quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Zetinho: O encontro do futebol com a literatura fluminense



Já era hora do futebol encontrar a literatura no L&V.
Vamos pelas mãos de Bruno Pessanha e pelas chuteiras de Zetinho a duas das muitas paixões nacionais:





Zetinho 

Em 1938, Murundu, a 50 km de Campos, no norte do Estado do Rio de Janeiro, tinha estação de trem (única forma de acesso ou saída da Vila) e uns 300 habitantes, se tanto. Rua de terra, casario, igreja, armazém e farmácia compunham o distrito - um fim de mundo, por assim dizer. Os fazendeiros e sitiantes criavam gado ou plantavam cana-de-açúcar, atividades predominantes em todo o município; mas, do ponto de vista esportivo, Murundu era uma miniatura do Brasil: tinha torcedores e jogadores de futebol. Naquela época, já se podiam acompanhar os jogos pelo rádio de seu Donizetti, o dono da farmácia; ambos únicos na Vila – o rádio e a farmácia.
Situada exatamente entre dois outros lugarejos com características semelhantes, Murundu se comunicava com o mundo através desse aparelho e do telégrafo da ferrovia. O fato de a Vila ter sido escolhida como ponto de parada dos comboios da Leopoldina Railway estava a indicar seu potencial de futuro entreposto comercial da região.
O farmacêutico trabalhava sempre com um longo e engomado jaleco branco e só saía à rua de terno, gravata e chapéu, pois era assim que os senhores de respeito se vestiam, na época. Mas, apesar do formalismo, gostava muito de futebol. Tanto que, sempre que podia, fazia coincidir as viagens a Campos com os fins de semana, sobretudo quando acontecia a partida final do campeonato campista, disputado rotineiramente pelos times do Goitacaz e Americano, de grande torcida no Norte Fluminense.
Depois que seu filho Zetinho completara 5 anos, passara a acompanhar o pai na arquibancada do estádio da Rua dos Goitacazes. Identicamente ao que sucedia com Flamengo e Fluminense na Capital, os times de Campos tinham torcidas diferenciadas: o Americano, uniforme branco e preto, contava a maioria dos seu torcedores na classe abastada. Era o clube da elite, para o qual seu Donizetti gostaria que o menino torcesse. E o Goitacaz, azul e branco, era o time popular. 
As idas de seu Donizetti a Campos eram mensais, tanto por causa de seu trabalho quanto para atender a seu desejo de estar por dentro do que se passava no país e no mundo. O rádio não dava conta dessas necessidades de homem do interior. Era bom conversar com fornecedores e amigos e ler o "Monitor Campista" para se atualizar com as notícias locais e internacionais. Assim, acompanhava a movimentação do governo de Getúlio Vargas, que assumira o poder em 1930 e, como caudilho de fronteira, tão cedo não pensava dele apear-se.
Além do farmacêutico, quantos na Vila faziam mensalmente o mesmo tipo de contato com a sede do município ou com um centro maior de informações? O padre, o dono do armazém e talvez meia-dúzia de grandes agricultores e pecuaristas. Estes, porém, residiam nas suas propriedades, e em geral faziam na Vila apenas compras de armazém e farmácia. De volta dessas visitas, tornavam-se a fonte de informações para os outros moradores. Assim, um fazendeiro encostado no balcão para um trago de pinga trazia sempre  novidades e relatos de fatos acontecidos em Campos e na Capital – quase sempre ligados à política municipal, federal ou aos usineiros (preço da cana). A informação dizia respeito às medidas do Governo Vargas ou às brigas entre o prefeito e a oposição, ou  aos  craques de futebol e suas condições físicas para os próximos jogos.
Boa parte das notícias internacionais referia-se à Rússia, Alemanha e Itália, países sob regimes ditatoriais, cujos líderes alimentavam ambições expansionistas. No Brasil, essas disputas imperialistas já começavam a se refletir, levando o país a um estado de efervescência política. Embora Vargas tendesse disfarçadamente para o fascismo, durante a década de 30 seu governo viu-se sob o fogo cerrado de adeptos do integralismo e comunismo. A ebulição política chegou ao ápice quando Luiz Carlos Prestes (em 1935) e Plínio Salgado (em 1937) lideraram tentativas armadas, um tanto caricatas, de derrubá-lo do poder.
Seu Donizetti, patriota, sentia-se atraído pelo integralismo, vertente brasileira do fascismo. A expressão maior desse regime era a Itália, onde predominava a figura de Benito Mussolini, il Duce. De Roma, as manifestações públicas do regime, as marchas e passeatas cívicas, o culto à eugenia, ecoavam  aqui como algo saudável, atraente, digno de ser imitado, pelo caráter de infalibilidade e de paraíso coletivo que transmitiam. Em pouco tempo, pela pregação de Plínio Salgado, Gustavo Barroso e outros líderes de projeção, o número de adeptos do fascismo cresceu no País. Se os fascistas italianos vestiam camisas negras, aqui no Brasil, para dar um toque de autonomia ao movimento, o verde foi escolhido para colorir as camisas nas manifestações  coletivas de amor à Pátria.
Na pequenina e distante Murundu, o slogan "Tradição, Família e Propriedade" e a leitura do "Manifesto Integralista", de Plínio Salgado já haviam convencido o senhor Donizetti de que o integralismo era o regime ideal para o Brasil. Do mesmo tamanho de seu amor à Pátria, a  empolgação com o "Manifesto"  foi tanta que, três meses depois, decidiu  demonstrá-la  ao povo local através de uma caminhada, à semelhança das passeatas promovidas por Plínio Salgado nas maiores capitais do país. Assim, em 1936, Murundu assistiu a evento memorável: seu Donizetti e Zetinho, então com 7 anos, peitos inflados de orgulho, marcharam à frente de 30 moradores, todos vestidos de camisa verde.
Na posse do único rádio do lugar estava certamente a raiz principal de todo o prestígio do farmacêutico, capaz de mobilizar 10% dos murunduenses para uma manifestação política. Até o padre, simpatizante notório de Plínio Salgado, pensou integrar a passeata, não o fazendo para evitar falatórios.  Dos participantes, parte não sabia o motivo por que marchavam. Sabiam, contudo, que a adesão à marcha era condição essencial para continuarem ouvindo os jogos dominicais do Flamengo, do América e demais times do Rio de Janeiro  -  oportunidade de escutar a voz rascante de um locutor ranheta chamado Ari Barroso.
O status do farmacêutico era grande no local. Naquela época, a farmácia e o armazém eram os pontos de encontro em qualquer lugarejo perdido no interior do país. Na farmácia, a beleza das estantes de madeira nobre, cheias de frascos coloridos, chamava a atenção dos moradores tanto quanto o poder do profissional de manipular as misteriosas substâncias neles contidas.  Seu Donizetti disputava com o padre e o dono do armazém a atenção dos moradores de Murundu. Ele tinha consciência, ainda que difusa, de ser um agente social do lugar. Daí ele se ter envolvido com o movimento integralista, liderado por Plínio Salgado, em cuja pregação messiânica de renovação  moral da Pátria  acreditava piamente. O rádio era o outro elemento de prestígio de seu Donizetti, superando até mesmo o do padre, que não via com  olhos tão cristãos o uso daquele aparelho para atrair os moradores, sobretudo quando o horário dos jogos coincidia com o da missa vesperal aos domingos. Mas o que fazer? Seu Donizetti era bom católico, contribuinte de mão aberta e assíduo às missas.
Da marca Phillips, o rádio era enorme. Suas dimensões - 60cm de altura x 35 de largura e 30 de profundidade – eram de per si uma atração.  Ovalado na parte superior, a frente, em madeira entalhada e vazada, com um forro de seda marrom, lembrava pequeno altar. Funcionava à base de uma bateria grande, cuja recarga era feita em Campos. A curiosidade que despertava pelo entretenimento produzido só era comparável ao transtorno que era o seu transporte, de trem, para recarga ou troca de válvulas. Um trambolho, sem dúvida, mas tarefa que seu Donizetti cumpria, orgulhoso, com a ajuda do filho.
Além da farmácia, o farmacêutico possuía um terreno próximo ao trilho da ferrovia e um sítio mais distante. Por insistência de Zetinho, o pai mandou fincar no terreno umas traves, construindo o segundo campo de futebol de Murundu -  o que desde logo tornou o menino famoso entre os coleguinhas do Grupo Escolar, que passaram a chamá-lo  “o dono do campinho”. Os jogos da meninada passaram a fazer tanto sucesso quanto os do campo do Murundu Futebol Clube, em cujo gramado as partidas se restringiam ao embate de casados contra solteiros.  Tanto num campo como no outro, a bola utilizada era de couro e a câmara de ar de borracha tinha um umbigo para enchê-la; depois o umbigo era embutido e o local em volta costurado por um fio de couro, ali causando um abaulamento.  Prejudicada em sua esfericidade, a bola não era ideal para a prática do futebol, mas era o modelo mais fácil de encontrar e o mais barato. Porém, o que importava essa imperfeição geométrica, se correr atrás dela, chutá-la, fazer gol na meta da vida era preciso... E era a bola usada na maioria dos campos de várzeas das cidades brasileiras, onde se chutava até bola de pano.
Aluno aplicado, nas suas horas de folga Zetinho só falava em futebol. Aos 6 anos, sua mãe, dona Magnólia, lhe dera  uma faixa vermelha para pôr na testa. Era a cor do América Futebol Clube, time carioca pelo qual ela passara a torcer por gostar muito das marchinhas carnavalescas de Lamartine Babo (o mais entusiasta torcedor do time americano). No ano seguinte, a camisa com que jogava era vermelha; mas, tendo virado torcedor do Flamengo, campeão carioca naquele ano, por influência dos parceiros de campo, Zetinho pediu à mãe que acrescentasse faixas pretas à camisa rubra. 
                                               *** 
Em 1938, ano da 3a Copa do Mundo (realizada na França), o futebol, paixão nacional, já havia sido incorporado à cultura brasileira, e Murundu não fugia à regra. Ansiosos, os seus habitantes queriam torcer pelo escrete nacional nos campos franceses.
A participação nas Copas anteriores tinha sido decepcionante: derrota em campos uruguaios em 1930 e um triste 14o lugar em 1934. Na França, esperava-se que seria diferente. Apesar das pressões de dirigentes de clubes e federações, a seleção treinada por Ademar Pimenta tinha realmente os melhores jogadores do país: Batatais no gol, Domingos da Guia na defesa e Leônidas da Silva no ataque. Um timaço, que não podia fazer feio. Até Zetinho sabia o nome dos jogadores. Ele ficava sempre atento ao que os meninos mais velhos falavam sobre os craques da seleção. Quem era o grande driblador, quem fazia mais gol, quem fazia as melhores defesas. E, curiosidade aguçada, ia para casa perguntar ao pai:
-        Pai, o Leônidas é mesmo o nosso maior jogador? Os meninos estão dizendo que ele fez um  gol de bicicleta, como é que pode isso, pai? Nunca vi ninguém entrar de bicicleta no campo...
        Seu Donizetti achou difícil explicar:
-        A jogada nada tem a ver com o brinquedo que comprei para você no ano passado. Acontece quando a bola é cruzada pelo alto na área adversária e o jogador está de costas para o gol. A bola vem em sua direção e ele não tem tempo de se virar. Salta e as pernas pedalam  no ar uma bicicleta imaginária; um dos pés bate na bola e ela vai direto para a meta adversária e estufa as redes. Foi Leônidas, o nosso craque, quem primeiro fez  essa jogada que encantou os europeus. E como ele é negro, passou a ser chamado de "Diamante Negro". Sabe, meu filho, eu nunca vi, mas imagino que deve ser um lance muito bonito, verdadeira acrobacia, coisa de circo! - completava o pai que, empolgado com a beleza plástica da jogada (vista apenas em foto de jornal), esquecia-se que falava com uma criança.
*** 
Toda vez que, no andar de cima da farmácia do senhor Donizetti, o rádio ia ser ligado para transmitir uma partida de futebol, Zetinho se apressava em ajudar na arrumação da sala, trazendo as pesadas cadeiras dos outros cômodos. Tudo pronto, ele se acomodava bem em frente da estante com o rádio. O pai observava aquela dedicação e, por momentos, se preocupava com o exagerado interesse do filho. “Será que essa mania não vai prejudicar seus estudos?” – perguntava-se. Mas aquele assento especial não era muito esquentado pela bundinha magra do garoto. A cada amigo ou correligionário que chegava, o farmacêutico olhava na direção do menino, que prontamente atendia à ordem muda do pai e passava para a fileira de trás. No dia do jogo contra a Suécia, a sala estava cheia e Zetinho, como sempre, sentado no banco da última fileira. Nem mesmo via o rádio.
No prélio anterior, o Brasil havia sido derrotado por 2 a 1 pelos italianos. Na tarde da disputa pelo 3º lugar com a Suécia, a sala grande já estava preparada, com todas as cadeiras e bancos à frente da mesa com o rádio. Era esperada casa cheia; no mínimo uns trinta amigos e fregueses do farmacêutico viriam ouvir a irradiação.
À semelhança da Alemanha nazista, o culto à eugenia tinha no esporte o meio mais adequado para mostrar a superioridade do regime italiano. E a evidência maior do uso político dos seus atletas foi a troca, já a partir das quartas-de-final, da tradicional camisa azul do time (a conhecida Squadra Azurra) pela negra do partido fascista. A nova cor da camisa foi considerada um acinte aos franceses, que hostilizavam a seleção do técnico Pozzo (ou do Duce, para eles o  verdadeiro escalador do time) desde que chegara ao país.
Esses fatos não eram de conhecimento dos moradores da Vila,  mas o time italiano tinha a preferência de seu Donizetti que, além de admirador do fascismo, por ser oriundo, considerava a Itália a sua segunda pátria. Nessas horas, mão direita junto ao peito, pensava: “Aqui nós desfilamos com a camisa verde. Mas, quem sabe, um dia, eu ainda vou marchar em Roma, diante do Duce, com a camisa negra!”
O que não estava nos planos do anfitrião, naquele dia,  era o aparecimento -  verdadeira surpresa  -  de um pequeno plantador de cana. Meia hora antes do jogo, gente em pé já encostada nas paredes, Gregório Pessanha chegou, acompanhado de um amigo.
                                               ***
Por ter sido criado em Murundu até a adolescência, Gregório já era  conhecido na Vila,  de onde saíra brigado com o pai. Em Campos, empregou-se numa usina situada à margem esquerda do rio Paraíba. Era alimentador direto da esteira de cana para ser moída,  trabalho estafante; no fim do dia “o moído era ele”, como dizia ao voltar para casa com as roupas escuras como carvão. Morava com vários outros trabalhadores em uma casinha distante da usina e do centro da cidade. A rotina de vida de todos era da casa para o trabalho e vice-versa. Apenas Gregório quebrava o dia-a-dia do casebre: vivia lendo uns papéis esquisitos que falavam da existência no país de uma incipiente organização política que acenava com a libertação dos trabalhadores de todo o mundo.  Através desses papéis, Gregório tomou conhecimento de que a experiência já havia sido realizada em um país longínquo - a União Soviética, no qual os trabalhadores, através de uma revolução, assumiram o poder. E as palavras "socialismo" e "comunismo" passaram desde então a fazer parte de sua vida durante os três anos em que trabalhou duro em troca de um salário miserável que mal pagava a comida. As reuniões com outros trabalhadores se amiudaram a partir de 1934, com a notícia de que Luiz Carlos Prestes viria à cidade para falar diretamente aos trabalhadores das usinas. A visita anunciada  não aconteceu, mas representantes da recém-fundada Aliança Nacional da Libertação  passaram a ir à cidade com a incumbência de fomentar uma greve dos trabalhadores das usinas de açúcar existentes no município.
Nessas reuniões, Gregório tomou conhecimento de um pouco da história de Luiz Carlos Prestes, o líder daquele movimento no Brasil. Soube que ele, na década anterior havia chefiado um grupo de revoltosos contra o Governo; movimento que qual posteriormente ficou conhecido com o seu nome: Coluna Prestes. Soube ainda que depois desse protesto, viajara para o exterior e que um dos países por ele visitados fora justamente a União Soviética, onde a experiência socialista estava em andamento. De lá, voltara ao Brasil com a missão de aqui instalar a primeira república popular das Américas. Para isso, a derrubada do ditador Vargas fazia-se necessária. A tentativa de 1935, que ficou conhecida como "Intentona Comunista", fracassou e os adeptos da Aliança Nacional da Libertação passaram a ser perseguidos.
Dois anos depois, com a morte do pai, Gregório voltou para Murundu. Para ele, a herança do sítio tivera duas vantagens: escapar da perseguição e viver com tranqüilidade, plantando os 4 alqueires de cana para vender à Usina de Outeiro, a mais próxima da Vila. Mas a sua fama chegou aos ouvidos do seu Donizetti em uma das viagens a Campos. Nem precisaria, pois, no dia do desfile dos "camisas verdes" na Vila, Gregório foi o único que teve coragem de se posicionar frontalmente contra os integralistas.
-        Anauê! Prepara as pernas pra correr, seus "galinhas verdes"!
A frase marcou seu Donizetti e o companheiro que vinha batendo o tambor. Este, indignação maior dentro do peito, rosnou um “esse filho-da-puta me paga!”, mas continuou marchando e bumbando
E agora, o miserável do Gregório Pessanha estava ali, na sua sala! Seu Donizetti se perguntava o que fazer. A fama de homem educado,  jaleco branco na farmácia e terno e gravata para ouvir rádio, mandava receber bem a incômoda visita.
-        Seu Donizetti, o senhor vai me perdoar o que eu fiz durante a marcha, mas eu e meu amigo queremos também  ouvir o jogo do Brasil. Leônidas vai jogar, não vai?
O batedor do bumbo integralista, ímpetos de tirar aquele comunista miserável dali, levantou-se do banco. Mas o braço do farmacêutico  acenou para que continuasse sentado, como a dizer “A casa é minha, eu é que resolvo.” E Gregório e o amigo, encostados na parede, por lá ficaram.
Consciente da importância do futebol para seu movimento,  seu Donizetti não queria saber de brigas. Ao contrário, havia pensado em revestir aquelas reuniões com a formalidade necessária, ou seja, acrescentar-lhes um toque cívico. Afinal, era a nossa Pátria que estaria representada na capital francesa. “Dar um tapa de pelica naquele intruso era mais proveitoso.” – pensou. Rádio já ligado no volume mais alto, o farmacêutico pediu a todos que se levantassem para cantar o Hino Nacional.
O som do aparelho oscilava. Ora chegava alto aos ouvidos dos presentes, ora sumia de vez, ora a estática tomava lugar da voz do locutor. Acompanhando o volume do aparelho, os moradores também iam e vinham nos seus lugares, inclinando-se pra frente toda vez que a voz de Ari Barroso sumia ou era vencida pelo zumbido do aparelho. Ondulação dupla – do volume do rádio e da platéia sentada – acontecia na sala. Movimento idêntico ocorria com o pessoal em pé, que de tempos em tempos se deslocava pra frente, formando dois amontoados ao lado da pesada estante do rádio. Zetinho, na última fila, quase não via nem ouvia nada. O grito de gol ecoava na sala sem que se soubesse  se era ou não do Brasil.  Mas a saudação era quase sempre correta: o Brasil ganhara da Suécia por 4 a 2, e  Leônidas  foi o artilheiro da Copa, com 9 gols. 
Cativa do som instável do aparelho, a platéia ondulava na sala como a antecipar a ola futura dos estádios de futebol – a exuberante saudação com que a torcida passou a saudar seus times na entrada no campo e após os gols.
O 3o lugar nos campos da França fora considerado um feito espetacular. Muitos "Hip, hip! Hurra! Viva o Brasil!" retumbaram  durante vários dias em Murundu e no Brasil. Com a vitória brasileira, os europeus descobriram que havia na América do Sul outra força futebolística além de Uruguai e Argentina.
Na sala do farmacêutico, no entanto, a comemoração restringiu-se a muitos gritos de orgulho e amor à Pátria. Nada de brinde com bebida, nem mesmo cerveja ou champanhe: seu Donizetti não permitia o uso de álcool em casa.
Gregório e seu amigo agradeceram e sumiram logo que o jogo acabou.
Murundu e seu único rádio prometiam surpresa especial para o dia seguinte: o jogo final da Copa: Itália x Hungria. Tanto ou mais do que o jogo do Brasil, a notícia mexeu com os nervos do seu Donizetti e de seu parceiro de marcha (o que tocava bumbo). Para eles, o jogo com a Suécia parecera um anticlímax, já que a Pátria disputava apenas o 3o lugar.  Como admiradores do fascismo, estavam convictos de que o prato principal seria saboreado no dia seguinte, quando os atletas italianos vestidos de camisas negras entrariam em campo.
Ante a possibilidade de acompanhar e torcer pela Itália, os dois líderes integralistas desde logo iniciaram a mobilização dos companheiros locais. Seu Donizetti queria concentrar em sua sala um número de pessoas maior do que a marcha de seis meses atrás. Uma verdadeira festa cívica jamais vista em Murundu. Afinal, o Duce estaria pessoalmente no estádio parisiense para saudar os seus atletas em mais uma jornada gloriosa da Itália. Sim, porque nenhuma força pararia aqueles homens no caminho da vitória. O que acontecera com os alemães nas Olimpíadas de Berlim não se repetiria com a equipe italiana. Não! Em Paris, mesmo que os franceses torcessem contra, o Duce não seria humilhado por um Jesse Owens qualquer, como o fora Hitler, o Führer alemão, dois anos antes!
Sem dúvida, a Itália, pela força superior de seus atletas, pela dedicação à Pátria, sairia vitoriosa como em 1934. A convicção era tanta que os jogadores entrariam em campo com as camisas negras dos fascistas.
Do outro lado do mundo, a crença que empolgava os fascistas italianos era partilhada com idêntico fervor cívico pelos murunduenses liderados por seu Donizetti. Na manhã de domingo, as camisas verdes e as gravatas negras dele e de Zetinho já estavam passadas a ferro, para uso na hora solene do jogo.  Conforme fora combinado com os companheiros, todos viriam de calça cáqui e trariam camisas e gravatas para trocar ali mesmo. Na hora do Hino Nacional, já deviam estar devidamente paramentados. O arranjo havia sido feito à boca pequena entre os adeptos e simpatizantes do integralismo, de modo a evitar que Gregório e seu camarada tomassem conhecimento do programado para o dia seguinte. Camisas negras em Roma, camisas verdes em Murundu.
Meia hora antes do jogo, o rádio já estava ligado e todos os lugares ocupados, com Zetinho na fileira de trás. A um aceno do farmacêutico, todos se levantaram para cantar o Hino Nacional. O "Anauê!" puxado por seu Donizetti foi ouvido. Mãos no peito, os retorcidos versos do hino iam sendo cantados quando os degraus de madeira rangeram.
-        Quem pode ser, – se perguntou seu Donizetti,  – se todos os convidados já estão aqui? Será que a mulher abriu a porta?
Em meio a essas indagações, os versos “Dos filhos deste solo és  mãe, gentil, Pátria amada, Brasil!” foram cantados também por Gregório e seu companheiro de andanças de trabalho e política, que acabavam de chegar. Pediram, então, licença ao dono da casa para ouvir o jogo. Seu Donizetti se segurou para não expulsá-los dali, daquele ambiente particular, prestes a viver tão grande momento cívico-esportivo.
Cheirando confusão no ar, o faro do farmacêutico não estava errado. Os dois ali torciam pela Hungria; as camisas que vestiam por baixo eram vermelhas.   
                                               ***
Durante o jogo, o ambiente se manteve dentro dos padrões de educação dos ouvintes. Que a Itália fosse a vencedora, como foi pelo escore de  4 a 2, isso já era esperado por quase todos. Hungria?  muitos nem sabiam que diabo de país era esse e muito menos onde ficava.
O que ninguém, no entanto, soube contar direito, foi como começou o rififi, como os franceses chamariam a confusão se tivessem tomado conhecimento do ocorrido na Vila de Murundu, logo após o apito final do jogo. Ninguém sabia de quem partira a primeira ofensa, o primeiro puxão de gravata, o primeiro empurrão, o soco inicial. Na sala da casa de seu Donizetti formou-se, ao redor das duas camisas vermelhas, um bolo de homens que gritava e lutava, armado com os pés das mesas e cadeiras já destruídas. Mas para surpresa de todos, na luta Gregório e seu companheiro não estavam sozinhos. Três ouvintes a eles se uniram. Os descarados não eram nem um pouquinho integralista; as camisas verdes, meros disfarces para ter acesso à casa do farmacêutico, ouvir a irradiação dos jogos tranquilamente. Fúria aumentada, durante a luta o fio que durante anos sustentara o retrato do avô italiano, lentamente comido pela ferrugem do prego, acabou de rebentar, o retrato caiu e a moldura e o vidro partiram-se. Já havia gargantas roucas, olhos roxos, roupas rasgadas, homens berrando seu ódio político-esportivo.  À porta, as mulheres da casa, apertadas num grupinho assustado, não tinham coragem de se aproximar.
Até que um estrondo maior abafou todos os outros sons e os contendores, ofegantes, se aquietaram assustados: o pesado e enorme rádio caíra junto com sua estante, cacos de válvulas juncando o assoalho, fios repontando para todos os lados.
O mais estranho, porém, e que estarreceu a todos, foram os dois bracinhos vestidos de verde, visíveis sob os restos do aparelho e da estante onde ele era colocado. Silenciosos, incapazes de entender o que viam, ficaram ali olhando apatetados o lento filete vermelho que começava a escorrer sob os restos do rádio, ainda abraçado protetoramente por duas brancas e magras mãozinhas.





