A. Barcellos Sobral
(1919 - 2012)
Na noite de ontem nos deixou o poeta, esteta e teórico da literatura A. Barcellos Sobral. Sobral era autor de significativa obra poética e possuía um ensaio de estética original intitulado Contemplação da unidade – Tentativa de uma holística da existência. Autor, também, de obras primas como Misael, crônicas de uma paternidade e No alto como as estrelas, Sobral despertava a admiração e o respeito de todos que conheciam sua obra.
Celebrando a memória deste que reunia todas as condições para – sem favor algum – ser chamado de savant, a postagem de hoje traz um conjunto de apreciações da obra do autor e excertos de uma entrevista inédita concedida por aquele teórico a mim (entrevista que será publicada num livro chamado Conversações com intelectuais fluminenses, a ser lançado em maio próximo).
Depoimentos
“... os poetas modernos têm medo do pensamento. Fogem da poesia filosófica. Ou então ficam no puro abstracionismo. O senhor não. Enfrenta essa coisa dificílima: a poesia e a especulação. E o seu pensamento não esmaia a beleza. Nem esta abafa a meditação.
O essencial é que vejo, nos seus versos, um sentido próprio, um caminho original e alguma coisa que pode vir a marcar...
... sinto que seus versos, não só por serem inéditos, mas por serem o que são, representam alguma coisa de sério e mesmo de importante.”
Pois li Misael, agora. E gostei muito. Belo texto. Você é um grande poeta. Feliz Misael, que teve um tal pai. Felizes os cinco filhos, que tiveram Você. Delicadeza, harmonia, uma atmosfera simbolista, a depuração, o ritmo sutil, tudo impecável, raro. Gratíssimo a Você pelo dom dessa alta poesia, expressa numa forma perfeita, num estilo que está entre os mais puros do Brasil. Você me lembra às vezes certas páginas refinadas do melhor Andrade Murici. Quer dizer, um herdeiro do simbolismo. Misael precisa de ser publicado. E quanto antes.
Creia que foi um prazer para mim dialogar tranquilamente com a sua poesia. Você é puramente um poeta. Que carta bonita lhe mandou Tristão ― há tantos anos... Consagradora. Calorosa. Plena justiça a você, a seu talento, a essa misteriosa dedicação desinteressada à poesia ― mysterium fidei. Você já leu A minha Fé, de Joaquim Nabuco, uma apologia da sua fé, escrita em Petrópolis, 1892-1893, inédita até agora no Brasil, publicada pelo Instituto Joaquim Nabuco, do Recife? Que livro penetrante. Sua poesia é toda filosófica. Você é simultaneamente um poeta e um filósofo. Uma poesia densamente psicológica, sim, e tocada sempre por uma indagação metafísica. Você poderia chamar à sua Poética Diário Metafísico, à maneira de Gabriel Marcel. Porque você é um homo viator, um peregrino, um servidor da verdade, alguém que não se pertence, mas pertence à poesia, à vida transcendente. Que domínio completo e ágil tem você da forma poética. Você encontrou realmente a sua forma, o seu ritmo perfeito, harmoniosa, exato, a sua respiração. Poesia é respiração. Você recebeu de fato esse grande dom poético, o poder de exprimir a vida em termos de beleza. Você está longe felizmente de ser um racionalista. Você acolhe a vida, a vida toda, inteira, na sua complexidade. Você bem sabe que “intellectus quidam defectus est ratio”, a razão é a imperfeição da inteligência. Você é inteligência e sensibilidade. Guardo uma impressão muito agradável dessa poesia profunda, vivida, sofrida, existencial, de uma densidade e de uma leveza constante, que é a sua poesia. Você é um criador pleno, maduro, altamente consciente. Você conhece a poesia de Wilson Alvarenga Borges? Lembrei-me agora dele a propósito de você. Há analogias entre as experiências poéticas dos dois artistas. Penso a seu respeito na obra de Raïssa Maritain, tão vertical, tão diáfana, tão espiritual sempre. La Vie Donnée , Lettre de Nuit, Au Creux du Rocher, tantas páginas de suma beleza, como o poema trágico Deus Excelsus Terribilis, em plena guerra. Você pertence a esse nobre universo dos poetas profundamente espirituais. Um Max Jacob, um Pierre Reverdy, um Alphonsus, um Dom Marco Barbosa, um Francisco Karam, uma Maria Isabel, uma Carminha Gouthier... Tantos. Receba o abraço de admiração afetuosa do seu velho e enternecido leitor, que deseja tudo de bom para você.
