sábado, 5 de novembro de 2011

Waldir de Carvalho: "Relembramentos"


"E tem Waldir de Carvalho,
que, da história ao romance,
sabe dar ao seu trabalho
um mais atraente alcance."
                 (Sandro Rebel)


A trova acima é apenas uma das inúmeras (a bem dizer unânimes) referências elogiosas que, durante minha vivência cultural em Niterói, encontrei sobre a pessoa de Waldir de Carvalho. A postagem de hoje, dedicada a esta figura vem lembrar sua vida e obra e ainda veicula uma delicada crônica de Walnize Carvalho, filha que segue as veredas literárias abertas pelo pai.


Waldir Pinto de Carvalho (Perfil)



Waldir Pinto de Carvalho, filho de Antônio Pinto Pessanha e d. Carmelina da Conceição Carvalho Pessanha, nasceu na Fazenda Ciprião, 5 distrito de Campos, próximo a Santo Amaro, no dia 27 de julho de 1923.
Filho de plantador de canas, aprendeu as primeiras letras com seu tio Zezé Prisco, dono de um colégio particular, e mais tarde escrivão do 3 distrito. Continuou a estudar como autodidata.
Enquanto se dedicava à profissão de alfaiate, foi assaltado pela idéia de escrever, sendo o teatro a sua forte vocação, razão bastante para não perder o lançamento de peças no extinto Teatro Paris, na rua 13 de Maio.
Casando-se em 1946 com a Srta. Zeni Pereira de Carvalho, filha de Domingos Pereira Filho e d. Magalona Pereira da Cunha, transferiu-se para a cidade-sede do município. Em 1948, descoberto pelo locutor Agnaldo Batista, passou a colaborar com a Rádio Cultura de Campos com uma página humorística: “Jornal de Ontem”. A seguir, produziu para o animador HernonViana, que o lançou profissionalmente, o quadro “O Dr. Mata A. Machado”.
Em 1951 deixou seu cargo de contra-mestre na alfaiataria de João Waked, isto porque indicado por Prisco de Almeida, foi contratado como redator-produtor por Dr. Mário Ferraz Sampaio para a Rádio Cultura que na época mantinha uma programação no estilo da Rádio Nacional.
Durante 10 anos ali esteve dando expansão à sua vocação de escritor. Na Cultura produziu esquetes, crônicas, legendas para musicais e, sobretudo contribuiu para a criação da sua seção de rádio-teatro.
Durante este período escreveu com especial dedicação peças completas e rádio-novelas, destacando-se entre estas, “Almas Negras”, “Melodia da Alma”, “A Sentença Divina” (tendo como tema o controle da natalidade), “A Canção de Ninar” (tema judical sobre doação). Como novidade criou a rádio-novela histórica, focalizando os heróis campistas, quando foi homenageado pela Câmara Municipal em virtude de ter feito a novela “A Epopéia de Patrocínio”, a qual passou a integrar a programação oficial da Municipalidade do centenário de nascimento do “Tigre da Abolição”, conforme iniciativa do Dr. Ewerton Paes da Cunha, então Diretor de Educação da Prefeitura.
Teve radiofonizada novelas no Cairo (Egito) em parceria com Kamal Abbas.
Em 1960, o prefeito Dr. José Alves de Azevedo o nomeou tesoureiro da Prefeitura. Em 1973, com 50 anos da idade e já vovô, resolveu oficializar seus conhecimentos fazendo exames de cursos supletivos e tendo ingressado no mundo universitário. Em 1978 formou-se em Direito. Todavia, nem o seu cargo público ou a sua nova profissão o impediram de continuar escrevendo.
A partir de 1974, e durante dois anos, produziu semanalmente uma rádio-reportagem histórica sobre Campos para a Campos Difusora, sob o título de “Nossa Terra, Nossa Gente”.
Participou de toda a vida cultural de Campos, inclusive tendo participado no Festival de Cinema Super-8 com os filmes: “A Carona” e “Desajsute”.
Colaborou com todos os jornais de Campos e como quase todas emissoras radiofônicas da cidade. Em 1980, através das páginas de “A Notícia”, publicou aos domingos e, em forma de folhetim, uma peça para teatro intitulada “Essa gente Bem...”, uma sátira à sociedade campista. Encerrou participação em jornais no “Monitor Campista” em 2003.
Foi membro das seguintes instituições culturais: Academia Pedralva – Letras e Artes; Academia Campista de Letras (em ambas ocupou a presidência); Instituto Campista de Literatura; União Brasileira de Trovadores; Academia Pan-Americana de Letras e Artes; Instituto Histórico de Campos dos Goytacazes; Cenáculo Fluminense de História e Letras (Niterói); I. L. A. (Bom Jesus do Itabapoana); Academia Fluminense de Letras (Niterói, onde ocupou a cadeira do campista Azevedo Cruz).
Recebeu diversas honrarias, destacando-se: Medalha de “Honra ao Mérito” – conferida pelo Rotary Blub São Salvador (1980); Ordem Municipal do Mérito – conferida pela Câmara e Executivo municipais (1991); Diploma dos 100 anos de fundação – conferido pela Associação Comercial e Industrial de Campos (1991); Prêmio Municipal de Cultura “Alberto Lamego” – conferido pela Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (1992); Ordem do Mérito “Benta Pereira” – conferida pela Câmara e Executivo municipais (1993); Diploma e Medalha Tiradentes – conferidos pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Projeto do Deputado Barbosa Lemos) em 1994; Diploma da Acadêmico Correspondente – conferido pela Academia Itaocarense de Letras (1995) e Moção pela Câmara Municipal de Campos dos Goytacazes (1995).
Autor dos seguintes livros: “Gente que é nome de Rua”, volumes I (1986), II (1988) e III (2001); “Na Terra dos Heréos”, volumes I (1987) e II (1996) e III (1999); “O escravo cirurgião” (1988); “Cantos e Contos” (1989); “Campos depois do Centenário”, volumes I (1991), II (1995) e III (2000); “A Roda dos Expostos” (1994); “O Sorteado” (1994); “Até que chegue a Primavera” (1997); “Padre Nosso” (1998) e “Se não me trai a memória” (2003).
Como o autor dizia “somos todos uma obra inacabada”, deixou vários escritos inéditos que vão desde peças teatrais, crônicas, contos e um roteiro para TV (“Benta Pereira ou O Levante”).
Veio a falecer em 31 de dezembro de 2007 deixando viúva, três filhas, seis netos e três bisnetos.

