sábado, 19 de março de 2011

Breve nota sobre a origem das bandas de música, por R. S. Kahlmeyer-Mertens

À Banda Campesina Friburguense


As páginas do primeiro capítulo de Casa-grande & senzala denunciam nossa composição étnico-cultural. Reveladoras quanto às influências africanas e indígenas, elas também recordam – para nosso assombro – o quanto somos debitários dos europeus. O português teria nos legado a tintura paradoxal de um patriotismo vibrante e do entusiasmo fugaz, a aptidão para imitar e a imprevidência, a vaidade e os escrúpulos de honra, a inteligência prática e a predisposição ao patético, o caráter sociável e generosidade irrestrita. Estes são apontados por Gilberto Freyre como bens no rol de nossa herança lusitana. (1) Com toda atenção que o antropólogo dispensou a nossa cultura imaterial, não recordamos de ter lido nada que o autor tenha escrito sobre a herança de nosso gosto pela música, especificamente aquela executada em espaço aberto: praças, campos, arenas e estádios, longe, portanto, da intimidade dos domicílios burgueses que ocultavam seus pianos e clarinetas.
As apresentações públicas de grupos musicais formados por instrumentos de sopro e de percussão sempre foram cativas ao brasileiro. Inicialmente com caráter militar, contavam com ritmos fortes como a marcha e o dobrado, mas não tardou para que a banda se popularizasse, adoçando seu repertório com polcas, valsas e composições populares.
Poucas atrações causam tão forte impressão à primeira audiência. Em verdade, há todo um elã em torno da apresentação de uma banda de música: um bucolismo festivo de praça em dia de domingo, o feérico coreto em cores amenas, as formas curiosas dos instrumentos, os trajes de circunstância, a presença digníssima do maestro... todos estes elementos nutrem um rico imaginário já existente em torno da banda. Parte desta fantasia coletiva é fomentada por sua história e tradição que, neste caso, justificam o interesse que o fenômeno desperta.
O historiador musical Gustav Reese (2) data a origem da banda ainda na Idade Média, avaliação que encontra respaldo em Carpeaux, ainda que este entenda que a música ocidental começa sacra. (3) Reese assegura que, antes mesmo de a música adentrar a Igreja, menestréis e trovadores já eram guardas e difusores de habilidades (menos que técnicas) que favoreceriam a música instrumental no medievo. Apesar de possuírem um modo de vida reprovado pela sociedade, esses ambulantes foram figuras chave na cunhagem do hábito de se tocar e ouvir música em espaços públicos, de modo que não seria incorreto afirmar que as bandas, tal como modernamente conhecidas, possuem raízes firmadas nesta experiência.
No Renascimento, principalmente na Alemanha, veem-se os instrumentos legados pelos menestréis incorporados à Igreja. Tornava-se, assim, cada vez mais frequente o uso de trompas e trompetes em procissões e festivais religiosos; mais tarde, será possível ver instrumentos de sopro nos ambientes de culto, musicando encenações bíblicas, casamentos e batizados da nobreza. Se considerarmos este como um dos primeiros passos rumo ao acolhimento da música em grupo e à criação do vínculo institucional para os músicos, é preciso dizer que outros não tardaram a ser dados. Vemos, assim, ainda no Quattrocento, em Londres e em Florença, bandas com músicos uniformizados pertencentes às prefeituras tocando em tribunais e em eventos cívicos. O uso militar também era previsto, por animar – como acreditava o filósofo Nicolau Maquiavel – o moral de infantes e cavalarianos que davam combate ao ritmo de cornetas e caixas. (4)
Ao fim deste período, mais que a “transformação do status social do artista”, (5) vemos o refinamento técnico dos músicos e da regência. Tal fenômeno se explica “em consequência da dinâmica da sociedade europeia da Renascença;” (6) tendo, na laicização da música, a revogação dos cânones estéticos da Igreja, em face ao retorno aos valores greco-latinos (verdadeiro abalo no privilégio que fazia da música quase um bem clerical). O advento da imprensa também representou avanço, viabilizando, se não a reprodução de partituras, livros que contribuíram para a criação de uma massa crítica versada em música e um ambiente propício para a formação e expansão do gosto. Não por acaso, presenciamos no período subsequente obras de mestres como Monteverdi, Telemann e Vivaldi para as vozes integrantes da banda.
O aperfeiçoamento da engenharia dos instrumentos, que colaborou para sua feição atual, e o aquiescimento da instrumentação especializada propiciaram, no século XVIII, que bandas pudessem executar obras de compositores proeminentes. Assim, muitas das peças de câmara escritas por Mozart seriam executadas por bandas do tipo Harmonie (formadas geralmente por clarinete, fagote, oboé e trompas); do mesmo modo, Beethoven, Haydn e Schubert contribuíram para o desenvolvimento do gênero. (7)
Por mais que o século XIX tenha sido bastante significativo para este segmento, sobretudo no que diz respeito ao ganho de qualidade técnica dos intérpretes e à consolidação do formato que as bandas têm atualmente, foi apenas nos 1900 que vimos chegar sua autonomia. No ano de 1909, o músico inglês Gustav Holst deu-nos o primeiro trabalho sinfônico original inteiramente dedicado à banda. A Suíte em Mi Bemol, mais que uma peça clássica da música sinfônica para banda, é considerada um marco histórico, cujos influxos se fazem sentir nas escolas britânica, americana e canadense. (8) O exemplo de Holst também motivou compositores como Ralph Vaughan Williams e Percy Aldridge Grainger, cujos trabalhos agregaram tanto recursos expressivos (entre eles, o aumento do colorido na paleta tonal) quanto criativos. Isso é o que se constata ante os inúmeros títulos especialmente consagrados ao repertório atual.
Se no Brasil herdamos dos colonizadores lusos o gosto pela música desses conjuntos, é preciso dizer que ele se firmou definitivamente na paisagem cultural brasileira com a presença dos imigrantes. Dos ingleses, por exemplo, ganhamos mais que a fé na indústria: aprendemos a admirar o gesto marcial, a disciplina dos ensembles e descobrimos a música como forma de expressão de nosso orgulho cívico.
Uma apresentação de banda, seja a de uma ingênua charanga ou a de uma grandiloquente sinfônica, não nos faculta a indiferença. Uma tal arte exalta os melhores dentre àqueles comportamentos inicialmente elencados por Freyre, (9) inspira-nos o sentimento de comunidade (na contramão dos individualismos) e orquestra caros projetos que estão no âmago da civilização ocidental. É em reconhecimento a isso que as iniciativas pública e privada se empenham na perpetuação desta instituição, crédito cujo retorno é o aquecimento das culturas e sociedades.

