sábado, 26 de maio de 2012

Poeta e Jornalista, Luís Antônio Pimentel em matéria de O Globo





Aos 100 anos e cheio de histórias, mais antigo jornalista do país continua ativo



Luís Pimentel: carrega sempre uma máquina fotográfica no bolso
Guito Moreto / O Globo

RIO - Luís Antônio Pimentel se considera um sujeito de sorte. Sobreviveu a uma malária e uma febre amarela. Estava no Japão durante a Segunda Guerra Mundial, mas conseguiu sair do país antes que a bomba atômica fosse lançada. Circulou entre a nata da intelectualidade e da classe artística por várias décadas, incluindo Cecília Meirelles, Carmem Miranda, Barão de Itararé, Graciliano Ramos e Monteiro Lobato. Escreveu livros, músicas, poesias e, como jornalista, cobriu os eventos mais marcantes da História do Brasil. Colecionou romances com belas mulheres. Aos 74 anos, pôde, finalmente, viver seu grande amor, que conhecera 40 anos antes e com quem foi morar aos 96. Hoje, aos 100 anos, completados em março, seu fôlego parece não ter fim: vai a todas as festas em homenagem ao seu centenário, numa intensa agenda em Niterói, sua cidade do coração. Estão em cartaz duas exposições sobre sua vida e uma adaptação para o teatro de uma novela que escreveu em 1944, além do lançamento de uma antologia de seus textos em prosa e verso, "O amor segundo Luís Antônio Pimentel" (Editora Nitpress).

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/aos-100-anos-cheio-de-historias-mais-antigo-jornalista-do-pais-continua-ativo-4949376#ixzz1w1LWl0JF
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"Laços de afeto", por Wanderlino Teixeira Leite Netto


Não será preciso esperar tanto a ponto de se esquecer na espera: Café pingado, mais novo livro de Wanderlino Teixeira Leite Netto, será lançado em junho próximo.
Enquanto aguardamos para bebericar em sua poesia, que tal um pouco da prosa do autor?





Laços de afeto



 Mudavam-se à revelia. Por vontade própria, Aurélio e Mercedes permaneceriam no velho apartamento. Mas, aos oitenta, os desejos trocam de dono. Os filhos haviam decidido tê-los por perto, assim seria. Impotentes, presenciam a profanação de seus guardados. Os filhos, o genro, a nora, os netos, remexem armários e gavetas. Urge selecionar o que os homens da transportadora irão embalar e eles não tardam.
Mercedes vê os sacos de retalhos dos mais variados tecidos serem postos de lado. Aurélio não entende o descarte dos papéis de embrulhar pão, dos pedaços de barbante, das bulas, das caixas e dos vidros de remédios vazios. Afinal, estavam todos meticulosamente arrumados...
Miçangas e paetês espalham-se pelo chão, assim como pedaços de isopor, purpurina, velas de aniversários e enfeites de Natal.
Do bojo de um armário, saem sapatos fora de moda, bolsas dos mais diferentes feitios e tamanhos, alguns chapéus, todos vetados por uma comissão de netos.
Enquanto o genro amontoa junto à lixeira jornais amarelecidos, a filha descarta bibelôs. Os álbuns de retratos sofrem verdadeira pilhagem, cada um abocanha um naco do passado. Quando chega o pessoal da transportadora, tudo está definido.
Aurélio e Mercedes entreolham-se. A cumplicidade de mais de meio século é suficiente para indicar-lhes o que fazer. De uma pasta de couro, já um tanto desbotada, retiram os documentos. Com tesouras de ponta fina, em silêncio, picotam as cédulas de identidade.

 
(NETTO, Wanderlino Teixeira Leite. Laços de afeto. In: Retrato sem moldura. Niterói: Clube de Literatura Cromos, 1999).




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quarta-feira, 23 de maio de 2012

“Panteão” a Agrippino Grieco, por José Cândido de Carvalho



Caricatura de Agrippino Grieco no traço de Appe.