 
Saudade: nó difícil de desatar


                                                                                                                             Walnize Carvalho

Haveria de ter (como teve) uma forte lembrança para falar dele neste mês de julho. Afinal, se ainda estivesse entre nós, meu pai teria completado no último dia 27, 88 anos.
E foi quando, meses atrás, indo à sua casa (onde ainda reside mamãe – sua companheira de tantos anos) ela me presenteou com um dos seus adornos: uma echarpe de seda colorida com o seguinte comentário: - Leve para você. Só peço que não desate o nó que foi feito por seu pai, com muito carinho para mim.
O entrelaçamento era de beleza artesanal: uma mistura de laço e nó de gravata. Belo de se ver; difícil de se fazer e impossível de se querer desmanchar.
Por um momento vi diante de meus olhos patenteada mais uma de suas artes: a de fazer nós com perfeição. E foram tantos!... O que era dado na linha da minúscula agulha em seu tempo de alfaiate; os que fazia com esmero nas múltiplas gravatas que possuía e – em especial – os que utilizava barbantes para amarrar embrulhos. Nestes não importava o conteúdo, a embalagem assumia ares de presente de aniversário.
O certo é que cada nó possuía um particular detalhe que só ele – meu pai – sabia atar e desatar.
Voltei para casa, já com o mimo no pescoço, com lágrimas nos olhos e um nó apertado na garganta.
Com avidez fui à estante do meu quarto e busquei o livro “Quase memória”, de Carlos Heitor Cony, com a certeza de que o relendo encontraria identificação com o sentimento que me dominava.
Para quem não leu (e recomendo) o autor “se reencontra com o pai – já falecido há 10 anos - através de uma encomenda que lhe chega às mãos”.
Fiz a releitura com emoção e criteriosamente extraio fragmentos que reproduzo aqui para os leitores:

“(...) Foi então que olhei bem o embrulho. Só ele daria nó exato e sólido. Só ele fazia essas pequenas coisas com perícia. (...) Colocava solenidade nas coisas, fosse apanhar objeto no chão ou fazer a barba, tudo demandava uma técnica que só ele sabia. (...) Me aproximei para admirar o nó perfeito, justo, uma obra de arte. (...) Parece exagero louvar um nó, mas o pai era o primeiro a se vangloriar na arte de dar nó. (...) Olho com admiração, com bruto respeito a obra-prima feita com aqueles dedos...”