Divulgação Cultural
(Clique na imagem para ampliar)


sexta-feira, 10 de maio de 2013

"Pseudonímica e comunicação indireta na obra de Kierkegaard", por R. S. Kahlmeyer-Mertens (Conferência por ocasião do bicentenário de Kierkegaard).





“Que é um poeta? Um ser humano infeliz que encerra em seu coração profundos tormentos, porém seus lábios são formados de tal modo que quando os suspiros e os gritos fluem por sobre eles, ressoam como uma linda música. Com ele acontece o que ocorria aos infelizes que eram torturados demoradamente, com fogo lento, no boi de Falaris, e cujos gritos não podiam alcançar os ouvidos do tirano para não assustá-lo; a este os gritos soavam como uma doce música. E os homens se reúnem em multidão ao redor do poeta e lhe dizem: Vamos, canta de novo, quer dizer, tomara que novos sofrimentos martirizem tua alma, e Oxalá teus lábios continuem sempre formados como até agora; pois o grito apenas nos assustaria, mas a música, esta sim é deliciosa. E os críticos se chegam e falam: Assim está correto, é assim que deve ser, de acordo com as regras da Estética. Ora, dá para compreender, um crítico de arte é exatamente igual a um poeta, só que não tem os tormentos no coração e nenhuma música nos lábios. Olha, por isso eu prefiro ser um pastor de porcos na Amagerbro e ser compreendido por eles do que ser poeta e ser incompreendido pelos homens”. (KIERKEGAARD, S. A. Diapsalmata. In: Either/Or. Princeton: Princeton University Press,1953, p. 15)
 

Venha conhecer um pouco mais da vida e obra do multifacético Søren Kierkegaard:



terça-feira, 19 de março de 2013

Renato Augusto está de volta em nova obra




Confira a matéria em seu sítio original:
 

Roberto Santos

Sensível, autor escreve para corações doces

“Quanto tempo perdido/ sem perceber que o sol/ desmaia pétalas de imaginação”. (pág. 37)
...haja, ainda, partículas de sol. Renato Augusto Farias de Carvalho. Nitpress Editora. 176 páginas. R$ 35.
A antiquíssima voz de Diógenes — em Na Vida de Alexandre, de Plutarco — exclamou: “Sai um pouco de entre mim e o sol”. Exatamente o que faz Renato Augusto neste seu novo livro, a vocalizar: “Não fora a força da poesia/ e a coragem do poeta,/ o que seria desse sol de rebeldia?”. Ou, ainda, com flama solar: “Comprei lupa nova,/ água fresca de colônia/ e um pouco de sol/ à mesa de cabeceira”.
Em mistura de ficção e realidade, o autor repete a velha tradição dos românticos ingleses e alemães — a união da poesia e da prosa. Aparentemente separadas no livro, com 83 poemas (em “tons de claridade”, ou como “luares”) e 26 “quase crônicas”. Mas, como indica Sonia Peçanha, no “Prefácio”, “Renato é hábil alquimista da palavra”, razão por que se impõe o registro de Roberto Kahlmeyer-Mertens, na “Orelha”: “Como soa uma tal lira? Para saber, basta abrir o presente livro (seria pouco chama-lo só de livro) e entregar-se à prosa e à poesia de Renato Augusto Farias de Carvalho”.
Em iluminada linguagem, aqui e ali, haja ainda partículas de sol, que, até diminuídas, tocam o livro de Renato: “O passarinho cochilava ternuras/ enquanto o sol amortecido/ pressentia luares”. E que adiante prossegue: “O ofício do poema/ é esquecer as rimas/ em busca desse arco-íris de luz, / possível regaço de juntarmos as mãos.” Mais além, em três versos, homenagem consciente a uma poetisa e preito inconsciente ao poeta Angelo Longo: “Olho o barranco/ e repito Adélia Prado: “ / “o campo santo é estrelado de cruzes”.
A volta à meninice do poeta: “Sou filho do Amazonas livre”; “Minha cidade não tinha trem/ Tinha cais”(Manaus). São muitas as viagens ensolaradas de Renato pelo mundo, repletas de lembranças de ambientes e pessoas, principalmente em suas “Quase crônicas” (uma delas de obrigatória leitura: “Férias”). E “Josias” é exemplo de uma triste realidade em nosso país.
Também há o retrato falado de uma Clarice, empregada e integrante da família, que é pura poesia, repleta de saudade.

O FLUMINENSE

sexta-feira, 8 de março de 2013

Niterói comemorará na Bienal do Livro de 2013 o centenário de livro da Roda do Café Paris





O ambiente dos cafés da Niterói do início do século XX
era terreno fértil à literatura de Lili Leitão e Sylvio Figueiredo


Sonetos é uma pequena plaquete publicada por Sylvio Figueiredo e Luiz Leitão no ano de 1913. Em 2013 (ano de seu centenário), esta lendária obra - que já peça de coleção - receberá uma segunda edição, comemorativa.
O projeto de resgate do legado da Roda do Café Paris (movimento literário do início do século XX e que está na gênese da literatura niteroiense) é empreendido desde 2008. Naquela ocasião, publicou-se uma segunda edição, crítica, da obra Vida apertada, de Luiz Antônio Gondim Leitão (o afamado Lili Leitão). Embora esta obra não tenha recebido a atenção esperada de quem mais esperaríamos atenção (os ditos “literatos” de Niterói), é certo que ela cumpriu bem seu papel, frutificando na forma de uma caprichosa exposição permanente sobre o Café Paris na Biblioteca Pública de Niterói e fomentando pesquisas sobre os escritores que frequentavam aquele ciclo literoboêmio entre as décadas de 1910-1930
Com organização de Roberto Kahlmeyer-Mertens (assim como também foi Vida apertada), colaborações de Emmanuel Macedo Soares, Luiz Antonio Barros e Francisco Cunha e Silva Filho, o lançamento do centenário livro de Sonetos de Figueiredo & Leitão, conta também com a aleluia de Luiz Augusto Erthal, editor da Nitpress que, comprometido com este projeto, e com outros ligados ao resgate deste importante capítulo da história literária fluminense, promete o lançamento para a Bienal de 2013.
Além de textos inéditos sobre aquela escola literária, e do texto original em edição fac-similada, tal obra traz aquele que talvez seja o mais substancial estudo dedicado à Roda do Café Paris. Trata-se do distinto ensaio do doutor em literatura brasileira Prof. Cunha e Silva Filho. Um extrato substancial deste escrito é o que se vê na postagem de hoje: 




Os poetas Sylvio Figueiredo e Lili Leitão: epígonos, sim, mas nem tanto (Veja o texto em seu sítio original)



