sexta-feira, 13 de maio de 2011

"Misael", de A. Barcellos Sobral (um livro precioso!)

Quem são os “atores” da Renascença Fluminense? As postagens anteriores suscitaram perguntar como essa. Essas desejam saber se teríamos talentos que pudessem encabeçar a proposta de um renascimento da cultura literária fluminense (e, se caso houvesse, quem seriam essas figuras). As postagens que se seguirão a esta vêm responder a essas indagações. Apresentaremos alguns dos escritores que compõem o significativo cenário da literatura fluminense (sejam eles vivos-atuantes ou pertencentes a um passado ainda muito vigente). Consideremos homenageados os nomes aqui contemplados; estejamos, pois, preparados para o que é reconhecido como o melhor e o mais louvável na literatura feita no Rio de Janeiro.


Fragmentos de Misael – Crônica de uma paternidade, por A. Barcellos Sobral


1.
Quando ele vier, cintilará mais o cristal da minha humanidade.
Não é a estrela que impõe alma às trevas?
Quando meu filho vier, será preciso estar como uma caixinha de música que alimentará as primeiras alegrias da sua atenção.
Quando ele vier, entrará em mim como um barco que tocará onde nenhum outro jamais tocou.

2.
Como será a face de meu filho?
Quem dirá as cores do dia a ponto de amanhecer.
Se ele se assemelhar a mim será como a água que reflete os picos profundos.
Se for como tu, Inaiá, será como a açucena que imita a açucena, a beira do caminho violento.

3.
A lembrança de que vou ser pai repica em mim como sinal de festa, no sino da igreja.
Mas Inaiá está pesada e lenta como nuvem carregada de chuva.
A chuva desperta, na semente, o clarão da vida.
Meu filho vai despertar em mim aquela vida de que sua vida precisará para encontrar a vida.

4.
Por enquanto os braços estão abertos. Aguardando-o como o sol.
Como o sol que ainda não nasceu e já colore o horizonte e já matiza ele minha vida, impaciente do seu advento.
Até agora o cofre está vazio. Quando ele nascer, uma pérola cairá no fundo, e o pobre de hoje não mais será tão pobre. Enricará, com a maciez dos seus dias.

5.
Inaiá acaba de bordar a manta que agasalhará o primeiro sono do nosso filho.
É um pano sem gala. Nenhum luxo o guarda, além do aparato de nossas esperanças.
Cada ponto, cada arabesco que ela gravou no agasalho nele prendeu sua alma de adoração.
Quando ele, na manta, se enrolar, será na alma de sua mãe que se enrolará.
Ele pode vir. Com o frio da noite. Ou com o acalanto da tarde. Uma constelação de confiança espera-o junto ao berço.

6.
Durante o dia, os pensamentos de espera entrecruzam-se como andorinhas curiosas. Em festa.
À noite, os pensamentos mudam. Esmorecem, na languidez do quarto, no ócio das trevas. Então, caio num claro-escuro de dúvidas. De pressentimentos. Como se ele tivesse vindo, e devêssemos seguir para a primeira partida com a vida.
Por que essa inquietação? Esse balé de dúvidas, de zelos?

7.
Quero-te paciente, Inaiá, como a chuva que se demora sobre a terra, apaziguando-a para o gênio das sementes.
O lavrador prepara o solo para que a espiga se opulente. Eu cuido da terra plantada do coração, responsáveis pelas semeadas que o farão florir.
Íngreme, sozinho é o planalto do ser. No topo desse planalto o meridiano da vida. Sozinho terá ele de subi-lo. Que, ao longo das subidas, suas quedas encontrem ânimos na sabedoria de nossa paciência.

8.
Ele ficará entre nós dois, como ponte entre dois continentes complementares.
Como o canal que, unindo dois lagos, arrasta um para o outro. E assemelhará, cada vez mais, os dois lagos inseparáveis.
(...)
(SOBRAL, A. Barcellos. Misael – Crônicas de uma paternidade.
Niterói: Cromos, 1996.)



Biografia:
Poeta, teórico da literatura e esteta da arte nascido em 1919, no município de Campos dos Goytacazes/RJ. Dono de uma obra poética sólida, propõe ideias estéticas para a elaboração daquilo que, em Contemplação da Unidade, sua principal obra, chamou de “poesia integral”. Nesse tratado de metafísica natural, o autor conjuga conceitos de filosofia de física quântica e física clássica, tangendo diretamente a termodinâmica clássica do físico alemão Max Planck e a transdiciplinaridade do professor Pierre Weil (holística).

Bibliografia:
Poema/1° Caderno. Campos: Clube de Poesia de Campos, 1955.
No alto como as estrelas. Rio de Janeiro: Cátedra, 1986.
Misael – Crônicas de uma paternidade: Niterói: Cromos, 1996.
Contemplação da unidade – Tentativa de uma holística da existência. Niterói: Lachâtre, 1998.
Contemplação da unidade – Tentativa de uma holística da existência. Niterói: Nitpress, 2008.