Agrippino Grieco – Diabo manda lembranças






Logo de saída, Agrippino Grieco avisa:
– Acabo de vir do médico. Estou em forma.
Acredito. Vai atravessar o século em cima de suas fortes pernas de filho de camponeses. Rijo e narigudo. Aos poucos, o tempo foi fazendo dele uma ilha cercada de mil epigramas e de sessenta mil livros. Falou mal de todo mundo e todo mundo falou mal dele. Com uma desvantagem para Grieco: falou sempre bem mal dos outros. Sempre desancou os adversários em excelente estilo, no mais alegre e guisado estilo que alguém já inventou para dizer mal de alguém neste país. Agora, na sua casa do Méier, quase na marca dos oitenta anos, o velho diabo escreve, em chinelas, suas memórias, páginas e páginas em que a vida tem um encontro com um dos homens mais faiscantes do Brasil. São cinquenta primaveras de convivências com ideias, homens, acontecimentos e paisagens. E todo esse mundo é passado a limpo numa antiga máquina de escrever, espécie de mamute de parafusos e letras, mais velha do que as próprias memórias que datilografa. Lá está ela, cansada de guerra, sobre a mesa desarrumada de Agrippino, numa sala quieta de uma tarde de abril. Não é propriamente uma máquina. É um serpentário. Desse piano de dizer desaforos, que Grieco toca com um dedo só, têm saído os mais alegres ditos deste Brasil, as melhores caricaturas em palavras já feitas por mãos nacionais. A conversa do velho diabo tem feitio de festa italiana – bandolins, estandartes, flores, bandeiras com as cores dos pavões e piruetas de clown. As mãos de Grieco também falam. Seu nariz, como uma virgula enorme, marca a pontuação. Começa o show.
(...)     


Caricatura de Agrippino Grieco no traço de Theo.


Ironia a domicílio  

Não poupa ninguém. Nem amigos nem parentes. Nem ele mesmo. Ao espelho, ao fazer a barba, certamente dirá coisas de Grieco. Conta Donatello, seu filho e belo escritor abafado pelos veludos da diplomacia:
– Em casa, sempre fomos mais ou menos farpeados pelo velho. Depois que meu mano Francisco de Assis e eu fizemos concurso para o Itamarati, Grieco deitou frase dizendo que “no Brasil quem não dá para nada vai ser funcionário público, e quem não dá nem para isso vai ser diplomata”.
A frase correu mundo. É antológica. 



Elogio da traça 

Agrippino avança o nariz sobre a parede para mostrar um sujeito também narigudo, escritor do seu agrado e do seu convívio permanente: Eça de Queirós. Há ainda outras recordações que a vida dependurou na sala de Agrippino, desde quadros do seu cunhado Guttman Bicho a aquarelas compradas ao acaso de suas navegações pelo mundo, em Paris ou em Roma, em Belém do Pará ou no Largo do Rossio. Vou caminhando por entre os muros de livros de Grieco, os seus famosos 60 mil volumes. O Brasil, de cabo a rabo, está nesta montanha de papel e tinta, encadernado e naftalizado. Falo das traças, Grieco abre os braços para elogiar essas inimigas do papel:
 – Não há uma Sociedade Protetora das Traças, com planos de produção intensiva. É uma necessidade nacional, como o petróleo.
Nisso o velho diabo do Méier está redondamente enganado. Traça que se preza não rói livro ruim. É o que garante o romancista Herberto Sales. E eu com ele.
(...)



Os 4 grandes 

Indago:
– Quais as suas grandes admirações brasileiras de todos os tempos?
A resposta vem fácil:
– Castro Alves, José de Alencar, Euclides da Cunha e Machado de Assis.
E é só. 
(...)

Autógrafo de Agrippino Grieco (1969)
oferecido ao Prof. Luiz Antônio Barros 
durante manhã de autógrafos na Livraria Ideal.
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Verde, não 

Não empresta livros. E tem um medão danado de cachorros, embora tenha apregoado, em boa prosa, as virtudes deles. Não aprecia verduras. É inimigo pessoal dos agriões e das alfaces. Detesta o vento e o trovão. E crê, sem fanatismo, em coisa do além. Não que tenha visto algum fantasma, mas por não poder explicar certos acontecimentos. E, pelas dúvidas, mantém em seu quintal um bem regado e mimado pé de arruda. Não é verdura. É pé de coelho.

Capa de um exemplar de Os vivos e mortos de Grieco, primeira edição, 1931.
Acervo da biblioteca pessoal de Roberto Kahlmeyer-Mertens

Brincadeira de morrer

Não sei por que o nome de Manuel Bandeira entrou na conversa do Méier. Agrippino manda brasa: – Há mais de cinquenta anos que Bandeira diz, em prosa e verso, que vai morrer. E não cumpriu a palavra...
Em verdade, Grieco não quer, nem de longe, a morte de Bandeira. Nem de Bandeira nem de poeta nenhum, mesmo desses que rimam sabão com limão.
(...)