Respiro fundo. Coincidência? Semelhança?
Fecho o livro.
Saio de casa. Caminho pela cidade. Meus passos lentos me levam pelas ruas tal qual o nó da echarpe me levou “pelas ruas da memória”.
(julho/2011)




Divulgação Cultural
(Clique na imagem para ampliar)


domingo, 30 de outubro de 2011

A exposição dos Painéis de Portinari (texto inédito de Israel Pedrosa).


Painéis Guerra e Paz no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro


O ano de 2010 encerrou-se com uma exposição de arte que talvez tenha sido a mostra da década. Nessa data, os painéis Guerra e Paz, do pintor Cândido Portinari, retornaram ao Brasil para uma nova apresentação pública.
Fora de nosso país há mais de 50 anos, as referidas obras (presenteadas às Organizações das Nações Unidas – ONU) ocuparam o mesmo espaço de sua primeira apresentação, dias antes de seguir para os EUA, em 1957. Dado as suas dimensões, os painéis não puderam ser expostos no Museu Nacional de Belas Artes, tendo, sido, então, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro o palco de Portinari.
Em 2010, novamente o teatro recebeu os painéis para nova apreciação do povo brasileiro. Na ocasião, muitos textos foram produzidos para registrar as impressões provocadas pela intensa carga dramática do painel Guerra e pela mensagem pacifista trazida pelo painel Paz.

Devo confessar que tendo assistido a mostra em seu último dia, fiquei motivado (pela admiração ou, mesmo, pelo espanto que as obras me causaram) a escrever ensaios sobre os painéis. Cheguei a rascunhar uma introdução ao painel Guerra (fragmento que veiculo como apêndice ao fim desta postagem), interrompi, entretanto, meu exercício ao saber que o artista plástico Israel Pedrosa (amigo e ex-aluno de Candido Portinari) também redigia um texto sobre as obras.
A postagem de hoje – quiçá a mais especial que o Blog Literatura-Vivência já tenha publicado – conta com o texto inédito de Israel Pedrosa comentando a exposição de Portinari. Certos de que a exposição dos painéis Guerra e Paz sempre poderá ser bem narrada, agradecemos a exclusividade e o privilégio a Mestre Pedrosa.

Fachada do Theatro Municipal do Rio de Janeiro



A exposição de Guerra e Paz – Portinari


                                                                                                                                      Israel Pedrosa

A atual realização da exposição dos painéis Guerra e Paz de Portinari, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, insere-se no clima de crescente presença internacional do Brasil, não apenas na área econômica, mas sobretudo no reconhecimento de nossos valores sociais em progressão, valores intelectuais, morais e espirituais expressos em nosso amor à Paz, à tolerância no trato dos contrários, e nosso apego à arte, vivificado em todas as manifestações do espírito nacional.
A inimaginável, até então, vinda ao Brasil dos monumentais painéis Guerra e Paz de Candido Portinari que ornamentam o saguão principal do edifício sede da ONU, em Nova York, só foi possível, graças a uma conjugação de fatores, destacando-se dentre eles:
Primeiro, a deliberação da grande reforma do edifício sede da ONU, no período de 2010 a 2013. Período em que as obras de Portinari teriam que ser removidas e abrigadas em outro local.
Segundo, a existência da modelar organização do Projeto Portinari que idealizou e gerenciou posteriormente, toda a operação, e motivou o Governo Brasileiro a solicitar e dar garantias à ONU para o empréstimo dos painéis Guerra e Paz a serem expostos e restaurados no Brasil.
Terceiro, a existência nos mais altos escalões da República, na Presidência, na Vice-presidência, no Ministério das Relações Exteriores, no Ministério da Cultura e no BNDES de autoridades sensíveis aos poderes e imperativos da Arte como manifestação insubstituível do patrimônio intelectual, moral e psíquico da nação brasileira.
Parafraseando formulação que se tornara frequente nos últimos tempos, podemos dizer que nunca na história desse país um governo prestigiou tanto a cultura nacional, como o faz agora, com grande repercussão internacional, em relação à obra de Candido Portinari.
O exemplo maior desta prestigiação está expresso na parte final da histórica fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura da 62ª Assembléia Geral das Nações Unidas, em que ele diz:

“Senhoras e Senhores,

Ao entrar neste prédio, os delegados podem ver uma obra de arte presenteada pelo Brasil às Nações Unidas há 50 anos. Trata-se dos murais “Guerra” e “Paz”, pintados pelo grande artista brasileiro, Candido Portinari.
O sofrimento expresso no mural que retrata a guerra nos remete à alta responsabilidade das Nações Unidas de afastar o risco de conflitos armados.
O segundo mural revela que a paz vai muito além da ausência da guerra. Pressupõe bem-estar, saúde e um convívio harmonioso com a natureza. Pressupõe justiça social, liberdade e superação dos flagelos da fome e da pobreza.
Não é por acaso que o mural “Guerra” está colocado de frente para quem chega, e o mural “Paz”, para quem sai. A mensagem do artista é singela, mas poderosa: transformar aflições em esperança, guerra em paz, é a essência da missão das Nações Unidas.
O Brasil continuará a trabalhar para que esta expectativa tão elevada se torne definitivamente realidade.

Muito obrigado.” 

Em meio a numeroso público em clima de júbilo nacional, com a presença do Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, representando o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Professor Luciano Coutinho, Presidente do BNDES, do Diretor do Projeto Portinari, João Candido Portinari, de representantes do BNDES, de autoridades federais, estaduais e municipais, na noite de 21 de Dezembro de 2010, foi inaugurada a exposição dos monumentais painéis Guerra e Paz, de Candido Portinari, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Na noite de encerramento da exposição, no palco à frente do painel Paz, ladeados pelos representantes do BNDES, o pintor Israel Pedrosa, a Secretária de Cultura do Estado, Adriana Rattes, o Prof. João Candido Portinari, filho de Portinari e a cineasta Carla Camurati, Diretora do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

(Veja mais fotos do evento no álbum do picasa)


Apoteose da paz

Por imensuráveis que sejam as distâncias e o número de estrelas e de seus incontáveis planetas e satélites pelas infinitas galáxias na imensidão cósmica, o Teatro Municipal do Rio de Janeiro na noite mágica da inauguração da Exposição dos painéis Guerra e Paz de Portinari, trazidos por empréstimo temporário da sede da ONU, NY, transformara-se no epicentro artístico do universo.
Impossível pensar que naquele momento, em qualquer outro corpo celeste, a arte e tudo o que possa haver de superior e sublime no universo, estivesse sendo celebrado com tal efusão apaixonante.
Se seres de inteligência igual ou superior a existente aqui existissem ou existirem em tais espaços siderais, por certo reverenciariam o magno espetáculo montado por uma obstinação filial apoiada por um presidente operário, que se fez representar por eminente chanceler em meio a uma platéia eufórica, interpretando em seu justo valor nossa mais vigorosa mensagem artística, transformando-a em símbolo de uma cantata universal de paz.
A alegria reinante em todos os semblantes da multidão que lotava o teatro, e que durante todo o período da exposição envolveu o edifício com intermináveis filas, deixa transparecer o justificado orgulho do reencontro de cada um e de todos com sua parcela da verdadeira alma nacional e com os elementos precursores de seus almejados destinos compartilhados na construção de um reino de perene paz e felicidade.

Nem todos tinham a mesma clareza sobre a extraordinária excepcionalidade do momento que estavam vivendo, mas todos vislumbravam o privilégio que teriam pelo tempo afora de poder afirmar: eu estive lá!
Seguramente a memória nacional guardará para sempre a lembrança do espetáculo de interação de todas as artes no palco do maior teatro da “cidade maravilhosa”.

Precedendo o desfile da multidão diante da magistral obra de um dos maiores pintores de todos os tempos, desenrolava-se o documentário de Carla Camurati, seguido pela dança de Ana Botafogo e Alex Neoral, coreografada por David Parsons; o canto de Milton Nascimento, a sonoridade de Villa-Lobos trazida pela Orquestra Sinfônica Brasileira Jovem.
Magnífico e bendito planeta, este, em que a luminosidade impera, e que em suas entranhas a matéria em seu mais elevado estágio de perfectividade produz sonho, ideal e beleza, em que, mesmo entre suas diatribes intestinas e dolorosas etapas do parto do alvorecer de um Novo Mundo, fascinou o primeiro terráqueo a contemplá-la do cosmo, arrancando-lhe a indelével exclamação: “a terra é azul!” Tão azul como o descrito por Drummond no poema declamado por Fernanda Montenegro naquela noite majestosa, diante dos painéis Guerra e Paz: “e nada mais resiste à mão pintora (...) a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari.”

