sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Kairós e poesis segundo Vinícius de Morais




Daniel Defoe, em páginas tantas de seu romance Moll Flanders, diz que se reconhece um grande amante quando, junto a ele, o êxtase remonta o momento da criação. Esta máxima estética bem poderia ser agenciada em favor dos poetas. Um poeta é genuíno quando sua poesia é capaz de soar como na origem, com o mesmo viço da primeira palavra entoada por um homem na atmosfera diáfana da gênese; quando nela reside o mistério que reúne em corifeu poetas seculares; quando em seu verbo, mesmo respeitando as fronteiras da finitude humana, expressam-se referências que trazem à tona este que poetiza. Vejamos como isto se dá junto ao poeta/amante Vinícius de Morais:



Poética

                                                                                       Vinícius de Moraes

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.





(MORAES, Vinícius. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998)





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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

"A morte de um leão", poema de Leconte de Lisle



Leão morto (Löwendenkmal), monumento em Luzern - Suíça
(Clique sobre a imagem para ampliá-la)
                                                                                                                 
            

                                                                                                                                 Leconte de Lisle

La mort d’um Lion


Étant un vieux chasseur altéré de grand air,
Et de sang noir des boeufs, Il avait l’habitude
De contempler de haut les plaines et la mer,
Et de rugir em paix, libre em as solitude.

Aussi, comme um damné que rode dans l’enfer,
Poour l’inepte plaisir de cette multitude
Il avait et venait dans sa cage de fer,
Heurtant les deux cloisons, avec sa tête rude.

L’horrible sort, enfin, ne devant plus changer,
Il cessa brusquement de boire et de manger:
Et la mort emporta son âme vagabonde.

Õ coeur toujours en proie à la rébellion ,
Qui tournes, haletant, dans la cage du monde,
Lâche, que ne fais-tu comme a fait ce lion?


A morte dum leão


Ávido do ar livre era um velho caçador
Ao sangue negro dos bois habituara-se
E do alto as planícies e o mar a contemplar.

No inferno vagando como um réprobo,
Desta multidão pro prazer estéril
Na janela de ferro andando pra lá e prá cá,
A rude cabeça contra dois tabiques batendo.

O infausto destino, por fim, agora consumado:
De beber e comer bruscamente cessou,
E a alma vagabunda a morte levou-lhe.

Oh, coração, pela revolta sempre atormentado,
O qual, arquejante, pra janela do mundo regressas,
Covarde, por que não ages como o fez este leão?








Divulgação Cultural
Clique na imagem para ampliar)



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Uma casa, um poeta e o Sebastião, artigo de Emmanuel Macedo Soares.


Enquanto lia o testemunho afetivo de Emmanuel sobre o poeta araruamense José Geraldo da Conceição Caú, veio-me de imediato à memória aquela música do Gonzaguinha que diz assim: “Enquanto eu acreditar que a pessoa é coisa ‘mais maior de grande’...” (ouça a música ao fim da postagem).
Como ando levando muito a sério essas intuições/memórias que de vez em quando me assaltam, julguei adequado, no dia de hoje – 6 de fevereiro, aniversário de 152 anos de Araruama – publicar o texto que evoca o legado de um dos mais diletos filhos daquela cidade que vem sendo chamada de “Cancún brasileira”.
É a contribuição de vidas como a de Kaú (tão grande que faz com que o Gonzaguinha precise contrariar o vernáculo para expressar toda sua grandeza) que valoriza o capital intelectual e simbólico das gentes e dos lugares.
Encontre o endosso para essas palavras introdutórias no artigo de Emmanuel Macedo Soares, escrito com exclusividade para o Literatura-Vivência:



Uma casa, um poeta e o Sebastião


                                                                                                                   Emmanuel Macedo Soares

O casarão que olhava desde 1872 para a matriz de São Sebastião de Araruama, sede da Câmara, Prefeitura, coletorias e quanto mais ali coubesse, aguardava há vinte ou trinta anos o destino de todo prédio antigo em cidade moderna: ou demolição, ou ruína.
Pois escapou. Virou uma bela Casa de Cultura, bonita, confortável e luminosa como deviam ser todas as Casas de Cultura. E melhor ainda: tomou o nome de um poeta da terra, talvez o de maior mestria no trato das palavras, que partiu moço mas deixou marcas e heranças de sua genialidade.
No registro civil, José Geraldo da Conceição Caú. Kaú para os amigos, alunos, leitores, espectadores, resumindo em três letras uma vida curta, mas múltipla, porque além de poeta lecionava português e literatura, escrevia e montava peças teatrais e ainda lhe sobrava inspiração para pintar ou fuxicar os mistérios insondáveis da filosofia.
Eu o conheci pirralho, quer dizer, quando ele era pirralho. Introvertido, silencioso, angustiado às vezes, mas de uma angústia que não era doente, nascia de sua precoce consciência do mundo. Nos identificamos num montão de coisas e divergimos num montão de coisas, porque divergir é próprio dos gênios, e ele era gênio.
Tínhamos um amigo comum, o Sebastião Raposo, que eu vi nascer, crescer e morrer jovem também, muito mais jovem que o Kaú. Não era poeta, nem precisava ser, porque o que tinha de bondade e pureza no coração e na alma valia por dez ou vinte Lusíadas.
Vem tudo isso a propósito porque o prefeito André Mônica fez uma bela restauração na Casa de Cultura de Araruama e a colocou sobre patronato do Kaú, que por sua vez escreveu um de seus mais sentidos poemas quando da morte do Sebastião.

E aqui vos deixo com os três, o poeta, seu amigo e seu poema:

 
Existe, sempre, a vida...

                              Para Sebastião Raposo

Um corpo descansa...
Nós, os corpos inevitavelmente cansados.
Um dia, um; depois outro.
Nós, os muitos nós das nossas tantas encruzilhadas.
Uma parada, comum, obrigatória,
embora os corações não tenham hora...
Uma palmeira, um cipreste,
uma lajem, sua inscrição...
Meu Deus! Como somos datas,
palavras e números como pedras...
Extremamente vãos os mármores gloriosos de toda competição.
Enquanto a natureza alcança o céu tão fácil,
nós fazemos do ter sólido uma pesada profissão.
A palmeira está, simplesmente, no tronco da vida,
nós, os homens, precisamos da morte
para nos sentir irmãos.
Por que o homem chora?
Porque fica. Ou porque, a cada amigo de que se despede,
também vai indo embora...

Índice de imagens:

Foto 1: Casa de Cultura de Araruama (foto oficial de divulgação);
Foto 2: Kaú no traço da artista plástica Luzia Nametalla;
Foto 3: Uma das últimas fotos do poeta Kaú (acervo da família).



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Divulgação Cultural
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