Ex-libris de Agrippino Grieco

O diabo de calças curtas 

Agrippino Grieco, fluminense de 1888, quase um século de bem ler e melhor escrever. Tem espalhado talento em tudo que escreve, em páginas definitivas, ou no fogo de artifício de seus inigualáveis epigramas. No fundo, não quer mal a ninguém. Continua sendo o mesmo menino da Rua Lava-Pés, o pegador de passarinhos dos campos de Paraíba do Sul. O menino que ainda agora tantos anos passados e repassados, escuta as noites sossegadas do Méier um rumor de águas antigas. É o rio de sua infância que está cantando.

(CARVALHO, José Cândido. Agrippino Grieco – O Diabo manda lembranças. In: Ninguém mata o arco-íris. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. p. 3-8).




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Confira mais eventos culturais no FOCUS - PORTAL CULTURAL, do Poeta Alberto Araújo


domingo, 20 de maio de 2012

“Tudo me inspira: sobretudo o nada” entrevista de Affonso Romano de Sant'Anna concedida a Carlos Rosa Moreira.


Concedida ao escritor e acadêmico Carlos Rosa Moreira, a presente entrevista do literato Affonso Romano de Sant’Anna foi originalmente publicada no Literato – O Jornal das Letras de Niterói. Tendo cumprido seu papel de figurar impresso naquele veículo, o texto de entrevista é gentilmente cedido por Carlos Rosa para divulgação virtual no Literatura-Vivência.
Ler um trabalho como este não é um excelente modo de começar a semana?!




“Tudo me inspira: sobretudo o nada” entrevista de Affonso Romano de Sant'Anna concedida a Carlos Rosa Moreira.



O mineiro Affonso Romano de Sant’Anna ensaista cronista, jornalista, professor e um dos maiores  poetas da lingua portuguesa. De forma gentil, concedeu ao Literato (Jornal de Letras de Niterói) a entrevista que se segue. Nestes tempos em que tudo é “arte” desde rabiscos em muros a frases mal articuladas e berradas, seguidas por batidas ou marteladas, levantam-se a voz pausada e os persamentos cristalinos de ARS apontando caminhos em direção à verdadeira arte, jogando luz de uma crítica não agressiva, mais incisive sobre questões importantes de nossa cultura. Para mim, ouvi-lo é alimento. Apenas temo que sua voz seja das últimas, tornando-o quase um transgressor.



Carlos Rosa Moreira: Durante seis anos você dirigu a Bibiblioteca Nacional e fez, entre outros, aquele projeto admirável de criação e increment de bibliotecas por todo o Brasil.Se fosse agora, que projeto gostaria de fazer?

Affonso Romano de Sant'Anna: No livro Ler o mundo (Ed.Global) fiz uma síntese dos projetos realizados. Falar do que falta seria escrever outro livro.

CRM: De que sente falta na Literatura Nacional?

ARS: De críticos (não jornalistas, que façam reportagens). Que os cadernos culturais abram espaço para os brasileiros, que não sejamos meros importadores de best sellers estangeiros.
 
CRM:  Pelo que se vê no atual meio cultural brasileiro, você é um transgressor?

ARS: A palavra “transgressor”, que entrou na moda, já me cansou. Já é possivel fazer um Museu da Transgressão.

CRM: É possivel ser escritor sem se export?

ARS: O escritor se expõe, queira ou não. 

CRM: Qual a responsabilidade de um intelectual em seu meio?

ARS: Cada um sabe de si. Eu sou uma pessoa doente de história e do presente.

CRM: Duchamp se tivesse nascido no Brasil, faria aquele sucesso todo?

ARS: Nem pensar. Ele deu o golpe certo, percebeu que tinha que ir para os EUA terra do kitsch e da novidade

(Nota: Leiam O enigma vazio e Desconstruir Duchamp, livros nos quais ARS analisa Marcel Duchamp, o homem que influenciou a arte do sec.XX ).

CRM: Se estivesse na mesma situação do “Gil”personagem interpretado por Owen Wilson no “Meia noite em Paris”do Wood Allen, com que turma de escritores gostaria de encontrar?

ARS: Em geral, os escritores mitológicos são uma decepção na intimidade, preferia continuar a lê-los, apenas.

CRM: O que gostaria de reler, pelo prazer simples de ler?

ARS: Qualquer coisa. As leituras aleatórias são fecundantes. Dos grafitos nos muros às revistas de consultório.

CRM: Outras artes inspiram você, abrem caminho para a prosa ou a poesia?

ARS: Careço de arte como de uma vitamina imprescindível. Tudo me “ inspira”, sobretudo o “nada”.

CRM: Algum autor influenciou você?

ARS: Todos, inclusive os ruins, que indicam o caminho a não seguir.