Painéis Guerra e Paz expostos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro

Guerra e Paz em novo ângulo


Interpretação fenomenológica do painel Guerra, de Cândido Portinari (fragmento)


                                                                                                                 Roberto Kahlmeyer-Mertens

“(...) tudo que é consequência de um tempo de guerra, no qual todo homem é inimigo de todo homem; o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e intenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto. Consequentemente não há o cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento na face da terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.” (1)


Quando em arte se evoca o tema guerra e paz, é a ideia da guerra que primeiro nos toma. Imagens de coisas da guerra ganham lugar. Entre essas, antes mesmo do ideológico no conflito de secessão nos Estados Unidos ou das nossas polêmicas reminiscências contra o Paraguai (eloquentemente retratadas por Victor Meirelles), ganham naturalmente imagem, em primeiro lugar, a Guernica, de Picasso; depois, a série de gravuras Desastres da Guerra, de Goya. Dispensando a apresentação a ambas, diremos, destes, apenas que retratam a face explicitamente violenta do fenômeno. Entretanto, se abordada a guerra como um fenômeno, é licito considerar sua aparição e, do mesmo modo, suas zonas de “sombreamento”; assim, para além das crônicas de heroísmo dos teatros de batalha e da sua inevitável face sangrenta, há uma outra realidade objetiva que depende de sutil percepção para posteriormente ser evidenciada em toda sua dramaticidade. Esta se expressa em palavras no texto de nossa epígrafe, extrato do célebre tratado político de Hobbes, e em imagens no painel Guerra (1956) de Portinari.

Diante de sua grandiloquência, no instante após experimentar um silêncio admirado, nos sentimos tentados a falar sobre a obra, de diversas maneiras, usando variadas lentes. As falas com acento psicanalítico e estruturalista saem na frente e por isso mesmo são as ferramentas teóricas que a crítica de arte julga as mais apropriadas para tais dissertações. Com a venia dos que tão talentosamente se movem nestes domínios, hesitemos ante ao ímpeto de nos deixar seduzir pela astúcia metódica, pois, se resistirmos um pouco mais a entrega ligeira à fala, talvez a obra se digne a mostrar-se por si mesma, sem que tenhamos que recorrer às teorias próprias às referidas correntes. Se guardarmos a postura atenta, certamente evitaremos nos envolver na imbricada malha daquela refinada teoria psicologista, responsável pela submissão da obra a um conjunto de símbolos que encontram sede na figura de um sujeito cuja dimensão inconsciente teria parcela decisiva em sua determinação. Do mesmo modo, nos acautelaríamos de incorrer nos infindáveis malabarismos dialéticos do método marxista, que até hoje não nos levaram além de pareceres judiciosos segundo os quais Portinari é apenas um modernista brasileiro (ao lado de Di Cavalcanti, Tarsila e Cícero Dias)(2) ou de que é o artista prodigioso que “assimilou bem Picasso e mais a luminosidade do Brasil”.(3) Na contramão dessas atitudes obstrutivas do ver, deixemos a obra falar por si mesma; deixemos que ela própria oriente nosso olhar. Apreciação? Não, descrição.
O que mostra o quadro? (...)


PORTINARI, Cândido. Guerra. Nova York: ONU, 1952-56 (14m x 10m )

Pormenor do painel Guerra.

Novo detalhe do painel Guerra.


Autógrafo de Cândido Portinari

Notas:
 
1. HOBBES, Thomas. Leviathan. Oxford: Clarendon Press, 1951, p.96-97.
2. MERQUIOR, José Guilherme. O fantasma romântico e outros ensaios. Perópolis: Vozes, 1980.
3. GARAUDY, Roger. Elogio da diferença - Projetos de utopia com Roger Garaudy. In: O sorriso do caos. Rio de Janeiro/São Paulo, 1997. p.128