sábado, 6 de agosto de 2011

Outorga da Medalha João Baptista Petersen a Ayrton Pinto Ribeiro (in memoriam)




Sendo um Blog literário, Literatura-Vivência pouco utiliza seu espaço com a divulgação ou cobertura de eventos. Quando o faz, entretanto, é porque considera o evento especial ou, ainda, extraordinário (no sentido literal da palavra, por favor).
Em 5 de agosto de 2011, tivemos uma noite extra-ordinária e, por isso mesmo, digna de documentário. Tratou-se da entrega da Medalha João Baptista Petersen, outorgada postumamente a Ayrton Pinto Ribeiro, pela Câmara Municipal de Niterói.
Intelectual de valor reconhecido nos círculos acadêmicos da cidade, Ayrton Pinto Ribeiro teve sua memória merecidamente lembrada na noite de hoje pelos seus pares e, principalmente, pelos representantes do Poder Legislativo de Niterói (representados na pessoa do vereador Vitor Júnior).

Pelos motivos apresentados acima, a presente postagem não apenas registra o extremo contentamento dos familiares e amigos do agraciado, quanto também a satisfação de toda a comunidade intelectual em saber que a Câmara Municipal de Niterói reconhece e incentiva os produtores de cultura em nossa cidade. Atitude que – além de muito agradar à sociedade niteroiense – torna claro os valores altivos cultivados naquela Casa.
Entre as muitas falas efetuadas durante a cerimônia, Literatura-Vivência publica – na íntegra – o emocionado discurso de saudação proferido por Wanderlino Teixeira Leite Netto, na solenidade de entrega da honraria, além de algumas fotos colhidas in loco.
***
 
Discurso de saudação a Ayrton Pinto Ribeiro, agraciado in memoriam com a Medalha João Baptista Petersen. (1)





Ilmo vereador Vitor Júnior,
prezados familiares de Ayrton Pinto Ribeiro,
senhoras Eliana Bueno Ribeiro Vianna Santos,
Lia Bueno Ribeiro de Carvalho Gama,
senhor Jarbas Pinto Ribeiro,
demais integrantes da mesa,
outros vereadores e parentes do homenageado porventura aqui presentes,
senhoras, senhores.