CRM: Em que lugar gostaria de recitar uma poesia sua (se é que falta esse lugar)?

ARS: Já falei poesia em grutas, em teatro grego, na cama, no palco, na sala de aula, em igreja, bibliotecas, jardins, deserto, praia. Atualmente falo para dentro.

CRM: Que novidade gostaria de perceber em nossa cultura, Affonso?

ARS: Que a cultura fizesse parte do cardápio trivial do brasileiros.





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Portinari, o "Pintor do Novo Mundo" em texto de Israel Pedrosa


Depois de uma passagem pelo Rio de Janeiro e de uma temporada no Memorial da América Latina, em São Paulo, a exposição "Guerra e Paz", de Candido Portinari, termina hoje, 20 de maio de 2012. A mostra, que recebeu mais de 120 mil pessoas, apresenta os painéis "Guerra" e "Paz", que medem 14 metros de altura e 10 de largura, e cerca de 100 documentos preparatórios das obras, realizadas entre 1952 e 1956 sob encomenda do governo brasileiro.
A grandiloquência a exposição pode ser medida pela importância da obra e de seu autor. Dimensão, esta, dada pelo texto crítico de Israel Pedrosa (artista plástico que foi aluno de Portinari) veiculado na presente postagem:




O Pintor do Novo Mundo

Sempre que se quis definir Portinari, a partir da visão de sua obra, essa definição atingia tal abrangência que ultrapassava em muito a caracterização, simplesmente humana, do pintor.
Foi assim quando de sua exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York, apresentando-o como Portinari of Brazil, formulação que dava-lhe o foro de pintor nacional de seu país.
No catálogo da exposição Cem Obras Primas de Portinari, realizada pelo Masp (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), seu diretor Pietro Maria Bardi o qualificara como “um intérprete das misérias do Terceiro Mundo”, tendo Antônio Bento, algum tempo depois, denominado-o simplesmente: o pintor do Terceiro Mundo.
Ao reduzir o termo, Bento ampliava-lhe o sentido, como que dissesse ser ele não apenas o intérprete das misérias, mas também das lutas, alegrias e esperanças comuns a esse universo majoritário de nosso planeta.
Hoje passadas várias décadas desses esforços de definição, delineia-se claramente o perfil de Portinari como o de O pintor do Novo Mundo. Epíteto que, ultrapassando o significado simplesmente geográfico, representa sobretudo o novo mundo social e espiritual que o perene labor humano vem construindo, como fruto de seus melhores anseios: a Nova Era de que Paul Klee e David Alfaro Siqueiros sonhavam ser os pioneiros. E que realmente o foram, cada um a seu modo.
Este Novo Mundo, de que Portinari viria a ser seu grande intérprete e magno representante, é o Novo Mundo que começa a emergir em meio às lutas e às aspirações, não apenas dos visionários das regiões periféricas e dos atuais países emergentes, mas também às de toda a humanidade progressista. Mundo de paz, de trabalho produtivo, de alegria, felicidade e amor entre os seres humanos, e de fraterna confiança entre os povos. Mundo que, alheio às desalentadoras especulações cerebrinas sobre o fim da História, começa a palmilhar as sendas vislumbradas de superiores estágios sociais da irrefreável História, nutridas pela incansável busca da perfectibilidade da condição humana.




O Realismo do século XX

 Se aplicarmos à obra de Portinari o conceito de John Ruskin, de que para a análise da obra de arte a primeira pergunta a se fazer é: “O que ela nos ensina?”, a resposta será o espanto. Veremos que melhor que nos compêndios de história, de economia, de sociologia ou de política, o relato visual de Portinari expressa os mais avançados conceitos da cultura de seu tempo, que aponta sempre para um horizonte promissor.
Tomada em seu conjunto, como um imenso painel que aborda todos os aspectos da alma humana e da vida social, da miséria e da desgraça, aos anseios da bem-aventurança terrestre. O brilho do olhar de seus miseráveis e degradados seres amoráveis tem a chama reivindicativa da esperança. Sua obra, expressão coerente de sua generosa visão de mundo, não decorre apenas de um “otimismo da vontade” em meio ao “pessimismo da razão”. É expressão de uma razão combatente que, em meio à adversidade, revela os lenitivos de uma cantata ao porvir. Então, tal como Shakespeare, Bach, Mozart ou Goethe, em puro aporte ao conceito gramisciano, sua arte “ensina enquanto arte, não como arte educativa”, adentrando o reino do conhecimento sensível, tal como vislumbrara Vico. Sem desfalecimento a obra de Portinari assume autêntica expressão do Realismo do século XX. Realismo herdeiro do mesmo clima espiritual de Goya, Turner, Daumier, Millet e Courbet. Nutrida por hermenêutica de toda a História da arte, a saga portinariana revela ressonâncias sensíveis dos pré-renascentistas, dos renascentistas, dos tormentos de Grunewald, dos arroubos expressionistas e até de insólitos ângulos cubistas. Seu Realismo, expressão sublimada do modernismo estético do século XX, reveste-se com toda a riqueza ancestral do vocabulário plástico universal. Contudo, não é um Realismo sem fronteiras, como aspirava Roger Garaudy, pois nele, como assinala o próprio Portinari, em seu poema Grunewald, há um inequívoco norteamento humanístico:

O bem é teu, permanecerá.
Malditos eles donos do mal
Não existirão.

A universalidade de seu vocabulário plástico é ao mesmo tempo a única forma de expressão de seu postulado estético. É com ela que desde o início de sua saga ele revela um universo novo para a historicidade da arte. Daí surgem as reminiscências rurais de sua infância, o cenário humilde das nascentes metrópoles, cenas e alma da vida brasileira. A singeleza ou a monumentalidade dessas visões estão expressas nos murais da casa de Brodósqui, da capela da Pampulha, do Ministério da Educação, da Biblioteca do Congresso, em Washington, e dos painéis e quadros que percorreram o território das três Américas. Em período sombrio para a humanidade, a exposição de elementos dessa imensa obra fez parte da “política de boa vizinhança” entre os Estados Unidos da América do Norte e os povos da América Latina, na mobilização continental contra o nazifacismo. Período que antecedeu a entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial ao lado das potências aliadas.




A Exposição Da Galeria Charpentier

No imediato pós-guerra, quando Paris preparava-se para reassumir sua condição de capital mundial da pintura, no outono de 1946, é montada na Galeria Charpentier a grande exposição de Candido Portinari, idealizada pelo historiador de arte e conservador do Museu do Louvre, Germain Bazin, que escreveu o prefácio do catálogo da mostra.
Nele o crítico francês afirma que, sozinho e no outro lado do mundo, o pintor de Brodósqui tomara espontaneamente essa posição social, cuja inquietude começava então a surgir na França. Acrescentando que confrontavam-se em sua obra todas as forças de expressão. Agia como se tivesse de inventar por conta própria a pintura, abordando todas as técnicas e todas as harmonias. Ao lado de telas cheias de ternura, havia outras de um expressionismo pungente, cuja violência sem medida talvez causasse surpresa aos parisienses, habituados a verem respeitados, mesmo nas maiores audácias, os cânones elaborados por 30 anos de especulações plásticas obedientes ao bom-tom.
Essa violência soprava como um vento impetuoso, vindo de seu próprio país. Terra dominadora dos trópicos, cuja força, no espaço de uma geração, assimilava os brasileiro, à véspera da inauguração, Paris apareceu coberta de cartazes anunciando a exposição de Portinari na Galeria Charpentier. O êxito da mostra foi registrado em inúmeros noticiários e em mais de 50 artigos de crítica e assistido por numeroso público: “comparecimento em massa, verdadeira multidão”. Através da cadeia nacional da radiodifusão francesa, o poeta Louis Aragon, um dos criadores do surrealismo, ressaltou a expressão profunda, exata, humana e surpreendente de um artista estrangeiro como Portinari, que em cuja obra se sentia representada sua nação... No mesmo período da mostra de Portinari, realizaram-se em Paris o Salão de Outono e a exposição de Kandinsky, dando início ao revigoramento da abstração pictórica.

A origem desse revigoramento encontrava-se do outro lado do Atlântico, no êxito da distante exposição de 1913, no Armory Show, de Nova York. Evento catalisador de público e prestígio para as vanguardas artísticas e para todo o movimento modernista europeu, criando em meio aos artistas, à intelectualidade e à alta burguesia norte-americana o decisivo apoio para o triunfo e a expansão planetária dessas correntes artísticas que caracterizaram a cultura e as artes do último século.
No curso da segunda metade desse citado século, verifica-se a morte das denominadas vanguardas artísticas, dando início ao ciclo de culto aos grandes artistas revelados por elas.