“Quanta angústia e quanta reflexão. Agora a carta de Tristão torna-se mais clara para mim. Terá sido a análise do POEMA? O Sr. me lembra o Leopardi e o Augusto dos Anjos, em sua cósmica e dilacerante indagação, pondo de lado o arcabouço cientifico, que emprestava à forma uma mensagem específica. Lembra-me, de certo modo, Leconte de Lisle e, mais intensamente ainda, lembra-me o poema de Arturo Graf. Exatamente. Graf. No poema em que fala de um silêncio voraz, avassalador, implacável, a contrastar com o rumor de sua angústia e desespero.
Os seus poemas são de uma beleza e de uma força extraordinária. O aspecto místico, ainda que importante, não prepondera. A sua força se concentra muitíssimo na melodia intrínseca de cada reflexão. Logopéia, teria dito Ezra Pound.
Uma poesia transida por uma intensa re-flexão, onde a mística e o lirismo se entrelaçam num ritmo preciso e concentrado. O poeta, a natureza e os homens tecem um dialogo com a eternidade, a partir do fluxo do cosmos e da conquista da alma.
Tenha por ora a minha impressão mais ardente e sincera de uma grande poesia.”
“A densidade das reflexões consignadas em Contemplação da unidade nos mostra que o livro é mais que um tratado de estética: estaríamos diante de um daqueles casos em que o valor da obra se mostra quando nos sentimos desafiados ao seu estudo. Trata-se de um trabalho cuja importância se mensura pelo tempo dispensado ao seu entendimento. (...) A autenticidade do projeto de A. Barcellos Sobral necessita de herdeiros disponíveis a aprender a sua visada abrangente, criadora e rigorosa, de gente que esteja disponível a contemplar a Unidade.
Eis o trabalho da vida de um homem, um livro que nos ensina que a contemplação não é apenas exploração ou crítica, mas um amor sem paixão, capaz de perceber as coisas simples, serenamente”.
Desde 1955, quando o Clube de Poesia de Campos, sob a liderança do sempre lembrado Mario Newton Filho, lançou Poema – 1º Caderno, A. Barcellos Sobral foi reconhecido como autor de uma poesia essencialmente espiritual, de fundo dramático. Em No Alto Como as Estrelas, editado em 1987, pela Cátedra, e neste Misael, sua produção evolui para o lirismo, dela desaparecendo todos os vestígios da primeira publicação.
Misael – Crônica de uma paternidade é uma coletânea de primoroso texto, permeando aleluias e hosanas com formas abissais de ternura e beleza. Livro reclamado, de há muito, pelas estantes mais categorizadas da poética brasileira, Misael satisfaz a espera de anos, para tornar-se obra obrigatória na nominata do que melhor existe em nosso país”.
“De seu livro Poema⁄1º Caderno agradou-me mais a primeira parte. Julgo realizada a experiência de uma diferente metrificação. Há uma mágica, um ritmo ímpar, que resultam da nova contagem de sílabas, e muito bem se adaptam ao seu pensamento”.
Entrevista
K-M: Numa primeira avaliação do conjunto de sua obra, por um olhar superficial, ela parece heterodoxa. Temos poesia lírica, dramática, poemetos que o senhor chama de “parábolas”, poemas em prosa e, no fim de tudo, um ensaio científico. Numa segunda visão, atenta ao conteúdo, é possível enxergar um fio condutor que parece perpassar os seus textos, desde a obra de juventude, lá em 1955, caminhando necessariamente para o seu livro Contemplação da unidade,[3] de 1998. Com isso talvez se esboce o itinerário para o que o senhor, nesse livro, chama de “poesia integral”. Minha leitura é correta ou estaria diante apenas de uma impressão? Há um ‘leitmotiv’ ou seria uma miragem?
BS: Há o fio condutor. E isso já pode ser constatado desde minhas parábolas, pois nelas já há a indicação do que penso filosoficamente. Meu entendimento de filosofia é diverso do tradicional. Penso que seja mais próximo do de sabedoria, encontrada no pensamento oriental e em alguns místicos do cristianismo, do que na tradição filosófica, que às vezes tende a uma verborragia. Perdoe se digo isso a um leitor de Kant, Hegel e Heidegger, como você.