                                                                                                                          Cunha e Silva Filho


Tinham apenas vinte e dois anos e vinte e três anos, respectivamente, Sylvio Figueiredo e Lili Leitão quando publicaram, em 1913, pela Livraria Jacintho Silva, a obra Sonetos, reunindo, na primeira parte, vinte sonetos do primeiro e, na segunda parte, também vinte sonetos do segundo. Na capa da obra,os nomes dos dois poetas aparecem naquela ordem acima nomeada. No corpo do livro, os sonetos de Sylvio Figueiredo não apresentam títulos. São apenas indicados por algarismos romanos. De I a XX; na segunda parte, separada da primeira apenas com a indicação “Sonetos”, estão reunidos os poemas de Lili Leitão, todos exibindo títulos e, na maioria, dedicados a alguém do convívio ou amizade do autor.
Sylvio Figueiredo e Lili Leitão são intelectuais que tomaram parte do festejado grupo de frequentadores e boêmios da conhecida Roda do Café Parislocus de encontro noturno da vida intelectual de escritores, artistas e jornalistas do velho Centro de Niterói, cidade que já foi capital do Rio de Janeiro e, agora, é apenas um município importante e com vida cultural intensa. A Roda do Café Paris compreendia o Hotel, Restaurante e Café Paris, conforme as informações do historiador Wanderlino Teixeira Leite Netto.[1] A Roda teve duração de, pelo menos, três décadas, visto que só acabou depois de um incêndio, em 1933, que se alastrou até atingir as proximidades do local em que os concorridos encontros se realizavam. Entretanto, em menos de dez anos, com a demolição de prédios no entorno e com a abertura da Avenida Amaral Peixoto, a famosa Roda deixou de existir.
À primeira vista, o conjunto de poemas oferece alguma confusão de autoria pra o leitor, caso não fosse este orientado pelas indicações de alguns sonetos republicados na obra humorísitco-jocosa de Lili Leitão, Vida apertada (1923) já referida na primeira nota de rodapé deste estudo, ou por outras pistas informativas colhidas em obras de estudiosos deste admirável escritor, comediógrafo e exímio improvisador nascido em Niterói.
Sabe-se que a breve coletânea Sonetos não foi bem recebida por alguma crítica da época. Entretanto, isso não é motivo bastante sólido para que se revisite esta obra e, aos olhos de hoje, se possa reavaliá-la sob novas perspectivas de interpretação e de julgamento crítico.
Alguém já afirmou que a literatura não se forma apenas de gênios, de grandes talentos. Escritores chamados menores muito têm a ensinar aos críticos e historiadores literários, até mesmo no processo de avaliação crítica, no estudo comparativo entre autores, os menores, os que os ingleses chamam de minors, para diferenciar dos majors, dos maiores, são balizas necessárias à avaliação e, por conseguinte, jamais podem ser subestimados nem muito menos alijados das historiografia literária. Outro dado contraproducente na avaliação dos menores bem poderia estar associado ao critério subjetivo e, portanto, precário, de algum historiador ou crítico, ou seja, o que é menor para alguns, não o é para outros. As nossas histórias literárias, mesmo as mais qualificadas, têm com frequência incidido neste erro de classificação valorativa de autores, quando não de crassa omissão de escritores com reconhecido valor literário. Poderia citar alguns exemplos dessa deficiência historiográfica. Confio, porém, na argúcia do estudioso e pesquisador para confirmar ele próprio esse fato.
Luis Figueiredo e Lili Leitão, no primeiro decênio do século 20, imagino, eram amigos e cúmplices nas incertezas da vida literária e da própria sobrevivência Um dia, decidem editar, num mesmo volume, os Sonetos de 1913. Culturalmente, seu tempo se situa na chamada Belle Époque, a qual, na Europa, terminaria com a Guerra de 1914 e, no Brasil, se estenderia além de 1930.
Os dois poetas niteroienses se afirmariam, nos seus redutos provinciais, num período de grande transformações nas artes ocidentais, com o surgimento das vanguardas e com todos os seus desdobramentos em outros países, inclusive no Brasil. Literariamente, aqui no país, passávamos por um tempo literário de coexistência de estilos epigônicos, como o Neo-Romantismo, Neo-Simbolismo, Neo-Parnasianismo e Neo-Simbolismo. O quadro de nossa produção literária era, pois, de multiplicidade de formas e temas, ou melhor, de sincretismo nas letras, na poesia, sobretudo.
Sílvio Figueiredo e Lili Leitão, com as suas obras, não chegaram, como na maior parte de autores da província, em qualquer estado brasileiro, com raras exceções, a níveis de aceitação das maiores figuras de escritores que, no Rio de Janeiro, na Metrópole, conseguiram a fama e o reconhecimento a ponto de, nas histórias literárias, serem citados e comentados.
Da mesma forma que grandes nomes de escritores provincianos não ultrapassaram, em sua maioria, os limites da província natal, os exemplos de Sylvio Figueiredo e Lili Leitão praticamente só se firmaram em Niterói e nas suas rodas literárias e de grupos de boêmios noctívagos itinerantes, de talento sim, mas não a ponto de ganhar notoriedade nacional ou pelo menos nesta caixa de ressonância que sempre foi a cidade do Rio de Janeiro, na época, capital da República Velha (1889-1930).
Isso, contudo, não me parece nenhum desdouro às figuras dos dois escritores objetos dessa exposição.O sentido deste estudo, ao contrário, é o de recuperar para o leitor atual uma parcela da produção desses autores e dela extrair o que de permanente ou de original neles se pode buscar na oportunidade em que intelectuais nascidos ou radicados na “Cidade Sorriso” estão empreendendo uma justa retomada da obra um tanto esquecida de dois autores que sem dúvida em muito ajudaram a formar o espólio da produção literária e artística de Niterói e do estado fluminense.
Um passo nessa direção já foi dado com a publicação recente, segunda edição (2009) da obra Vida apertada de Lili Leitão pela Editora Nitpress, num esforço meritório e oportuno do organizador da edição crítica, o professor e ensaísta Roberto Karhlmeyer-Mertens,[2] que reuniu sonetos humorísticos de Lili Leitão num volume único contendo – diria quase exaustivamente - o que de melhor se poderia recolher da fortuna crítica do poeta com importantes trabalhos de cunho não acadêmico e ensaios de especialistas e críticos de literatura, a par de contar ainda com um indispensável Glossário fundamentado no léxico de Vida apertada criteriosamente preparado pelo professor e estudioso da lexicografia, Luiz Antonio Barros, com uma cópia fac-similar da obra, notas do organizador, cronologia do poeta, bibliografia ativa e passiva do poeta e índice onomástico e analítico.
Não é meu intuito desenvolver neste trabalho um estudo comparativo das poéticas de Luis Figueiredo e Lili Leitão. Pretendo antes examinar alguns tópicos de natureza temática e analítica de tal sorte que possam porventura lançar algumas luzes sobre o universo poético de ambos os autores. Para isso, a minha linha de pensamento abrangerá, separadamente, cada um deles sem, todavia, negligenciar, quando me parecer necessário, algum cotejo entre eles em aspectos formais ou temáticos em que um se avizinhe do outro.
Poetas contemporâneos como são, não seria gratuita a circunstância de que cada um escolhesse o soneto. A meu ver, a condição comum de amizade, de ambiente espiritual e intelectual (Sylvio Figueiredo era também chargista, poeta satírico, jornalista) de que partilhavam entre si e a decisão de trabalharem em conjunto num volume único, ou até mesmo razões financeiras, possam explicar ou dar alguma pista para a concretização do lançamento desta pequena obra nos idos de 1913.
A POESIA DE SYLVIO FIGUEIREDO
Lendo e relendo os vinte sonetos de Sylvio Figueiredo, o analista, pouco a pouco, começa a captar alguns ângulos que lhe aguçam a atenção, aspectos que podem apontar para confrontos com níveis de tratamento de temas e procedimentos formais além ou aquém do que o pesquisador teria como expectativa.
No caso de Sylvio Figueiredo, pelo menos nos poemas que dele conheço não seria demérito afirmar que ele pouco se diferenciaria de tantos poetas de seu tempo no que tange ao tratamento do tema do amor e das estratégias de composição de seu lirismo na fatura do poema de forma fixa. . Nos aspectos e cuidados técnicos de domínio da métrica e da semântica que envolve os poemas, com segurança se pode adiantar ser ele, ainda com apenas vinte e dois anos, um artista do verso que já demonstra familiaridade com os elementos intrínsecos da criação literária, com a economia do verso e sobretudo com um raro talento rítmico, ainda que a significação temática se mostre um tanto imatura na arquitetura geral dos poemas.
Como reforço a essa reflexão me vem um pormenor relativo à formação cultural de Sylvio Figueiredo. Segundo informa o ensaísta Roberto S. Kahlmeyer-Mertens[3] o poeta era pessoa ilustrada, conhecedor de alguns idiomas modernos, que lia no original. Poetas de renome para leitores de sua época teriam sido Baudelaire, Leconte de Lisle, José Maria Heredia, entre outros. Outro fato que me parece útil assinalar foi que Sylvio Figueiredo interrompeu seus planos de escritor, pois não foi um autor de um livro só, porquanto à sua atividade n a imprensa, ainda escreveu em prosa: Contos que a vida escreve (1931), Quixote (1934) e Passos na areia (1962); em poesia: legou ainda Forja e Atlantes (1934), provavelmente escritas na década de 1930.
Seu falecimento se deu em 1972, quer dizer, não deixou, ao que tudo indica, uma obra extensa, mais indicando que, ou deixou de publicar regularmente, ou o que tenha escrito não tenha vindo ao conhecimento do público, i.e., não se publicou. Seria este ponto obscuro de sua biografia mais uma oportunidade de pesquisa a ser desenvolvida pelo historiador literário apreciador de sua produção.
os vinte sonetos de Sylvio Figueiredo, posso distinguir duas principais vertentes temáticas: a amorosa e a jocoso-heterodoxa.. Optamos por denominar à segunda vertente jocoso-heterodoxa por reunir esta temas com predominância jocosa e outros temas que, embora falando ou não do amor em contexto humorístico, representassem traços de modernidade conexionados com outros modos de construção poética indicando desvios do tradicionalismo literário e utilizando recursos de composição como os metapoéticos, os metalinguísticos, a paródia, a apropriação de textos não-poéticos A primeira abrange 11 sonetos: I, III, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV e XIX; a segunda, compõe-se de 9 sonetos: II, IV, V, VI, XIV, XV, XVII, XVIII e XX.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE AMOROSA
Como se vê, a primeira vertente tem no conjunto de sonetos de Sylvio Figueiredo, uma leve superioridade numérica sobre a segunda. Quer dizer, a exploração do tema do amor se multiplica em motivos combinados a outros sentimentos pessoais neles imbricados, destacando-se: a sensualidade feminina (soneto I), a distância física do amor (soneto III) o amor sensual ou até mesmo com traços eróticos (soneto VII), a efemeridade física da beleza da amada (soneto VIII), sensualismo amoroso ( soneto IX), o amor não consumado (soneto XI), da passagem do amor sonhado à posse do amor (X), a natureza em descompasso com o sentimento do amor desiludido (soneto XII), da incerteza do amor ( soneto XIII), o desencontro amoroso (soneto XIV) o sentimento do amor ausente ou o receio da perda do amor (soneto XIX).
Obviamente, todas as nuances amorosas de seu estro fazem largamente coro com outras vozes poéticas, notadamente dos estilos literários românticos, parnasianos e até mesmo simbolistas.Em outras palavras, o lirismo que perpassa os sonetos de Sylvio Figueiredo, segundo atrás sugeri, mostra-se caudatário dessa mistura de estilos literários, desse sincretismo, o qual, à altura da produção do autor, final do século 19 e início do século 20, ou seja, já em fase de epigonismo, amolda-se ao conservadorismo literário do Romantismo, Parnasianismo e Simbolismo onde pontificavam grandes nomes da poesia brasileira.
Sem ostentar o nível alcançado por um Castro Alves, um Bilac, um Alberto de Oliveira, um Raimundo Correia, um Cruz e Sousa, Sylvio Figueiredo de certa maneira e consoante seu poder de adaptação, de influência, de mimetismo, inclusive por via direta dos poetas portugueses e, por via indireta, das leituras de bons poetas franceses muito lidos no original ou em traduções no país de certa forma procurou obter o máximo daquela adaptação da tradição do cânone.. Este espírito de imitação no âmbito literário se estenderia a padrões de modas e de cultura francesa, muito comuns durante a Belle Époque no Rio de Janeiro, Metrópole cultural do país, que ditava, ou melhor, irradiava essa submissão cultural a outras cidades brasileiras.Não é gratuito Niterói dar nomes franceses a restaurantes como Café Paris, ou cinemas com nomes franceses como “Pathé” e mesmo francesismos no corpo de poemas tanto de Sylvio Figueiredo quanto de Lili Leitão.