O fim das denominadas vanguardas artísticas está ligado ao declínio do poder dos pólos estéticos hegemônicos das grandes potências ocidentais. Em decorrência do vigoroso surto de renovação cultural que vinha se desenvolvendo desde o século XIX e início do século XX nas antigas regiões periféricas, caracterizadas agora como universo emergente, juntando-se ao que de melhor produziram alguns artistas dos países desenvolvidos, surgem no decorrer do século passado excepcionais exemplares de uma arte que abre caminho a novos estágios de fruição estética, apontando para um almejado e inigualável mundo novo. Falamos de uma cosmovisão alicerçada pelas sonoridades díspares de Aran Katchaturian, Samuel Barber e Heitor Villa-Lobos; pela dramaturgia de Bertold Brecht; pelas espantosas visões literárias de Mikhail Cholokhov, de Theodore Dreiser, Guimarães Rosa e Gabriel García Márquez; pela poesia de Nazim Hikmet, Paul Valéry, Pablo Neruda e Carlos Drummond de Andrade; pelos relampejares sísmicos de Serguei Eisenstein, Akira Kurosawa, Frederico Fellini e Glauber Rocha; pela imagística de Paul Klee, David Alfaro Siqueiros e Candido Portinari.




Os painéis Guerra e Paz

Para Portinari, os últimos anos da década de 1940 e os primeiros da seguinte são marcados pela realização de seus grandes painéis móveis: A Primeira Missa no Brasil (1948), Tiradentes (1949), Chegada de D. João VI ao Brasil (1952) e Guerra e Paz (1952-1956).
Em 1952, atendendo a convite do Itamaraty, Portinari inicia a realização das maquetes dos dois imensos painéis (14 x 10m cada) para a decoração do edifício sede da ONU, em Nova York, projetado por Le Corbusier, e em cuja elaboração trabalhara Oscar Niemeyer. Os temas escolhidos para os painéis foram a Guerra e a Paz – síntese das preocupações e objetivos primordiais dos trabalhos das Nações Unidas.
Decorridos quatro anos de árduo trabalho, no dia 5 de janeiro de 1956 os imensos painéis foram entregues ao Ministério das Relações Exteriores. Durante o período de sua realização, a imprensa do país e do exterior acompanhou com interesse o trabalho do artista. Ao ser anunciado o seu término, desencadeou-se imenso movimento de opinião pública liderado por eminentes intelectuais, artistas e organizações culturais e até por sindicatos operários desejando a exposição dos painéis no Brasil, antes de seu envio para Nova York.
Atendendo a este clamor geral, o Itamaraty organizou a mostra dos painéis Guerra e Paz, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, transformando-o no mais amplo salão de exposição visto no Brasil até então, e no templo reverencial de um momento específico de nossa contribuição à historicidade artística da humanidade.
No dia 27 de fevereiro de 1956, nas presenças do presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira, e altas autoridades, de representantes políticos de todas as tendências, de intelectuais, artistas e de eufórica multidão em clima de júbilo nacional, foi inaugurada a extraordinária mostra.
Pouco mais de um ano depois, ante o secretário-geral das Nações Unidas, Dag Hammarskjold, e representantes do Brasil, o embaixador Cyro de Freitas-Valle e o ministro Jayme de Barros, em setembro de 1957, foram inaugurados no edifício sede da ONU, em Nova York, os painéis Guerra e Paz, de Candido Portinari.


Considerações Gerais

Em 2007, marcando o cinquentenário da inauguração dos painéis, o Projeto Portinari publicou o livro comemorativo da efeméride: Guerra e Paz – Portinari. Nele, eu afirmara que os dois painéis constituíam


