem
de volta à realidade de uma
modernidade
intemporal.
Realçado por clara luz, um
eremita desnudo,
de pé em penitência, cobre os
olhos
com as mãos, em prece e
lamento. Figuras
em grupo compacto, genuflexo,
braços
levantados com as mãos
espalmadas e
rostos voltados para o céu,
nesse cenário
de morte deixam transparecer
uma aragem
de força e vida, de condenação
à própria
existência da guerra.
No painel Paz,
tal como acontece em seu par:
[...] são múltiplas as
reminiscências de
obras anteriores de Portinari,
como também
são vários os vestígios desses
trabalhos
em quadros posteriores do
Mestre.
O que significa dizer serem
eles elos coerentes
de uma imensa produção
pictórica
da mais alta representatividade
do poder
criador do século XX [...]. O
que emana
desse painel, nos enleva e
encanta, mais
que a idéia de paz e da paz, é
a própria
paz que nos invade ao
contemplá-lo. É a
sensação de penetrarmos num
universo
sereno, de comunhão fraterna no
trabalho
produtivo, num reino mágico de
cores reluzentes,
do som da ciranda de jovens num
canto universal de fraternidade
e confiança,
ou da candura dos folguedos
infantis. Com
todos esses tons dourados,
alegres, crepitantes
de vida, o pintor parece nos
dizer:
A paz universal é possível. Dia
virá em que
a humanidade desfrutará a paz
sem limites
no espaço e no tempo.
O livro Guerra e Paz – Portinari foi
publicado em dois volumes, com idêntica programação gráfica, em português e inglês.
War
andPeace
– Portinari foi oferecido pelo presidente Luiz Inácio Lula da
Silva ao secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Sr. Ban-Ki-Moon,
momentos antes do pronunciamento do presidente da República do Brasil, abrindo
a 62ª Assembleia-Geral da ONU.
A exposição dos painéis Guerra
e
Paz
no
Theatro Municipal do Riode
Janeiro
A realização da exposição dos painéis Guerra
e
Paz
de
Portinari no Theatro Municipal do Rio de Janeiro insere-se no clima de
crescente presença internacional do Brasil, não apenas na área econômica, mas
sobretudo no reconhecimento de nossos valores sociais em progressão, valores
intelectuais, morais e espirituais expressos em nosso amor à paz, à tolerância
no trato dos contrários, e nosso apego à arte, vivificado em todas as
manifestações do espírito nacional. A inimaginável, até então, vinda ao Brasil
dos monumentais painéis Guerra e Paz
de
Candido Portinari que ornamentam o saguão principal do edifício sede da ONU, em Nova York, só foi
possível graças a uma conjugação de fatores, destacando-se dentre eles:
Primeiro, a deliberação da grande
reforma do edifício sede da ONU, no período de 2010 a 2013. Período em que
as obras de Portinari teriam que ser removidas e abrigadas em outro local.
Segundo, a existência da modelar
organização do Projeto Portinari que idealizou e gerenciou, posteriormente,
toda a operação e motivou o governo brasileiro a solicitar e dar garantias à
ONU para o empréstimo dos painéis Guerra e Paz
a
serem expostos e restaurados no Brasil.
Terceiro, a existência nos mais
altos escalões da República, na Presidência, na Vice-presidência, no Ministério
das Relações Exteriores, no Ministério da Cultura e no BNDES de autoridades
sensíveis aos poderes e imperativos da Arte como manifestação insubstituível do
patrimônio intelectual, moral e psíquico da nação brasileira.
Parafraseando formulação que se tornara frequente
nos últimos tempos, podemos dizer que nunca na história desse país um governo
prestigiou tanto a cultura nacional, como o faz agora, com grande repercussão
internacional, em relação à obra de Candido Portinari.
O exemplo maior desta prestigiação está expresso na
parte final da histórica fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na
abertura da 62ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em que ele diz:
Senhoras e senhores, ao entrar
neste prédio,
os delegados podem ver uma obra
de arte presenteada pelo Brasil
às Nações
Unidas há 50 anos. Trata-se dos
murais
Guerra e Paz, pintados pelo
grande artista
brasileiro, Candido Portinari.