Mimetizando a tradição do cânone poético ocidental, Sylvio Figueiredo não deixou de levar em conta alguns elementos estruturais da poética ocidental: a dicção, a semântica do texto, o aparato ou solenidade dos versos, temas de extração clássica, o ritmo, a musicalidade, o apuro estrófico. A despeito de existir, em alguns sonetos, a posição ideológica do “eu lírico” de fundo romântico, a moldura dos sonetos, em geral, inclina-se para a forma parnasiana.
Posto tenha o poeta atuado nessa fase de cruzamentos ou coexistência de estilos e, segundo tenho reiterado, em tempo de epigonismo, até mesmo pela referência da forma poética empregada, o soneto, muito praticado por parnasianos, não vejo que essa preferência por aquela forma fixa seja necessariamente uma maneira de o poeta rebelar-se(falando-se aqui não só de Sylvio mas também de Lili Leitão) com os novos ismos trazidos pelas vanguardas europeias e pelos primeiros avanços do Modernismo brasileiro que se avizinhava.
O fato é que tanto Sylvio Figueiredo quanto Lili Leitão, no primeiro decênio do século passado, já haviam praticamente se formado no domínio das letras, ou seja, nessa fase de transição da poesia brasileira. Esta questão faz parte do âmbito da sociologia da literatura, acrescida da circunstância de que ambos os poetas, posto que vivendo perto da Metrópole e separados apenas pela Baía da Guanabara, não se arredaram da vida boêmia e provinciana de Niterói.
Pesquisas desse lado biográfico do poeta Sylvio - e o mesmo serviria para Lili Leitão -, contribuiriam muito para estabelecer nexos entre a vida literária de ambos e, portanto, em parte ainda seriam bem úteis como “elementos extrínsecos” à visão mais ampla da poesia dos dois autores. Com poucas exceções, este fenômeno de comportamento cultural de intelectuais da província se me afigura muito ocorrente em outros estados brasileiros. Outro fator determinante provavelmente seria a condição social modesta dos dois.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE JOCOSO-HETERODOXA
Conquanto a dicção da vertente amorosa se pauta pela nobreza de vocábulos raros, na linha do sermo nobilis da palavra aristocratizante como moeda corrente dos estilos parnasianos, simbolista ou mesmo românticos, a vertente jocosa satírica, irônica ou humorista se permeia pelo rebaixamento do sermo vulgaris, do antilirismo – sinal de modernidade - como elemento fundante da poiesia.
Os sonetos dessa vertente desssacralizam, por conseguinte, qualquer pretensão de seriedade em lidar com a tradição da vertente amorosa, na qual a luta do “eu lírico” canta a família às voltas com problemas de natureza financeira, ressaltando-se, a par disso, a novidade introduzida pela mudança, a que já aludi, do aspecto de oralidade, aspecto este que equivale a um tour de force em relação ao conservadorismo literário.
Destarte, podem-se apontar, no soneto II, vocábulos como “catadura”, “berreiro”, “descompostura”, “ferve”, os sintagmas,” “vida torta, ” “tempo quente”, “pobre diabo”, além da nomeação de um personagem visivelmente de extração popular, Candido Barreiro . Esta ausência de um ambiente físico e humano interagindo com uma subjetividade e evasão romântica contrasta radicalmente com a atmosfera lúdica da comédia à moda de um Artur de Azevedo, de um Martins Pena. Ou seja, a poesia satírica se aproxima dos códigos prosísticos da representação dramático-jocosa:
[...]
Para mais aumentar tal desventura,
briga a mulher porque falta dinheiro
e lhe permite uma descompostura
se não for paga a conta do padeiro.[4]
[...]
No soneto IV, de forma análoga, os desencontros de uma família são objeto do “eu lírico” que, distanciado do quadro retratado, expõe as mazelas de um personagem protagonizando uma situação existencial grotesca devido ao vício da bebida, enquanto, no lar abandonado por ele, “choram, filha e esposa na miséria.” O elemento do “enredo”, também manifesto no grotesco do vocabulário do poema reitera a ruptura entre o léxico elevado da primeira vertente em comparação com a segunda – traço também de modernidade lírica - nos sintagmas “boca suja”, “testa negra”, “desgraçado aborto”, nos lexemas “adunca”, “asquerosa”, “imundo”, “miserável, “torto”.” Este campo semântico passa a ser uma recorrência de uma realidade física e humana degradante, valendo como ressonância - poder-se-ia aventar - do espaço poético de um Augusto dos Anjos.
A poesia de Sylvio Figueiredo, a esta altura de amostragem e comentários, já me permite afirmar ter ela ultrapassado os limites do mero epigonismo para uma fase aberta a formas de realizações artísticas justificando-se o título deste estudo e a qualidade do verso do poeta que, absolutamente, não se restringindo apenas a formas estagnadas do sistema literário, contudo abriu-se a novas formulações de sua poética.
O soneto V não se desvia da verve do conjunto de poemas da segunda vertente.
O poema se realiza pela desconstrução do rival por parte do “eu-lírico” em questões amorosas. Em consequência, o soneto se estrutura à base da demolição física e moral do adversário. Entretanto, logo no 1º quarteto, o retrato físico da jovem da vizinhança, motivo da rivalidade amorosa, embora seja objeto de admiração do “eu-lírico”, ao mesmo tempo lhe é objeto de critica. Com ela não existe nenhuma possibilidade aparente de uma aproximação maior. O objeto de desejo amorosos se frustra desde o início do poema, sem que exista nenhuma chance de conquista, tal como faz notar a citação abaixo:
[...]
Eu, que no maior não tenho tal ventura,
invejo a esse magano sem decoro,
que o amor possui de tão gentil criatura.
A jovem namora um homem que, aos olhos do “eu-lírico”, não preenche dotes físicos ou morais. Sua descrição e corrosiva: é “gordo”, “paspalhão”, boçal, “magano”, sem modos. Isto é, o pretendente da mocinha bem criada, porquanto seu status social se indicia pelo adjetivo “chic”, francesismo muito usual na poesia do tempo de Sylvio Figueiredo, tempo de forte influência da moda, cultura e convívio com a língua francesa.
O lexema “magano” salta logo à vista pelo historicismo de que se impregna desde a época colonial através da sátira ferina e debochada de Gregório de Matos:[5]
[..]
Que os Brasileiros são bestas,
E estarão a trabalhar
Toda a vida por manterem
Maganos de Portugal.
Ora, “magano” instaura no soneto um sentido de falta de ética, conducente a uma existência vivida sob o signo da malandragem, do querer levar vantagem. No entanto, um pormenor me chama a atenção logo no 1º quarteto. Na descrição dos predicados estéticos e físicos da jovem moradora da “avenida mais chic da cidade”, jovem “linda”, ela simultaneamente é aquinhoada com alguns epítetos nada moralmente abonadores: uma moça “viva”, “astuta”, “repleta de maldade”” e irrequieta, i.e., “não descansa” a “cabecinha”.
Abre-se aí um espaço no poema em que uma camada submersa vem à superfície e lhe dá melhor potencial analítico: o mundo das ações, pensamentos e valores internos do poema surpreende o leitor em termos de realidade e aparência, verdade e mentira, e esse espaço do subtexto não acaba só nesta gama de desvelamentos ou virtualidades Ao lado do tema do amor frustrado, esboça-se um quadro coreográfico nos domínios do universo da malandragem entre o magano e a mocinha esperta. Ambos possuem elementos para terçar armas a fim de levar a cabo a sedução pela picardia:
[...]
Tem namorado: um paspalhão de pança,
que lhe fala, feliz, muito à vontade
e que os ouvidos seus mimosos cansa
com farta dose de boçalidade.
A malandragem da mocinha pode resultar vitoriosa e a aparência ou realidade de um espertalhão sem modos e balofo pode dar com os burros nágua.
Consequentemente, o eu lírico ao lamentar a carência de sorte e demonstrar inveja pode perder no enganoso jogo do amor, mas bem poderia também lamentar se a sua sorte no amor fosse a de um “cretino”. Ou seja, aparentemente formam um par perfeito de malandrice cujo desfecho pode ter sucesso ou não. Tudo depende de quem seja mais matreiro.
A qualidade do soneto reside justamente neste cenário de comédia e de humor permitindo ao leitor uma oportunidade de divertir-se com o riso e o ridículo da comédia humana, no que diz respeito ao tema do amor, bem dentro daquele velho preceito de Sêneca: Castigat ridendo mores (“Pelo riso corrigem-se os costumes”).
O soneto descortina um veio rico da literatura brasileira, o tema da malandragem, o qual remonta aos poemas satíricos de Gregório de Mattos e atravessa sucessivamente uma linha que já tornou tradição, muito mais na ficção do que na poesia, e que se fez contínua através de Manuel Antonio de Almeida, Machado de Assis, Lima Barreto, Marques Rebelo e deságua ainda com força em vários autores brasileiros contemporâneos. Os mecanismos psicológicos e da escrita do humorismo, da jocosidade, próprios da comédia, desencadeiam a derrisão, põem a nu as vilanias, as fraquezas da alma humana, i.e., fazem o homem rir-se de si mesmos.
No soneto VI, me deparo com um curioso exemplo de um poeta que, ao procurar elaborar um soneto de estofo romântico, onde o lirismo possa ser a tônica, termina por “abandonar” o projeto poético, saindo, assim, da fantasia do universo das musas para o ramerrão pragmático da vida “real”, quer dizer, a pena com que comporia o poema, o papel, a inspiração cederam lugar a uma ação prosaica meramente mecânica : fazer as contas de despesas.
O soneto em questão me leva a interpretá-lo como uma possível sátira às formas de composição da tradição literária, do escrever bem uma peça poética de feição romântica. Fisicamente, um poema se escreveu. Porém, como realidade abstrata, como substância, i.e., no plano das ideias, o soneto não se realizou. Aqui se tocam as questões teóricas e complexas entre a realização física do poema e a da poesia. Compreende-se aí a “luta pela expressão” entre a vontade de criar e a impossibilidade de fazê-lo em decorrência da ausência do “fado”, da “inspiração - questão de monta na poesia do Romantismo Ocidental. Tem–se nesse soneto aquela situação, que é um dado metapoético no qual o autor afirma a impossibilidade da realização de um poema quando, ironicamente, o poema se concretiza na escrita, na linha do verso Esse tópico da criação literária é bem recorrente entre poetas:
[...]
Na confusão dos ritmos me abismo,
Busco das rimas o alvo bando alado,
Nada consigo. Ponho a pena ao lado
E eis que de lado ponho o romantismo.
No soneto XIV, há uma hilariante situação pessoal-amorosa na qual o “eu-lírico”, relando-se um tímido diante da mulher amada, depois de um grande esforço, reúne força e coragem para lhe dar provas de todo o seu sentimento. No entanto, no final do último terceto, a chave de ouro lhe reserva uma surpresa, funcionando então como um exemplo de bathos, um recurso poético da teoria literária que, na definição de Terry Eagleton, seria “um movimento do sublime ao lugar-comum ou ridículo” [6]
- Vou demonstrar-te o afeto que me empolga! –
porém, sorrindo com o sorriso louco,
ela me disse: - Ó filho, dá uma folga! –
Os demais sonetos do autor, XV, XVII, XVIII e XX reiteram esta linha temática introduzindo novas realidades comunicativo-poéticas, não somente no conteúdo como também na expressão literária.
O soneto XV tipifica outra dimensão jocosa, em verso que relatam a história de um convite para aniversário feito ao “eu lírico” que,, entretanto, não pode ser atendido visto que a ele falta a roupa adequada ao evento e nem a possibilidade de comprar uma nova, em razão da “pindaíba” em que se enreda. É um soneto leve, divertido e que sinaliza para um outro tema que rondará a produção poético-humorística de Lili Leitão. Verei esse aspecto quando tratar mais adiante de sua poesia: a falta de dinheiro como elemento constante e provocador de quase toda a sua obra poética. Da mesma sorte, lexemas nada nobres da linguagem comum se fazem presentes no poema “bródio, “cuéca”, “candongas” e expressões proverbiais ou sentenciosas como “... em festa de jacu nhanbu não entra”, os quais, à semelhança do que ocorre no soneto II, comentado atrás, reforçam o nível de oralidade de usos de lexemas apoéticos como sinais de modernidade.
O soneto XVII, o mesmo tom peralta, entre sério e brincalhão, da perspectiva, é claro, do “eu lírico”, não do receptor, apresenta um diálogo entre um casal, em descompasso de visões na relação entre marido e esposa. O poema, de tema ainda bem atual em algumas camadas sociais, discute a posição machista, patriarcal de um marido que não aceita a possibilidade de a mulher trabalhar em atividade que, segundo ele, só seria compatível ao homem. Trabalho esse em “forja”, vestida de calça, atividade considerada pesada, grosseira, masculina, indigna da mulher e de sua fragilidade. A arquitetura do poema lembra uma cena teatral, num aparente monólogo do “eu “lírico” em interlocução com a mulher, indicada pelo dêixis “tu”