Parabenizo o vereador Vitor Júnior por haver removido o véu da deslembrança e nos reunido neste plenário Brígido Tinoco para esta homenagem à memória de Ayrton Pinto Ribeiro.
Agradeço à senhora Eliana Bueno Ribeiro Vianna Santos pelo honroso convite para que eu ocupasse esta tribuna. Espero corresponder à confiança em mim depositada.
Residindo no exterior faz algum tempo, é possível que Eliana se tenha espantado com o fato de que os contemporâneos de seu pai, dos quais se lembrou, só poderiam saudá-lo por meio de afagos com mãos de nuvem, exceto o queridíssimo e longevo Luís Antônio Pimentel, prestes a comemorar seu centenário de nascimento.
Devo confessar-lhes que nunca havia sequer falado com Eliana até uma semana atrás, mas já lhe reservo afeto de antiga amizade, semelhante àquela que seu pai e eu cultivávamos. Justifica-se assim o tratamento coloquial que passei a lhe dedicar neste pronunciamento já a partir do terceiro parágrafo.
Ayrton Pinto Ribeiro aceitou o grande desafio em 8 de dezembro de 1911. No dia 9 de fevereiro de 1995 dormiu o sono de não acordar. Eu poderia mencionar outros dados biográficos. Diria, por exemplo, que Ayrton Pinto Ribeiro foi um dos fundadores do Grupo Mônaco de Cultura. Também diria que ele integrou os quadros da Academia Fluminense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Niterói. Segundo o historiador Salvador Mata e Silva, Ayrton foi o mais eficiente de todos os secretários que já passaram pelo Instituto. Poderia, ainda, destacar sua carreira profissional. Que se aposentou como escrivão de Polícia, eu poderia dizer. Poderia falar que Ayrton Pinto Ribeiro escreveu para jornais em Niterói, que deixou livros por publicar. Poderia referir-me ao excelente pesquisador da História de Niterói e do antigo Estado do Rio de Janeiro. Poderia, enfim, dissecar sua biografia.
Porém darei ênfase ao admirável ser humano que brindou a todos que com ele conviveram com sua amizade, que lhes transmitiu lições de compreensão e de tolerância, de valorização do simples, de desapego à vaidade. Ayrton Pinto Ribeiro foi um arauto da salutar convivência. Foi este Ayrton que me veio à mente tão logo recebi o convite de sua filha Eliana para saudá-lo in memoriam nesta oportunidade.
A medalha que hoje se confere a Ayrton Pinto Ribeiro, em homenagem póstuma, leva o nome de João Baptista Petersen, um dos mais atuantes vereadores entre todos os que já passaram por esta Câmara Municipal, tão prematuramente falecido.
A cerimônia desta noite vem envolta no papel celofane da saudade, sentimento dúbio: se por um lado fustiga, por outro afaga. Nesta solenidade, mais afaga do que fustiga. Afinal, realiza-se em louvor à memória de quem sempre fez da delicadeza sua marca registrada. Ayrton Pinto Ribeiro era um homem afável, bom ouvinte, conselheiro cuidadoso.
Por volta de 1966, temerosos do que lhes pudesse acontecer por conta da repressão aos opositores do regime que se instaurara no País pelo golpe militar de 31 de março de 1964, um grupo de amigos passou a se reunir, de segunda a sexta-feira, no Centro da cidade de Niterói, mais precisamente em frente à Galeria Gold Star, na Rua da Conceição. Assim se faziam visíveis. Qualquer sumiço tornar-se-ia evidente. Luís Antônio Pimentel, Hugo Tavares, Ney Costa, Ambrósio Godofredo de Campos Góes e Ayrton Pinto Ribeiro, entre outros, participavam desses encontros. Espirituosamente, declaravam haver fundado a “Universidade do Calçadão”. Em 1986, o grupo ainda se reunia, não mais para se proteger, mas para entabolar animadas conversas. A maioria delas, para justificar a denominação do ponto de encontro, versava sobre literatura. À medida que a redemocratização do País ganhava corpo, novos “universitários” iam surgindo na universidade sem paredes. Alguns se tornavam assíduos, outros por lá apareciam com menor frequência. Gradativamente, por conta da “Indesejada das gentes”, à qual aludiu Manuel Bandeira, as presenças dos precursores foram diminuindo até que aquela universidade ao ar livre cerrou as portas que não possuía.
Foi lá, em frente à Gold Star, que Angelo Longo, também saudoso e querido amigo, me apresentou a Ayrton Pinto Ribeiro. Envolvido com meu trabalho na PETROBRAS, ainda assim me esforçava para comparecer a esses encontros. À época já quarentão, porém quase um menino comparativamente à maioria dos “universitários”, absorvia avidamente as sábias palavras dos mestres, entre os quais o homenageado desta noite.
Minha relação de amizade com Ayrton extrapolou as fronteiras da “Universidade do Calçadão”. Quanto mais se estreitava, mais eu percebia a nobreza de seus sentimentos, de suas atitudes, mais ele se mostrava para mim um semeador de afetos.
Tenho até hoje recortes de O Fluminense, que me eram trazidos por Ayrton no ano de 1990, tempo em que o jornal publicava uma coluna intitulada “Recordando”, por meio da qual abordava partidas de futebol realizadas na década de 1960, quando em Niterói havia estádios e campeonatos do popular esporte. Sabedor de que eu integrara algumas das equipes daquele tempo, Ayrton selecionava os recortes que faziam referência a meu nome e os entregava para mim com o mais afável dos sorrisos.
Faz poucos dias, enquanto alinhavava este pronunciamento, fiz uma descoberta: o autor da coluna, que não vinha assinada, era o próprio Ayrton. Ele a publicara no jornal A Tribuna de 1964 a 1975; em 1990, aí então em O Fluminense, voltara a fazê-lo. Pelo fato de haver exercido o cargo de secretário da Federação Fluminense de Desportos, tinha acesso aos arquivos, nos quais garimpava matéria para a coluna. Entre os meses de maio e outubro de 1990, foram publicados cinco registros envolvendo partidas das quais participei, não apenas em clubes, também na seleção juvenil do antigo Estado do Rio de Janeiro. Sem dúvida, mais um afago do bom Ayrton. Discreto como sempre, lambuzou-me de mel o ego, mas não me revelou ser ele próprio o apicultor.
Pronto para o prelo, A história do futebol em Niterói, significativa contribuição para preservar a memória da cidade, foi um dos livros não publicados por Ayrton Pinto Ribeiro. Sugiro aos familiares que procurem a Niterói Livros, editora vinculada à Fundação de Arte de Niterói, órgão integrante da estrutura organizacional da Prefeitura, cuja finalidade vem a ser a de editar livros alusivos ao município.
Foi este Ayrton Pinto Ribeiro, sempre afetuoso, sempre cordial, sempre generoso, que eu quis relembrar neste meu pronunciamento.
Vou me valer dos últimos versos de “Todo sentimento”, composição de Chico Buarque de Holanda e Cristóvão Bastos para encerrar minha fala. Trata-se de uma canção de amor, mas creio que os versos se prestam também para celebrar a amizade. Dizem assim:

“Depois de te perder
te encontro, com certeza,
talvez num tempo da delicadeza,
onde não diremos nada.
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
como encantado ao lado teu”.

Muito obrigado!

NOTA:
1. Texto gentil e exclusivamente cedido por seu autor ao Blog Literatura-Vivência.







Cobertura fotográfica do evento de outorga da Medalha João Baptista Petersen

Ayrton Pinto Ribeiro (in memoriam)
1911-1995




Mesa diretora. Da esquerda para a direita para a esquerda: Eliana Bueno Ribeiro Vianna Santos,
Dalma Nascimento, o vereador Vitor Júnior, Godofredo Pinto e Eneida Fortuna.



Mesa diretora (visão ampla): Da esquerda para a direita para a esquerda:
Wanderlino Teixeira Leite Netto, Eliana Bueno Ribeiro Vianna Santos,
Dalma Nascimento, o vereador Vitor Júnior, Godofredo Pinto e Eneida Fortuna.


Novo ângulo da mesa diretora. Em primeiro plano, a acadêmica (AFL) Eneida Fortuna,
ao seu lado o professor e ex-prefeito de Niterói Godofredo Pinto e o vereador Vitor Júnior.



Ângulo oposto da mesa diretora. Wanderlino Teixaira Leite Netto
(levantando para pronunciar seu discurso na tribuna),
Eliana Bueno Ribeiro Vianna Santos (filha de Ayrton Pinto Ribeiro),
a professora Dalma Nascimento e o vereador Vitor Júnior.


O acadêmico Wanderlino Teixeira Leite Netto lendo seu discurso de saudação.


A jovem neta de Ayrton Pinto Ribeiro, representando os netos e bisnetos
do agraciado com a Medalha


 Eliana Bueno Ribeiro Vianna Santos (filha de Ayrton Pinto Ribeiro)
em sua alocução de agradecimento 


Membros integrantes da mesa ouvem emocionados o pronunciamento
de Eliana Bueno Ribeiro Vianna Santos


Vista geral da audiência no Plenário Brigido Tinoco


Netos e bisnetos de Ayrton Pinto Ribeiro recebem a Medalha das mãos da viúva do patrono João Baptista Petersen e o diploma do vereador Vitor Júnior


O congraçamento de Wanderlino, Eneida, Eliane e Dalma ao fim da cerimônia


Alguns dos ilustres convidados da família de Ayrton:


Os Professores Roberto Kahlmeyer-Mertens e Maximiano de Carvalho e Silva


Wanderlino Teixeira Leite Netto e sua companheira, a poetisa Lena Jesus Ponte





terça-feira, 2 de agosto de 2011

O espírito de Sherazade em Muna Omran.