NOTAS

1 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 31ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p.3-54.

2 REESE, Gustav. Music in the Middle Ages. New York: W. W. Norton, 1940.

3 CARPEAUX, Otto Maria. Uma nova história da música. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1975.

4 MAQUIAVEL, Nicolau. A arte da guerra. Col. Pensamento político. Trad. Sérgio Bath. Brasília: EdUNB, 1980. p.27.

5 MERQUIOR, José Guilherme. A teoria da música, ou a arte como crítica da cultura. In: A estética de Lévi-Strauss. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. p.45.

6 Ibdem, p. 45.

7 HELLYER, Roger. Harmoniemusik: Music for Small Wind Band in the Late Eighteenth and Early Nineteenth Centuries. Oxford: University of Oxford, 1973.

8 HOLST, Imogen. The Music of Gustav Holst, 2ª. ed. London: Oxford University Press, 1968.

9 FREYRE, Op. cit. p.7.











quinta-feira, 17 de março de 2011

Leodegário A. de Azevedo Filho "In memoriam"

O nome de Leodegário dispensa apresentação: Professor titular da UFRJ e emérito da UERJ, Presidente de honra da Academia Brasileira de Filologia e Doutor Honoris Causa pala Universidade Fernando Pessoa, no Porto, foi também o mais respeitado estudioso da obra de Camões no Brasil (reconhecimento este extensivo ao estrangeiro). Falecido em 30 de janeiro deste ano, o professor, que fez sua última apresentação pública na Academia Niteroiense de Letras – ANL, em 10 de novembro de 2010, deixou comigo o texto de sua apresentação para que fosse publicado. Cuidei para que este pedido fosse atendido, enviando o paper para uma respeitada revista eletrônica de literatura. Antes, porém, da publicação integral do artigo, veiculo aqui um extrato para que possamos ter uma prévia da excelência deste último inédito da lavra de Mestre Leodegário.


A verdadeira primeira edição de “Os Lusíadas”, por Leodegário A. de Azevedo Filho.

“Editar criticamente um texto significa apresentá-lo ao leitor em sua forma possivelmente originária ou livre de impurezas, pois a edição de um texto, seja ele qual for, sempre está sujeita a lacunas, saltos, lapsos de impressão, de revisão ou de cópia, omissões, transposições, troca de letras ou de palavras, inovações, interpolações, em suma, erros de toda espécie, incluindo-se aqui os decorrentes de ultracorreção e hipercorreção.
No caso da epopéia camoniana, com duas tiragens, além da editio princeps, datadas de 1572, são numerosos e complexos os problemas que se deparam aos estudiosos de crítica textual.
O ideal seria, acrescente-se desde logo, que todos os exemplares da epopéia camoniana, com data de 1572, apresentassem o mesmo texto, sem qualquer variante grave, secundária ou puramente gráfica. Mas isso, bem sabemos, não ocorre, compreendendo-se assim que, ao longo de vários séculos, tão delicada questão textual tenha ocupado um sem número de investigadores, a começar mesmo por M. de Farias e Sousa, o grande editor do século XVII. Como não se ignora, partiu ele de uma tradição textual divergente e mesmo múltipla, confrontando então dois exemplares dessa tradição, embora sem observar neles a posição do colo do pelicano voltada para a esquerda ou para a direita do leitor na portada dos volumes. Como texto-base, escolheu o exemplar que apresentava no sétimo verso da primeira estrofe, no Canto I, a seguinte leitura: (...)”



O texto integral se encontrará publicado, em breve, na Revista Literária Litteris. Confira no seguinte endereço: http://www.revistaliteris.com.br/