Tu, numa forja, por exemplo, à frente
da fornalha! Imagina, ó meu derriço,
pensa bem, anjo meu terno e roliço,
tu, no trabalho da barbuda gente!
Concomitante, há ainda no poema outra questão associada a mudanças de comportamento das mulheres. A polêmica questão do “feminismo”. Para o marido, um estultice. Ora, esta questão do preconceito contra a condição da mulher no trabalho se coloca como bem avançada para a época da escrita do soneto, início da segunda década do século passado.
Poeta de fase liricamente transitória, conforme tive oportunidade de acentuar mais de uma vez nesta exposição, Sylvio Figueiredo, não se furta a artifícios quer na dicção, na temática, no imaginário, quer nas situações de existência e nos recursos retórico-métrico-estilísticos já repisados com mais ou com menos sucesso por seus predecessores ou contemporâneos.
Um desses artifícios que, de resto, não era comum na poesia simbolista, foi empregado por alguns poetas tais como Severino de Resende, Marcelo Gama e Da Costa e Silva.[7] No que consistia esta retórica temática? Diria respeito a poemas tematizando descrições de animais, a exemplo dos “Poemas da Fauna”, da obra Mistérios (1920) do mencionado Severiano Resende, com o seu conjunto de poemas descrevendo tipos diversos de animais. O mesmo fez o piauiense Da Costa e Silva, com seus “Poemas da Fauna”, da obra Zodíaco (1917) grupo de soneto descritivos nos quais figuram caranguejo, lagartixa, sapo, cobra, morcego, aranha, besouro, cigarra e vaga-lume.
A ensaísta Francine Ricieri,[8] em substancioso prefácio à Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira, recorda que esses poemas sobre animais bem podem ter sido espelhados em Tristan Corbière, na obra Les amours jaunes, onde aparece o poema “Le crapau” (“O Sapo”). Para Ricieri,[9] esse poema foi bastante traduzido para o português, acrescentando que o poeta baiano Pedro Kilkerry havia até feito uma versão dele.
No poema “Le crapau”, Corbière refere ao “sapo,” porém entendendo este como a figura do poeta, da mesma maneira que Manuel Bandeira,[10] no poema “Os sapos”, do livro Carnaval (1919) satiriza os parnasianos.
No soneto XVIII, Sylvio Figueiredo retoma uma figura zoológica – o corvo – assim como Lili Leitão fará com “A coruja” para descrever tanto a ascensão do animal à “região do silêncio absoluto”, quanto a sua descida à terra, num contraste de imagens que vão do sentimento de euforia ao efeito disfórico. Ou seja, do ponto de vista visual, a descida sofre uma metamorfose de cento e oitenta graus. O corvo, antes descrito em tons de beleza, sofre uma redução estética qualitativa. Sua figura, agora, ante o olhar do “eu lírico” reveste-se de deformidades. O que atraía a visão torna-se repulsão. A “abelha” que, exerce visualmente, dependendo da distância do olhar, uma figura dupla, passa a ser apenas um animal agourento, une-se ao domínio do escatológico. Alinha-se, enfim, com laivos satânicos remetendo o leitor a vozes de alguns poetas malditos, como Baudelaire ( com sua obsessão pela morte) Artur Rimbaud, na França, Guerra Junqueiro, em Portugal e Augusto dos Anjos, no Brasil, com o uso de um léxico associado ao estado de putrefação:
[....]
pois, nu passo cadente, em lerdos empuxões,
caminha, horrendo, lento e lento, farejando
a delícia da morte e o horror das podridões!
Ao contrário dos poemas da fauna de Da Costa a e Silva, existe um dado que se distingue neste poeta: a descrição tende à objetividade parnasiana, ao passo que no soneto de Sylvio Figueiredo o mood do soneto expressa imagens oscilantes entre a dicção simbolista-abstrata e a objetividade parnasiana sem descartar , outrossim, impulsos de um “eu lírico"romântico:
Riscando o azul do céu, tranquilo, o corvo monta,
Galga, ascende à região do silêncio absoluto;
E enquanto da terra imensa as belezas sem conta.
Compare agora com uma quadra de Da Costa e Silva, extraída do soneto “A cobra”:
Certo ninguém prevê, nem ao menos suspeita,
Mas esse tronco anoso, ulcerado de galha,
De alguma árvore umbrosa, outrora ao bem afeita,
Hoje, abrigo do mal, uma cobra agasalha.
No soneto de Sylvio Figueiredo o contraste, euforia seguida de disforia, a que aludi se torna evidente ante a subida do pássaro e sua correspondente descida. Romântica. Vejam-se, para comprovação desse contraste respectivamente evidenciados nos seguintes quartetos:
E a ave sobe e evolui e ergues-se, ousada e pronta:
lembra uma abelha sobre um terreno ermo e bruto.
olho-a e a vejo tão linda, o olhar atento e arguto,
quando penso que cai de fatigada e tonta.
Desce, entanto e é medonha e asquerosa e nojenta;
causa repulsa e dó se vai, calma, baixando
e a transformação aos homens apresenta [...]
É na subida que a visão da natureza toma uma característica particular: a ave pelos olhos do “eu lírico” não exibe nenhuma realidade grotesca, disfórica. No soneto esse segmento temporal vai do 1º ao 2º quarteto. Nesse ponto, a imagem física do corvo, um animal reputado em geral, repugnante e aziago, anunciador de acontecimentos trágico, é vista até mesmo por uma ótica impressionista e positivamente, reitero, eufórica, segundo se percebe claramente no 1º quarteto acima-citado, no qual existe até uma comparação indireta, ou melhor, uma associação estética de cunho eufêmico.
Ao eu lírico o corvo lembra uma “abelha”. O eu lírico chega a ponto de exultar-se diante da beleza e das suas qualidades exaltada em clave romântica. Recorde-se, por outro lado, que nos ”Poemas da Fauna” de Da Costa e Silva, aquele sentimento em relação ao animal não exprime uma ideia de ser desprezível ou asqueroso, ao passo que em Sylvio Figueiredo e Lili Leitão (“A coruja”), a descrição do animal conotas-se de real sentido de asco. De modo semelhante, não se pode negligenciar o fato de que no universo do simbolismo, alguns seres, por exemplo, pássaros, insetos etc, expressam significações ambivalentes, quer dizer, dependendo da cultura, da ética, da região da Terra, tanto podem definir-se por qualidades positivas, ou do Bem, como ainda por atributos negativos, ou do Mal. Os lexemas “corvo” e “abelha” ilustram bem esta questão.[11]
No poema ‘The Raven”( “O Corvo”) de Edgar Allan Poe, o pássaro ´´ simboliza um anunciador da morte. No soneto de Sylvio Figueiredo, a ave comporta explicitamente essa mesma acepção de elemento agourento além de animal devorador de cadáver.A “abelha”, segundo já aludi, na condição de duplo a partir, é claro, da perspectiva visual-distancial do eu lírico, afastada, lembra a sua condição de inseto que, por seu turno, sofre a metamorfose, i.e., retorna à sua configuração original de “corvo”.
O soneto esteticamente valoriza-se pelo poder de visualização, porquanto, no decorrer da sua descrição, aduz-se com facilidade, como se víssemos por lentes de alcance gradativo, à semelhança de uma objetiva: a imagens distanciando-se e as imagens , em seguida, se aproximando do ponto de observador atento. Segundo o movimento, tem-se uma ou outra forma do animal.
Provavelmente por essa forma de realização do soneto é que me vejo compelido a ajuizar pela sua superioridade de técnica e criatividade.
O soneto XX, não possui a elevação aristocratizante do verso parnasiano nem as dores e frustrações do amor romântico, nem tampouco os voos dos nefelibatas. Ao contrário, trata-se de uma peça leve, de humor em clave menor. Sua leitura, em alguns aspectos, me faz vir à tona um divertido poema de Lamartine,”Mon habit”” da obra Chansons no qual o “eu-lirico” se dirige, como se o objeto de atenção fosse uma pessoa querida, a uma velha casaca, testemunha fiel de muitos fatos e feitos. Da velha casaca não quer se desfazer de forma alguma, assim como o soneto de Sylvio Figueiredo. Veja-se, primeiro, em Lamartine em tradução minha considerando apenas os versos que mais de perto atendem ao cotejo:[12]
[...]
Ó pobre casaca amada, sede-me fiel!
[...]
Bem me recordo, pois, memória boa tenho
Do primeiro dia que te vesti.
Era meu aniversário e, por cúmulo da glória,
Elogiado foste por meus amigos.
[...]
Prontos estão todos a nos festejar.
Nada de adeus, velho amigo meu. [14]
Agora, coteje-se com os versos de Figueiredo:
Quando a primeira vez te enverguei, meu fraque
fiz sucesso na zona e andei de boca em boca.
Ficou louco por mim muita menina louca,
Tornei-me nos saraus figura de destaque.
[...]
E se te visto, enfim, triste, num desalento,
Tu, relembrando, acaso, altas glórias passadas,
Soltas, alegremente, essas abas ao vento!
Se existe certa afinidade em alguns pontos dos dois poemas, há também diferenças entre os dois autores, o tom soa mais saudosista com travos românticos próprios do poeta Affonso de Lamartine. O de Figueiredo, mais se aproxima de um tom farsesco, solto, humorístico, divertidamente provocativo. Porém, sempre misturando sensações díspares, o “eu lírico” posa de boêmio conquistador de corações “na zona”, em companhia de seu velho frack, sempre disponível a outras aventuras ainda que repassadas de deslocado “desencanto romântico.
O que une ambos os poemas é a louvação do objeto-fetiche indissociável da vida do seu proprietário e do seu passado. Num, um casaco; noutro, um frack. Na composição literária, Figueiredo emprega o soneto; Lamartine, um poema de 16 versos - uma canção - composto de duas oitavas.
A POESIA DE LILI LEITÃO
Ocupar-me-ei, agora, dos sonetos de Lili Leitão que, consoante assinalei no estudo de Sylvio Figueiredo, se encontram na segunda parte da obra Sonetos.
Custa-me imaginar, ante a grande vocação do humorista, satírico, comediógrafo, repentista, jornalista Lili Leitão que esta figura de intelectual, superiormente dotada para o humorismo, tenha também produzido versos sérios, poesia amorosa e de qualidade. De resto, humorismo, vazado em sólidos conhecimento de versificação, de originalidade de estilo, domínio da língua portuguesa e, acima de tudo isso, genialmente combinando poemas humoristas com poemas sérios, principalmente da sua dimensão amorosa, escritos com perfeição e rara capacidade musical. Seus poemas, lidos em voz alta, primam pela qualidade rítmica, melódica. Óbvio que não se pode nem deve negar a superioridade deste autor para a manifestação poético-artística da irreverência, ironia, farsa, humorismo – virtudes que o tornaram famosos no seu tempo na Niterói das três primeiras décadas do século passado.
Não entendo tampouco por que Lili Leitão, com toda a sua posição de liderança entre os amigos intelectuais, residindo tão perto da Metrópole carioca, não tenha sido voz satírica influente na vida intelectual carioca nem tenha tido a merecida visibilidade que outros poetas de verve menos dotados do que ele tiveram. Mistérios da história literária ou seriam outros motivos inconfessáveis que impediram injustamente que o grande humorista tivesse popularidade nos círculos intelectuais da cidade de São Sebastião? Cabe à história literária procurar respostas para estas indagações.
Felizmente a privilegiada veia mordaz – somente o tempo pode fazer justiça a um escritor - de Lili Leitão agora se vê consubstanciada na obra Vida apertada sobre cuja edição crítica recente já me pronunciei na primeira parte deste ensaio.
Diante dessas observações preliminares, ao refletir analiticamente sobre o legado poético que compõe a segunda parte do pequeno volume dos Sonetos, pretendo neste trabalho considerar como diretriz metodológica, duas linhas temáticas diferentes ou seja, divisando duas vertentes temáticas sobre a poética de Lili Leitão, à semelhança do que fiz com respeito a Sylvio Figueiredo: a amorosa, cobrindo 11 sonetos e a vertente que, para este estudo, denominei, à falta de outro termo melhor, jocoso-heterodoxa., sendo esta constituída de 9 sonetos. Pelo visto, em comparação com a classificação temático-expressional que adotei para o estudo de Sylvio Figueiredo, deu-se, no que concerne à divisão temática dupla, perfeita coincidência no quantitativo de sonetos em ambos os autores. Mera coincidência ou tácito acordo entre os dois poetas? Por outro lado, sendo um volume organizado a quatro mãos, não seria de todo impensável que os dois amigos pudessem chegar a esse consenso na seleção e organização dos Sonetos. Fica a pergunta no ar. Não resta dúvida, todavia, que a semelhança ou a afinidade sejam instigantes (ou intrigante) ao pesquisador.