K-M: O que o senhor chama de parábolas são como pequenos poemas. Tais como “koans”, enigmas budistas a que certos cientistas contemporâneos recorreram para pensar a física quântica. Permita-me que leia duas parábolas de seu livro No alto como as Estrelas:
“Falo demais do ser
e da beleza. Pode a fonte
mudar seu canto?”
E ainda
“Penso em Deus.
Corre a tartaruga
atrás da luz.”
BS: Muito bem. Note-se que a parábola, antes de ser literária, tem uma significação filosófica, em um plano ainda mais profundo. Tenho perto de 2500 parábolas, que contam uma longa história. Isso é sinal de uma direção e, mesmo que não declare isso, é algo implícito no desenvolvimento de minha obra.
K-M: Identifico, então, um caminho da poesia à filosofia. O que prova que poesia e pensamento científico, na sua obra, são indissociáveis.
BS: Pois não, perfeito!
K-M: Talvez por isso vejamos comentários que apontam para esse mesmo sentido sobre o senhor, como é o caso de Marco Lucchesi, Antônio Carlos Villaça e, entre todos os comentários, o de Alceu Amoroso Lima quando (se me permite que leia) diz que:
“Os poetas modernos têm medo do pensamento. Fogem da poesia filosófica. Ou então ficam no puro abstracionismo. O senhor não. Enfrenta essa coisa dificílima: a poesia e a especulação. E o seu pensamento não esmaia a beleza. Nem abafa a meditação (...) o essencial é que vejo, nos seus versos, um sentido próprio, um caminho original e alguma coisa que pode vir a marcar (...) sinto que em seus versos, não só por serem inéditos, mas por serem o que são representam alguma coisa de sério e mesmo de importante”.
Esse parecer, vindo de quem vem, é mais que autorizado. Daí, gostaria de saber como o senhor vê a implicação entre poesia e pensamento. Poesia e filosofia seriam mesmo duas montanhas vizinhas?
BS: Deixe-me ver aqui... é uma longa história... Temos aqui o item 3.2.1 do Contemplação da unidade. Neste item, apresento os meios de projeção estética. O que entendo por projeção estética é a situação do fato estético, nos meios de projeção estética: o microespaço, o macroespaço, o megaespaço e o microespaço-tempo. No microespaço-tempo, teríamos o pensamento, a sensação, o sentimento, a emoção, as pulsões etc. e as artes que se projetam no espaço-tempo psicológico, isto é, a poesia e a música. O microespaço-tempo se divide em físico e psicológico. Isso pode ser verificado em poesias como as contidas em meu Agonia e ressurreição, pois os poemas que aí coloco correspondem ao paradigma de minha poética “psiqueísta” (de psiqueísmo), sem pretender criar uma nova escola literária.
K-M: O senhor poderia recitar uma das poesias, para que possamos ter uma maior clareza do que se trata, por meio da exemplificação?
BS: Pois não. Aqui está:
“Noite fechada.
Caída sobre os neurônios.
A esperança como armadura
menor do que o guerreiro
fere-lhe a resistência.
Mas ele não cede
põe sobre o mal-estar
unguento de paciência.
Resiste heroicamente
como um dique de pedra
resiste à pressão da inundação.
Proibido capitular
ou mesmo gemer resmungar.
A regra é resistir.
Opor logística espiritual bastante
para transformar angústia e caos
em mais ser em mais ser.”
Aqui se expressam os termos da minha poética.
[1] HÖLDERLIN, Friedrich. Hypérion. München: Die Deutscher Klassiker, 1993.
[3] Cf: Bibliografia ao fim desta entrevista.
Principais obras:
Poema/1° Caderno. Campos: Clube de Poesia de Campos, 1955.
No alto como as estrelas. Rio de Janeiro: Cátedra, 1986.
Misael – Crônicas de uma paternidade: Niterói: Cromos, 1996.
Contemplação da unidade – Tentativa de uma holística da existência. 2ª. ed. Niterói: Nitpress, 2010.
Em sinal de luto a A. Barcellos Sobral, o Blog Literatura-Vivência deixará de fazer postagens por
7 dias, a contar da presente data.