[...] um discurso visual uno em sua complexa
complementaridade sobre os extremos
da desgraça e da bem-aventurança,
na trágica e comovedora visão pintada por
Portinari.
Nas páginas da história da arte, em que
surgem incontáveis guerras datadas
e localizadas, como as de Tróia, e do
Peloponeso pintadas por Eufrônio, as
Batalhas de San Romano e Anghiari, de
Paolo Uccello e de Da Vinci, ou Guernica,
de Picasso, todas são narradas por cenas
que as identificam, localizam e datam.
Com os recursos próprios ligados ao
tempo da pintura, cada uma delas participando
da variada gama de conceitos
que vai do heroísmo à dor e ao desespero
ou defendendo um solo, uma idéia ou
uma causa que as particularizam. A abordagem
de Portinari é outra. Não identifica
guerra alguma, como se afirmasse
que em essência todas se equivalem no
desencadeamento de horror e animalidade.
Nenhuma arma identificável, em
Portinari; a cavalgada apocalíptica que
corta a cena em todas as direções com
seu cortejo de conquista, guerra, fome e
morte, não traz as cores bíblicas do fogo
e do sangue, nem o preto, o branco ou o
amarelo. É o azul que domina. Uma trágica
e dorida sinfonia em azul, passando
por toda sua escala. Os tons escuros,
soturnos, ricos em variadas e profundas
nuanças violáceas, desenham as cenas
sobre fundo de claros azuis de reflexos
verdátreos, tendentes aos leves citrinos.
Contrastando com esse universo azulado,
valorizando-o cromaticamente, em contraponto
tonal, o cavalo manchetado de
carmim, a carnação de rostos, braços e
pés saindo das vestes escuras surgem em
vibrantes alaranjados que vão das sombras
trevosas violáceas, aos quase vermelhos
e rosas de intensa crepitação luminosa.
Nesse clima de violentos contrastes, de
soturna féerie, o tropel ininterrupto liberta
as feras que aterrorizam o mundo.
Estamos diante de um cataclismo aterrador
em que os tempos remotos confundem-se
com a origem dos tempos. Se o terror
nos traz à memória reminiscências de
anátemas de Luca Signorelli e de Dürer, a
concepção, inventiva e fatura nos trazem
de volta à realidade de uma modernidade
intemporal.
Realçado por clara luz, um eremita desnudo,
de pé em penitência, cobre os olhos
com as mãos, em prece e lamento. Figuras
em grupo compacto, genuflexo, braços
levantados com as mãos espalmadas e
rostos voltados para o céu, nesse cenário
de morte deixam transparecer uma aragem
de força e vida, de condenação à própria
existência da guerra.
No painel Paz, tal como acontece em seu par:
[...] são múltiplas as reminiscências de
obras anteriores de Portinari, como também
são vários os vestígios desses trabalhos
em quadros posteriores do Mestre.
O que significa dizer serem eles elos coerentes
de uma imensa produção pictórica
da mais alta representatividade do poder
criador do século XX [...]. O que emana
desse painel, nos enleva e encanta, mais
que a idéia de paz e da paz, é a própria
paz que nos invade ao contemplá-lo. É a
sensação de penetrarmos num universo
sereno, de comunhão fraterna no trabalho
produtivo, num reino mágico de cores reluzentes,
do som da ciranda de jovens num
canto universal de fraternidade e confiança,
ou da candura dos folguedos infantis. Com
todos esses tons dourados, alegres, crepitantes
de vida, o pintor parece nos dizer:
A paz universal é possível. Dia virá em que
a humanidade desfrutará a paz sem limites
no espaço e no tempo. 


O livro Guerra e Paz – Portinari foi publicado em dois volumes, com idêntica programação gráfica, em português e inglês. War and Peace – Portinari foi oferecido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Sr. Ban-Ki-Moon, momentos antes do pronunciamento do presidente da República do Brasil, abrindo a 62ª Assembleia-Geral da ONU.

 João Cândido Portinari, filho e curador da obra do autor de Guerra & Paz

A exposição dos painéis Guerra e Paz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro

A realização da exposição dos painéis Guerra e Paz de Portinari no Theatro Municipal do Rio de Janeiro insere-se no clima de crescente presença internacional do Brasil, não apenas na área econômica, mas sobretudo no reconhecimento de nossos valores sociais em progressão, valores intelectuais, morais e espirituais expressos em nosso amor à paz, à tolerância no trato dos contrários, e nosso apego à arte, vivificado em todas as manifestações do espírito nacional. A inimaginável, até então, vinda ao Brasil dos monumentais painéis Guerra e Paz de Candido Portinari que ornamentam o saguão principal do edifício sede da ONU, em Nova York, só foi possível graças a uma conjugação de fatores, destacando-se dentre eles:
Primeiro, a deliberação da grande reforma do edifício sede da ONU, no período de 2010 a 2013. Período em que as obras de Portinari teriam que ser removidas e abrigadas em outro local.
Segundo, a existência da modelar organização do Projeto Portinari que idealizou e gerenciou, posteriormente, toda a operação e motivou o governo brasileiro a solicitar e dar garantias à ONU para o empréstimo dos painéis Guerra e Paz a serem expostos e restaurados no Brasil.
Terceiro, a existência nos mais altos escalões da República, na Presidência, na Vice-presidência, no Ministério das Relações Exteriores, no Ministério da Cultura e no BNDES de autoridades sensíveis aos poderes e imperativos da Arte como manifestação insubstituível do patrimônio intelectual, moral e psíquico da nação brasileira.
Parafraseando formulação que se tornara frequente nos últimos tempos, podemos dizer que nunca na história desse país um governo prestigiou tanto a cultura nacional, como o faz agora, com grande repercussão internacional, em relação à obra de Candido Portinari.
O exemplo maior desta prestigiação está expresso na parte final da histórica fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura da 62ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em que ele diz:


Senhoras e senhores, ao entrar neste prédio,
os delegados podem ver uma obra
de arte presenteada pelo Brasil às Nações
Unidas há 50 anos. Trata-se dos murais
Guerra e Paz, pintados pelo grande artista
brasileiro, Candido Portinari.
O sofrimento expresso no mural que retrata
a guerra nos remete à alta responsabilidade
das Nações Unidas de afastar o risco de
conflitos armados.
O segundo mural revela que a paz vai muito
além da ausência da guerra. Pressupõe
bem-estar, saúde e um convívio harmonioso
com a natureza. Pressupõe justiça
social, liberdade e superação dos flagelos
da fome e da pobreza.
Não é por acaso que o mural Guerra está
colocado de frente para quem chega, e o
mural Paz, para quem sai. A mensagem do
artista é singela, mas poderosa: transformar
aflições em esperança, guerra em paz,
é a essência da missão das Nações Unidas.
O Brasil continuará a trabalhar para que
esta expectativa tão elevada se torne definitivamente
realidade.
Muito obrigado.

 Em meio a numeroso público em clima de júbilo nacional, com a presença do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, representando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do professor Luciano Coutinho, presidente do BNDES, do diretor do Projeto Portinari, João Candido Portinari, de autoridades federais, estaduais e municipais, na noite de 21 de dezembro de 2010, foi inaugurada a exposição dos monumentais painéis Guerra e Paz, de Candido Portinari, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

 Vista proporcional do painel Paz

Apoteose da Paz

Por imensuráveis que sejam as distâncias e o número de estrelas e de seus incontáveis planetas e satélites pelas infinitas galáxias na imensidão cósmica, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na noite mágica da inauguração da exposição dos painéis Guerra e Paz de Portinari, trazidos por empréstimo temporário da sede da ONU, NY, transformara-se no epicentro artístico do universo. Impossível pensar que naquele momento, em qualquer outro corpo celeste, a arte e tudo o que possa haver de superior e sublime no universo estivessem sendo celebradas com tal efusão apaixonante. Se seres de inteligência igual ou superior à existente aqui existissem ou existirem em tais espaços siderais, por certo, reverenciariam o magno espetáculo montado por uma obstinação filial apoiada por um presidente operário, que se fez representar por eminente chanceler em meio a uma plateia eufórica, interpretando em seu justo valor nossa mais vigorosa mensagem artística, transformando-a em símbolo de uma cantata universal de paz.
A alegria reinante em todos os semblantes da multidão que lotava o teatro, e que durante todo o período da exposição envolveu o edifício com intermináveis filas, deixa transparecer o justificado orgulho do reencontro de cada um e de todos com sua parcela da verdadeira alma nacional e com os elementos precursores de seus almejados destinos compartilhados na construção de um reino de perene paz e felicidade. Nem todos tinham a mesma clareza sobre a extraordinária excepcionalidade do momento que estavam vivendo, mas todos vislumbravam o privilégio que teriam pelo tempo afora de poder afirmar: “Eu estive lá!” Seguramente, a memória nacional guardará para sempre a lembrança do espetáculo de interação de todas as artes no palco do maior teatro da “cidade maravilhosa”. Precedendo o desfile da multidão diante da magistral obra de um dos maiores pintores de todos os tempos, desenrolava-se o documentário de Carla Camurati, seguido pela dança de Ana Botafogo e Alex Neoral, coreografada por David Parsons; o canto de Milton Nascimento, a sonoridade de Villa-Lobos trazida pela Orquestra Sinfônica Brasileira Jovem. Magnífico e bendito planeta este, em que a luminosidade impera, e que em suas entranhas a matéria em seu mais elevado estágio de perfectividade produz sonho, ideal e beleza, em que, mesmo entre suas diatribes intestinas e dolorosas etapas do parto do alvorecer de um Novo Mundo, fascinou o primeiro terráqueo a contemplá-lo do cosmo, arrancando-lhe a indelével exclamação: “A terra é azul!” Tão azul como o descrito por Drummond no poema declamado por Fernanda Montenegro naquela noite majestosa, diante dos painéis Guerra e Paz:
“e nada mais resiste à mão pintora [...]
a mão-de-olhos-azuis
de Candido Portinari.”
 
(PEDROSA, Israel. O Pintor do Novo Mundo. In: Revista Direitos Humanos. São Paulo: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República do Brasil, 2012. p.14-20).





Divilgação cultural
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