Seguindo o mesmo procedimento da primeira parte, abordarei primeiro a temática amorosa de Lili Leitão e se não me proponho agora a analisar exaustivamente, poema por poema, algumas formulações estético-formais pretendo extrair do pensamento poético de Lili Leitão. Isso no que tange a essa temática. No entanto, me estenderei a análises mais abrangentes de alguns poemas da segunda vertente, tendo em vista que, a despeito de os poemas amorosos atingirem um bom nível de realização estética, os poemas da vertente jocoso-heterodoxa, por suas características singulares de desvios de formas convencionais advindas do sincretismo da época do autor, efetivamente são os que mais riqueza estratégico-formais oferecem ao analista da poesia.
Entendo e enfatizo como vertente jocoso-heterodoxa um somatório de tendências de formas de composição no gênero do soneto, ás quais se podem agregar temas não centrados em situações meramente amorosas, mas em contextos gerais da vida, no cotidiano, em fatos pitorescos, hilariantes, trágicos, soturnos, recursos metapoéticos, metalinguísitcos, intertextuais, cenas emolduradas, paródias, anedotas. Em outras palavras, trata-se de um grupo de sonetos que subvertem a tradição canônico-literária e se dirigem a uma variegado universo que, pelas suas virtualidades de formas e de técnicas e estratégias da linguagem, abrem flancos em direção a uma postura poética cujos sintomas não mais têm quase a ver com o passadismo estreme ao discutir a poesia de Sylvio Figueiredo.
Neste sentido, posso antecipar ser Lili Leitão muito mais subversor do cânone literário do que seu companheiro de livro..Nos poemas amorosos Figueiredo e Lili Leitão não assinalam diferenças de monta no que se refere às form as métricas do verso. Ambos usam o verso decassílabo e o alexandrino. Contudo, Lili Leitão vai além, compõe sonetos de redondilha maior, como é exemplo o “Cromo”.Na leitura em voz alta, aduzo que Lili Leitão consegue, em alguns poemas, alcançar efeitos rítmicas e musicais mais felizes do que Sylvio Figueiredo. Por outro lado, segundo foi já salientado por Roberto S. Kahlmeyer-Metens,[14] Figueiredo se mostra mais erudito, exibe mais bagagem literária do que Lili , que é mais inventivo, espontâneo e possui maior habilidade e maleabilidade do instrumental técnico-estratégico da arte do verso.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE AMOROSA
Na ordem em que estão distribuídos os sonetos amorosos, a seguir identifico os temas explorados por Lili Leitão:
a) O amor impossível (soneto “Pequenina”);
b) A mulher inacessível (soneto “Quando ela passa”);
c) A oposição amorosa entre o passado e o presente (soneto “Recordação”);
d) A transcendência amorosa (soneto “Olhos d’alma”);
e) O amor apenas acessível na forma poética (soneto “Supremo brinde”);
f) O reencontro da felicidade (soneto “Nosso amor”);
g) O amor desfeito pela morte (soneto “Noive morta”;
h) O amor como sentimento mutável no tempo (soneto”Noivos”);
i) Amor sensual (soneto”Contraste”);
j) Amor e erotismo (soneto “Súplica”);
l) A falência erótico –amorosa com o passar do tempo
(soneto “Eu e tu”)
À vista da divisão acima, os temas amorosos em Lili Leitão pouco se diferenciam do leque de temas dessa vertente em Sylvio Figueiredo. O que os separam são alguns elementos de natureza retórico-estilístico-semântica, conforme se pode verificar no soneto “Pequenina”, no qual certos jogos de lexemas homônimos e homógrafos mostram-se engenhosamente empregados na economia do poema. Para ilustrar, tomo o lexema “Pequenina”, extraído do título do soneto, onde desempenha função temática-nuclear no poema, notadamente se o leitor atentar para o aspecto semântico, pois é a partir dele que o soneto adquire consistência estetica e perfeição artesanal.
Um jovem bela e de porte pequeno é objeto da admiração do eu lírico que a ama e por ela não é correspondido. Disso tem certeza, como certeza tem de que nem mesmo ao nível do pensamento interior, do amor sentido, há para ele qualquer esperança.
Todavia, como bom soneto de corte romântico, o “eu lírico” faz da impossibilidade do amor físico, a possibilidade de um amor platônico, quando reconhece estar aquém do poder da conquista do amor carnal.
Uma plêiade de atributos de beleza cerca a amada, atributos que ascendem até ao plano místico, ao proclamá-la “santa. Vejam-se o 1º quarteto e o 1º terceto, respectivamente:
Pequenina, a formosa pequenina,
De pequenina boca e pés pequenos
É a deusa que idolatro, a púrpura
Constelação dos sonhos meus amenos.
[...]
Em parte, tem razão: - Como essa santa
Há de adorar-me com loucura tanta,
Sendo eu tão pobre e tendo pobre sina?
A repetição, por boa parte do poema do lexema “Pequenina” (título do soneto), nome da amada, como substantivo próprio, seguido de “pequenina”, substantivo comum, e de “pequenina”, adjetivo no sintagma “pequenina boca”, a par da forma variante adjetiva no sintagma “pés pequeninos”, reforça, do prisma do sentimento da amizade, a fragilidade desse sentimento entre a amada e o pretendente desprezado. A reduplicação do desvalor, do ser do eu lírico, através da enunciação “pequenino”, este último lexema, colocado no fecho de ouro do soneto, concorre ainda mais para rebaixar a condição humilhante em que, no poema, se encontra o eu lírico:
[...]
É pretensão demais, de louco amante,
Pois eu devo lembrar-me, a todo instante:
- Sou pequenino para Pequenina!
A reduplicação em número de sete vezes, variando a grafia e a semântica do lexema liderado pela forma primeira do titulo, e aliada à aliteração da palatal surda “p” no conjunto das ideias da peça literária, não deixa de ocultar algo do texto enquanto fatura poética de extrema ludismo linguístico e mesmo uma atmosfera patética de auto-comiseração.
Convém, ademais, notar a dominância da palatal “p”, que ainda se faz presente nos lexemas “pobre”(1º terceto, 3º verso), a predisposição do poeta (e mesmo precocidade) para o relevo que Lili Leitão atribui à linguagem sobre a linguagem, i.e., a metalinguagem. Releva recordar que o humorista joga muito com o trocadilho, o inusitado da língua, a anfibologia, como no caso da anedota ou da piada, que exigem certo esforço mental para entender jogos de sentidos, empregos de nonsense e outros expedientes que põem o ouvinte/leitor em estado de alerta à compreensão da mensagem.
O tema da impossibilidade da conquista amorosa por razões financeiras ou de nível social superior, caracteriza um soneto de corte romântico.Recorde-se que a vida pessoal de Lili Leitão foi pontuada de aperturas financeiras A relação entre Romantismo e biografia do autor é uma questão polêmica recorrente envolvendo os liames entre autor e literatura.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE JOCOSO-HETERODOXA.
Para a vertente jocoso-heterodoxa, escolhi como objeto de análises quatro sonetos de poeta com os quais pretendo concluir este ensaio: “Um poema”, dedicado à mãe do autor; “As fitas,” explicitamente classificada por Lili Leitão como uma paródia ao soneto parnasiano “As pombas” de Raimundo Correia; “Analisando” e “Na loja”.
“Um poema”, a começar do título, conota-se primordialmente de motivos que combinam dois constituintes temáticos fundamentais: o sentimento de amor materno e a velha questão da criação literária – este ultimo sempre retomado por poetas e escritores, ensaístas, críticos e teóricos da literatura. O primeiro constituinte motivacional do sentimento profundo de amor à mãe não vem enunciado somente na superfície dos lugares-comuns dirigidos à mãe do poeta.
Como se sabe, a mãe é símbolo primordial da criação do homem na Terra, desde as referências bíblicas da criação do mundo, da costela de Adão, da vida no Paraíso e da queda da inocência pelo pecado de Eva – a primeira mulher , a que dará frutos para sempre, a mulher-símbolo da fertilidade, da reprodução, do caminhar da humanidade e da perpetuação da espécie.
O segundo constituinte motivacional, enquanto houver a capacidade humana para criar Arte, será retomado pelos poetas e todos os autores de outros gêneros literários e inelutavelmente conduzirá a dois caminhos teóricos: o da inspiração, que é de procedência romântica, e o da construção do poema ou outro gênero literário como resultante do trabalho lógico, consciente, produto da imaginação, da emoção e do conhecimento técnico a serviço da linguagem-objeto, do que os formalistas russos designaram como literariedade.
Por conseguinte, na criação literária do soneto e no correspondente desvelamento analítico do “Poema” reside a força-motriz da essência do sentimento profundo do amor à mãe. Repare-se que, no desenvolvimento dos versos tem-se a tensão dialética entre o que o eu lírico anseia concretizar e a formalização poética no processo de construção pela escrita.
A dificuldade que se põe perante o eu lírico estará entre conseguir escrever um poema de homenagem à mãe e o receio de que não seja capaz de externar esse sentimento extremoso de forma ideal e artisticamente compensadora, i.e., que esteja à altura da nobreza do ato da escrita do poema.
O campo semântico do soneto é francamente romântico, especialmente pelo desejo manifesto de louvar as virtudes maternas. O esforço do eu lírico soa até com intensidade épica no quarteto inicial:
Tentei fazer um poema, em que pudesse
Despejar flores sobre o teu regaço,
Revelando o teu nome a cada passo,
Com todo o ardor que a inspiração me desse.
No 2º quarteto, a dificuldade da comunicação poética mais se intensifica quando o eu lírico se defronta com o elevado nível de emoção, o qual se torna até obstáculo à realização do poema. Em outras palavras, a emoção sufoca a razão, a ponto de, no 1º terceto, sofrer uma interrupção do processo criativo:
[...]
Parei, porque nem sempre a pena exprime
Tudo que é puro e tudo que é sublime.
O 1º terceto mostra claramente um dos grandes problemas da criação literária: a de que nem sempre a expressão comunicativa é lograda pelo artista.
Neste diálogo silencioso entre o “eu” do poeta e o “tu”, a destinatária da mensagem, a mãe do poeta, a confissão se reveste de aparente sinceridade no sentido de que a obra literária virtualmente pode atingir seu objetivo, só que no plano abstrato, no plano do pensamento. A função conativa, em tom de desculpa pela impossibilidade de realização estético-emotiva do poema reitera a contradição entre o que se construiu fisicamente como poema – o soneto de título “O poema” – e o tumultuado coração romântico do poeta: Vale, por fim, acrescentar que a chave de ouro do soneto em causa, longe de negar a existência do poema a ser produzido, o confirma pela presença da enunciado do discurso poético, ou seja, por todos os seus elementos configuradores : versos, ritmas, estrofes, acentuação, métrica, sintaxe, imagens, metáforas, disposição grafemática do poema de forma fixa, enfim, tudo distribuído no espaço que lhe é próprio, que é o espaço físico, visual, da poesia:
[..]
Mas não te zangues, não, nem fiques triste...
O poema que mereces, ele existe:
Ficou guardado no me coração!.
No soneto “As fitas”, claramente definido pelo autor como uma paródia ao soneto “As pombas”, de Raimundo Correia,[15] famoso vate parnasiano, ao explicitar o texto original do qual Lili Leitão faz um exercício parodístico, ele dessacraliza todo o clima aristocrático do uso de lexemas raros, solenes, “o lavor do verso” como queria Bilac por influência de Gautier que, por sua vez, redundou no seu “Profissão de fé”, embora seja preciso sublinhar um fato: Raimundo Correia, tendo sido parnasiano, não o foi nos exageros formais e marmóreos deste estilo literário. Até chegou mesmo a confessar certa hostilidade a essa forma de linguagem.
Tendo-se como princípio de que a paródia tanto serve para descaracterizar criticamente a forma do texto original quanto se emprega para prestar homenagem ao autor parodiado, na situação de Lili Leitão, meu ver, e conhecendo-lhe alguns traços de sua poesia como de sua própria personalidade inclinada ao humorismo, não é difícil concluir que sua paródia decalcada do soneto “As pombas” mais se deve à sua habitual vocação satírico-humorística – o prazer do jogo lúdico com a linguagem em si - que mais explica histórica e socialmente o poeta Lili Leitão do que algum componente de cunho corrosivo da paródia em si.
Apagando do texto de Raimundo Correia as imagens e construções mais grandiosas no que diz respeito ao conteúdo de ordem filosófica ou moral do soneto “As pombas”, as quais são inerentes ao Parnasianismo, o poeta de Vida apertada manteve o essencial espécie de vigas mestras compostas de palavras que indicariam as “marcas” do texto original, que foram empregadas no texto parodiado, de que resultou a seguinte figuração espacial :
Vai-se a primeira x x,
Vai-se outra mais ... mais outra xxx
x x vão-se, x x, apenas,
x x x x.
E x x x x x,
x x x x x elas, x,
Voltam todas x x x.
Também dos x x x,
x x x x x
Como x x x x.
x x x x x x x x Soltam
x, x x, x x voltam
e x x x não voltam mais !