O sofrimento expresso no mural
que retrata
a guerra nos remete à alta
responsabilidade
das Nações Unidas de afastar o
risco de
conflitos armados.
O segundo mural revela que a
paz vai muito
além da ausência da guerra.
Pressupõe
bem-estar, saúde e um convívio
harmonioso
com a natureza. Pressupõe
justiça
social, liberdade e superação
dos flagelos
da fome e da pobreza.
Não é por acaso que o mural
Guerra está
colocado de frente para quem
chega, e o
mural Paz, para quem sai. A
mensagem do
artista é singela, mas
poderosa: transformar
aflições em esperança, guerra
em paz,
é a essência da missão das
Nações Unidas.
O Brasil continuará a trabalhar
para que
esta expectativa tão elevada se
torne definitivamente
realidade.
Muito obrigado.
Em meio a numeroso público em clima de júbilo nacional,
com a presença do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, representando
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do professor Luciano Coutinho,
presidente do BNDES, do diretor do Projeto Portinari, João Candido Portinari,
de autoridades federais, estaduais e municipais, na noite de 21 de dezembro de
2010, foi inaugurada a exposição dos monumentais painéis Guerra
e
Paz, de
Candido Portinari, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Vista proporcional do painel Paz
Apoteose da Paz
Por imensuráveis que sejam as distâncias e o número
de estrelas e de seus incontáveis planetas e satélites pelas infinitas galáxias
na imensidão cósmica, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na noite mágica da
inauguração da exposição dos painéis Guerra e Paz
de
Portinari, trazidos por empréstimo temporário da sede da ONU, NY,
transformara-se no epicentro artístico do universo. Impossível pensar que
naquele momento, em qualquer outro corpo celeste, a arte e tudo o que possa
haver de superior e sublime no universo estivessem sendo celebradas com tal
efusão apaixonante. Se seres de inteligência igual ou superior à existente aqui
existissem ou existirem em tais espaços siderais, por certo, reverenciariam o
magno espetáculo montado por uma obstinação filial apoiada por um presidente
operário, que se fez representar por eminente chanceler em meio a uma plateia
eufórica, interpretando em seu justo valor nossa mais vigorosa mensagem
artística, transformando-a em símbolo de uma cantata universal de paz.
A alegria reinante em todos os semblantes da
multidão que lotava o teatro, e que durante todo o período da exposição
envolveu o edifício com intermináveis filas, deixa transparecer o justificado
orgulho do reencontro de cada um e de todos com sua parcela da verdadeira alma
nacional e com os elementos precursores de seus almejados destinos
compartilhados na construção de um reino de perene paz e felicidade. Nem todos
tinham a mesma clareza sobre a extraordinária excepcionalidade do momento que
estavam vivendo, mas todos vislumbravam o privilégio que teriam pelo tempo
afora de poder afirmar: “Eu estive lá!” Seguramente, a memória nacional
guardará para sempre a lembrança do espetáculo de interação de todas as artes
no palco do maior teatro da “cidade maravilhosa”. Precedendo o desfile da
multidão diante da magistral obra de um dos maiores pintores de todos os
tempos, desenrolava-se o documentário de Carla Camurati, seguido pela dança de
Ana Botafogo e Alex Neoral, coreografada por David Parsons; o canto de Milton
Nascimento, a sonoridade de Villa-Lobos trazida pela Orquestra Sinfônica
Brasileira Jovem. Magnífico e bendito planeta este, em que a luminosidade
impera, e que em suas entranhas a matéria em seu mais elevado estágio de
perfectividade produz sonho, ideal e beleza, em que, mesmo entre suas diatribes
intestinas e dolorosas etapas do parto do alvorecer de um Novo Mundo, fascinou
o primeiro terráqueo a contemplá-lo do cosmo, arrancando-lhe a indelével
exclamação: “A terra é azul!” Tão azul como o descrito por Drummond no poema
declamado por Fernanda Montenegro naquela noite majestosa, diante dos painéis Guerra
e
Paz:
“e nada mais resiste à mão
pintora [...]
a mão-de-olhos-azuis
de Candido Portinari.”
(PEDROSA, Israel. O Pintor do
Novo Mundo. In: Revista Direitos Humanos.
São Paulo: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República do
Brasil, 2012. p.14-20).