Os símbolos representados por x constituem as palavras do texto parodiado. A pontuação figurada é a empregada por Lili Leitão. Pelo visto, os lexemas retirados do poema-fonte são reduzidíssimas ressaltando que, no 3º verso do 11º quarteto, o lexema “apenas” que parece no texto de Correia, aí foi deslocado, no soneto de Lili para o princípio do 4º verso deste quarteto. Da mesma maneira, o esquema rimático obedece à mesma disposição no texto parodiado.
Não pretendo neste estudo por ora examinar pormenores da estrutura versificatória em Lili comparando-a, no âmbito do soneto, com a de Raimundo Correia. Apenas posso antecipar que os dois sonetos se realizam em versos decassílabos, nos quais o elemento rítmico e rimático em ambos mantém rigor no discurso poético.
A grande diferença entre o texto de Correia e o de Lili se patenteia na desconstrução do pensamento filosófico elevado do primeiro, em que os sonhos idealizados pelos corações na adolescência são, mais tarde, desfeitos, ao passo que, em Lili Leitão existe uma intencional comportamento caricatural ligado à diversão. Na mudança de ambientes completamente diversos de um soneto (“As pombas “) e outro ( “As fitas”), e dos seres neles envolvidos, num os pombais com as suas pombas que deles partem e voltam mais tarde; noutro, os cinemas que, em sessões de horários noturnos diferentes, exibem velhos filmes assistidos por seus habitués noturnos.
A paródia tem sido um velhíssimo recurso intertextual muito utilizado na história literária ocidental. Num capítulo sob o título de “Limites da Intertextualidade”, da obra A retórica do silêncio, o poeta e ensaísta Gilberto Mendonça Telles[16] enumera algumas situações de relações formais e semânticas entre textos que guardam entre si relações de semelhanças, contiguidades formais, semânticas, retóricas, que implicam discussão de conceitos de texto-fonte e textos derivados, modificados, influenciados, imitados, plagiados e até textos que se relacionam a um outro por servirem como referência cultural, forma de diálogo ou chancela de uma autoridade reconhecida e respeitada., tais são os exemplos de epígrafes, prefácios, posfácios, manifestos, paródia, introdução ou apresentação de obras. Mendonça Telles, nos exemplos enumerados por ele, os chama de “discursos paralelos”.
O princípio da paródia se estabelece nesta mudança, neste deslocamento, numa descida de tons, de ambientes cênicos, da linguagem que da pompa retórica desce à vulgaridade coloquial, da anulação praticamente do seu nível conotativo, da subtração das imagens finamente elaboradas do texto-fonte. A paródia, no soneto de Lili Leitão atinge seu clímax de rebaixamento moral-existencial quando, no último terceto, citado mais adiante na conclusão desta análise, contrasta a ideia central dos sonhos juvenis desfeitos do soneto de Correia com o lamento carnavalizado do gasto minguado dos cinco tostões na compra das entradas ao cinema, num patético gesto de um mendigo.
Neste aspecto, o soneto de Lili se enquadraria nos três tipos de paródia da classificação de Joseph T. Shipley, os quais extraí do citado livro de Mendonça Telles: [17]
1) A verbal, “ ... na qual a alteração de uma palavra torna trivial uma peça literária:
2) A formal, “na qual o estilo e os amaneiramentos de um escritor se usam como tema de zombaria. Estes dois níveis são humorísticos;
30 A temática, “em que a forma e o espírito do escritor são caricaturizados.”
Entre o tom de impassibilidade parnasiana e a veia satírica de Lili a metamorfose, no tocante ao tema, rebaixa a linguagem, a situação existencial de um “eu-lírico” que, além disso, sinaliza uma recorrente situação da temática da obra humorística de Lili Leitão, de resto aludida anteriormente neste trabalho: o problema da fome, das aperturas financeiras, o que explica os seus desacertos de intelectual boêmio em constante combate quixotesco contra os “tostões” que a vida madrasta lhe negou e como é exemplo paradigmático o soneto em exame citado abaixo no seu último terceto :
[...]
Nas trevas da gaveta o timbre soltam,
Porém, noutra sessão, as fitas voltam
e esses cinco tostões não voltam mais!
O soneto “Analisando...” é bem curioso pelos desvios estratégico-compositivos. Foge aos paradigmas poemáticos tanto dos estilos literários conhecidos em que poderia se moldar como sobretudo pela introdução de um breve diálogo. Mais se ajustaria a uma breve peça de palco de revista. A conversa se trava entre um professor, o eu lírico, e uma aluna.Veja-se o 1º quarteto do poema:
- Sei eu conheces bem a língua portuguesa.
Vamos analisar um pouco uma oração.
Aí tens: “O nosso amor domina o n osso coração”.
É um trecho bem comum, de máxima clareza.
Tudo é muito simplesmente desenvolvido, sem rodeios nem artifícios retóricos, sem aparente poeticidade. Seria, a princípio, um soneto apenas nos seus elementos extrínsecos com intenção de aliar a função metalinguística à alusão do amor, lexema recorrente sobretudo no Romantismo.. O soneto ganha em invenção, leveza e originalidade na medida em que joga, como disse, com a forma de composição poética.
Aqui repousa em grande parte a significação básica do soneto, assim como cria uma ambiguidade: saber se “o nosso coração” ultrapassa as fronteiras de uma simples aula de língua portuguesa ou se o pretexto da frase escolhida adrede como objeto de análise sintática esconde alguma intenção de natureza sentimental entre mestre e discípula. Poesia é plurissignificação, mesmo quando subentende ludismo, humor e irreverência – recursos altamente iteratiavos e identificáveis a quem se familiariza com os textos de Lili Leitão.
A atmosfera do soneto segue sem voos poéticos. Apenas toma forma poemática para mostrar como a construção de um soneto pode-se valer de um pequeno diálogo teatral que, servido dos protocolos técnicos do verso, do poema, consegue fazer-se poesia. Alguém já disse que a poesia moderna está em todas as coisas. Dos grandes e pequenos temas ou mesmo de tema algum, Girando em torno de si mesma, a poesia ainda encontra amplo espaço para ser menos tema, menos assunto e mais literatura, mais linguagem.
A ruptura que o Modernismo de 22 desencadeou, no que dizia respeito a tema, formas e linguagens próprias do conservadorismo literário até pelo menos a fase epigônica da produção poética brasileira, fez emergir uma nova postura anti-aristocratizante e, aos poucos, foi substituindo o uso de vocábulos solenes por vocábulos fora dos circuitos e temas elitistas e eruditos, como seriam dois bons exemplos um poema de Manuel Bandeira,[18] o que estaria dentro da nova postura bandeiriana que se iniciou com a sua conhecida “Poética”, da obra Libertinagem (1930) e ainda nesta mesma direção com o poema “Nova Poética”, da obra Belo Belo (1948)
Para os objetivos da minha análise do poema “A loja” de Lili Leitão recorro a uma fonte de comparação e de referência devido a pontos comuns na natureza do material empregado na composição do soneto de Lili e daquele poema de Bandeira extraído de uma notícia de jornal. Reporto-me ao “Poema tirado de uma notícia de jornal,”[19] do mencionado livro Libertinagem, obra editada já em plena ebulição modernista . Bandeira já havia aderido às formas modernistas da poesia, com o livro O ritmo dissoluto (1924), que anunciava um divisor de águas de sua poética ainda presa aos cânones tradicionais.
O poema criado a partir de uma notícia de jornal exemplifica aquele preceito proclamado pelas vozes modernistas segundo o qual não existem temas especiais para a poesia. Esta se pode achar em qualquer espaço físico ou mesmo em qualquer fonte não necessariamente “ poética.”.
Ao utilizar uma matéria narrativa no espaço poético, Bandeira transfunde o prosaico em poético e, por cima disso, ainda constrói um pequeno poema criativo, com traços até pré-concretistas, porquanto a organização estrófico-espacial por ele empregada produz emoção e apelo visual-espacial (os verbos “Bebeu”, “Cantou”, “Dançou” verticalmente dispostos) fruição lírica e até agrega ao lirismo uma dimensão trágica. Não há nada semanticamente no poema que na superfície faça o leitor pensar estar diante de poesia. Só pelo poder da manipulação das imagens, dos artifícios “técnico-compositivos”, como diria Aguiar e Silva [20], ao sintetizar as ideias de Paul Valéry sobre o complexo ato de escrever um poema, aproveitando um assunto digno de matéria sensacionalista de jornal, consegue o lírico de Itininerário de Pasárgada realizar um poema de impacto e de natureza eminentemente poética.
No soneto “A loja” de Lili, consta, todavia, observar que o autor, apropriando-se de uma anedota, a qua, em certa medida, l se alinha entre todas aquelas formas escritas (ou orais) como a piada, a ironia, a sátira, a zombaria, o chiste, a transfere para uma forma poética tradicionalmente de natureza canônica, sem que, no trabalho de elaboração criativa e original, o soneto deixe de perder sua intenção humorística. Já no exercício da paródia, cujo exemplo é o soneto “As fitas”, a transferência se concretiza diretamente de um poema de formalização séria que, pela paródia, provoca o estranhamento de natureza cômica. Neste caso, valeria esta citação de André Jolles: [21]
[...] Certas formas de zombaria – penso na paródia - oferecem uma certa semelhança com a imitação. Elas repetem aquilo de que zombam, mas sublinhando, pelo cômico, o que continha os germes de um desenlace; reptem-no de uma maneira que o desfaz como um todo.
Mantidas as proporções devidas, o poema “Na loja” presta-se a comparações pertinentes. Se no poema de Bandeira há uma “notícia” de jornal, e no de Lili textualmente se declara a origem da fonte do tema, uma “anedota”, mas nem um nem outro reproduzem a fonte, já que ambos os poemas se apresentam feitos diante do leitor.
O material em ambos é apropriado de uma realidade não–poética. Em Bandeira, João Gostoso é o protagonista da “narrativa”, que se suicida se jogando nas águas da Lagoa Rodrigo de Freitas. No soneto de Lili, a personagem, uma jovem “meiga” e bonita”, entra numa loja em companhia da avó a fim de comprar uma fita de cetim azul-marinho. Ao perguntar pelo preço, o vendedor, um galanteador, não se demora e como resposta lhe diz que o preço seria “um beijo” para “cada metro”.
A mocinha se queixa do preço, mas acaba pedindo ao vendedor que “lhe corte dez metros”. O caixeiro, prelibando o prêmio em forma de dez beijos, rápido, exultante, atende ao pedido da jovem.
No momento de pagar, em chave de ouro, a mocinha malandramente dele se despede e conclui com essa tirada imprevisível : a avó pagaria a conta:
[...]
- Pronto, formosa! O pagamento, agora...
E a moça lhe responde, sem demora:
- Adeus! Quem paga as compras é vovó!.
Na leitura dos poemas humorísticos de Lili Leitão, a chave de ouro mantém regularmente um insuspeitado final cuja consequência por parte do receptor da mensagem é o humor, a galhofa, o intento carnavalizado.
Tomando o ensaio teoricamente como tentativa de não esgotamento das virtualidades estéticas dos dois poetas, Sylvio Figueiredo e Lili Leitão, nos aspectos da pesquisa ora concluída, posso reafirmar que a obra de ambos em muitos ângulos mostra uma certa unidade poética, seja pelos temas dominantes em Sonetos , seja pelos seus valores literários.
Este estudo não confirma absolutamente serem os sonetos reunidos de qualidade secundária ou dignos do limbo, posto que, em termos de avaliação crítica, diria que Lili Leitão, por ser dotado de maior talento inventivo e de dispor de mais recursos estratégicos compositivos , por vezes atinge um nível de qualidade superior a Sylvio Figueiredo, malgrado este dispor de mais sólida formação cultural, segundo já referi neste trabalho.
Por outro lado, a leitura de ambos bem merece ser objeto de maior reflexão e, no meu entender, ainda se presta tanto aos rigores da crítica de hoje, quanto maior divulgação e entre o público ledor.
O passado da literatura é também um modo de inscrição histórico-social que ao presente importa como conhecimento, experiência e acumulação do saber. Incursionar pelo pensamento poético, imagens e formas de linguagens destes dois poetas da Belle Époque daqueles recuados tempos das três décadas do século passado é uma oportunidade que o leitor não pode perder de vista.
Ainda que distante do seu contexto literário-periodológico, os Sonetos podem bem ainda propiciar um proveitoso momento de leitura para os amantes de poesia, sobretudo porque – releva lembrar – a poesia destes dois poetas honram a intelectualidade boêmia e inesquecível dos frequentadores noturnos do célebre Café Paris.
NOTAS
[1]TEIXEIRA NETTO, Wanderlino. Lili Leitão e a Roda do Café Paris. In: LEITÃO, Luiz. Vida apertada – sonetos humorísticos. 2 ed. crítica de Roberto S. Kahlmeyer-Mertens. Niterói: Nitpress, 2009, p. 125-128

[2]Op. cit., nota 1.

[3]Ver o” Ensaio de Apresentação” de Roberto S. Kahlmeyer-Mertens, organizador do Sonetos, de Sylvio Figueiredo e Lili Leitão, livro prometido para publicação este ano pela editora Nitpress, Niterói, RJ.

[4]Todas as citações de versos de Sylvio Figueiredo e de Lili Leitão, para os propósitos deste estudo, foram por mim atualizadas de acordo com a grafia em vigor.

[5]MATOS, Gregório de Obras de G. de M. – IV – Satírica, vol I. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1930, p. 137-142.

[6]EAGLETON, Terry. How to read a poem. Malden, MA. USA: Blackwell Publishing, 2008., p. 165..

[7].SILVA, Da Costa e. Poesias completas.2 ed. rev..e anotada por Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: LIVRARIA Editor Cátedra; Brasília: INL/MEC, 1976, p. 177-186.


[8]Cf. RICIERI, Francine. Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. Seleção e notas de Francine Ricierei. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009,. Ver página 24


[9]RICIERI, Francine. Op. cit., ibidem.

[10]BANDEIRA, Manuel. “Os sapos”. In ---Poesia completa e prosa. Vol. único. Org. pelo autor.. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1986, p. 158-159.

[11]Ver CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT. Dicionários de símbolos. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994. Ver os verbete “Abelha”, p.3-4 e “Corvo”, p.293- 295.

[12]Apud BURTIN-VINHOLES, Suzanne. Cours de français. 1er. Année. Porto Alegre: Globo Editora, s.d., p. 244-245.

[13]Confira o poema no original em francês: Sois-moi, fidèle, ô pauvre habit que j’aime!/Ensemble nous devenons vieux/Depuis dix ans, je te brosse moi-même/Et Sócrates n’eut pas fait mieux./Quand le sort à ta mince étoffe/Livrait de nouveaux combats/Imite-moi, résiste en philosophie:/Mon viel ami, ne nous séparons pas./Je me souviens, car j’ai bonne mémoire/Du premier jour ou je te mis,/C’était ma fête, et, pour comble de gloire,/Tu fus chanté par mes amis./Ton indigence que m’honore,/ne m’a point bani de leurs bras,/Tous ils sont prêts à nous fêter encore :mon vieil ami, ne nous séparons pas.

[14]Cf. nota 3 deste estudo.

[15] CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Vol. 1. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1948, p. 38.

Eis a íntegra do soneto de Raimundo Correia: Vai-se a primeira pomba despertada.../ Vais-e outra mais... mais outra... enfim dezenas / De pombas vão-se dos pombais, apenas/Raia sanguínea e fresca a madrugada.. //E à tarde, quando a rígida nortada/Sopra aos pombais de novo elas, serenas,/Ruflando as asas, sacudindo as penas,/Voltam todas em bando e em revoada...//Também dos corações onde abotoam,/Os sonhos, um por um, célebres voam,/Como voam as pombas dos pombais //No azul da adolescência as asas soltam,/Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,/E eles aos corações não voltam mais...

[16]TELLES, Gilberto Mendonça. A retórica do silêncio. – tória e prática do texto literário. São Paulo: Cultrix/INL?MEC, 1979, p. 21-37. Para uma breve e consistente estudo sobre a paródia , assim como da paráfrase outros temas correlatos, seria bom consultar o livrinho Paródia, paráfrase $ CIA, de Affonso Romano de Sant’Anna. 5 ed. São Paulo: Ática, 1995, especialmente os capítulos 3, p.11-13, e o capítulo 12, p.6567 sobre o conceito de “Intertextualidade”, no qual desenvolve um brevíssimo e útil comentário sobre o “Poema tirado de uma notícia de jornal ”, de Manuel Bandeira.

[17]TELLES, Gilberto Mendonça. Op. cit., p. 28

[18]BANDEIRA, Manuel. Op. cit., p. 207, referente ao poema “Poética”; p. 287, referente ao poema “Nova poética”.

[19] Idem , p. 214. Por falar no poema de Bandeira “Poema tirado de uma notícia de jornal”, conviria consultar uma análise monumental que Davi Arrigucci Jr desenvolve sobre esse poema na seção 3 sob o título “Poema desentranhado” da Primeira parte da obra A poesia de Manuel Bandeira: humildade, paixão e morte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 89-119.

[20] SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. Volume 1. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1984, p. 216.

[21] JOLLES, André. Formas simples. Trad. De Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 214.



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