Desde a década de 1980 o Oriente Médio parece se insinuar buscando impor-se política e culturalmente. É a partir dessa década que vemos intensificadas as notícias dos extremismos islâmicos e do acirramento dos conflitos ideológico-religiosos, mas, a bem da verdade, é preciso dizer que, foi a partir desse mesmo decênio, que o Ocidente tornou a voltar seus olhos para o Oriente. Após a provocação de Salman Rushdie (é preciso pensar, até que ponto, não teria sido uma saudável provocação) tivemos a redescoberta de autores como Omar Khayaām, Saadi e Rumi. O cinema islâmico – sobretudo o iraniano – passou a ser Cult e mesmo a literatura e as produções televisivas mais populares passaram a se ocupar das temáticas orientais. Parece que entre os 1990 e os 2000, passamos a ter mais atenção para o incontestavelmente rico legado do mundo árabe; passamos a recordar (o que fora esquecido já no final da Idade Média) que o homem civilizado não é exclusivamente ocidental ou, neste caso, unidimensional, como bem denunciava Marcuse.
Na atualidade, inspirado no Alcorão, o mundo islâmico, convulso, mobiliza-se para depor tiranias que, por décadas, só fizeram promover o ódio e a intolerância no seio daquele admirável povo e cultura. Uma época como essa depende de uma canção que, como diz Drummond: “Faça acordar os homens e adormecer as crianças”. Eis aqui a contribuição de Muna Omran, para tal:





A História que Sherazade não contou

Muna Omran

I

Nasci no ano da Renúncia
Minha primeira biblioteca vinha de dois mundos


Diferentes
E falava!

Uma era pernambucana
A outra do Oriente

Minha babá pernanbucana
Não era a Irene de outro pernanbucano
Mas era gorda
Boa
E sempre de bom humor...
Maria contava histórias:
Saci Pererê,
Bicho-Papão,
Mula-sem-cabeça


Minha mãe contava
as histórias de Sherazade e
de seu vizir,
Aladim,
Ali Babá...

De repente, Sherazade atirava o pau no gato com o Saci Pererê

Ouvindo minha biblioteca gorda e boa,
Levava-a participar da biblioteca de uma língua diferente.
Imaginava a bela Iara sair dos mares
Invadir o deserto do Saara
Montada sobre a corcova de um camelo
E entrar na biblioteca mágica


Encontrando-se com príncipes loiros,


Eu envolvida por tantas histórias
De repente fugia da Cuca;
Sultana do meu mundo,


corria pela Floresta da Tijuca,


brincava com Sherazade com uma cauda de peixe
Via Curupira passar enquanto conversava com os gênios de Aladim



II

Já maior,
Entrava na biblioteca de meu pai
Muitos livros
Muitas capas diferentes
Ele me mostrava a enciclopédia
Que trazia
Avicena,
Ibn Khaldun,
Averróis


depois... Cabral,
D.Pedro I,
Machado


As primeiras letras


foram da direita
para a esquerda,
envolvia-me por completo com Aladim
antes de ler Lobato
Fairuz
Lobato,
Omar Khayan,
Andersen e seus contos,
Gibran
Sherazade, novamente
Minha babá Maria, meiga, doce,
                                         geléia de goiaba,
                                                           pão com manteiga,
                                                                                      quindim,
                                                                                                  cajuzinho
Cuidado! O Curupira tudo levou.


III

Já leitora,
Tinha minha biblioteca
Menina-moça, leitora
Livros
quarto lilás,
noites do oriente,
livros escritos,
inscritos no mundo que começava entrar.
Hexágonos formavam-se em minha mente,
Inúmeros livros,
Inúmeras histórias,
Inúmeras as palavras.


Com meu príncipe, montada sobre um cavalo branco,
corríamos pelo deserto do Saara
Seu rosto coberto,
sua mão forte erguia uma espada matando todos os monstros encontrados


Biblioteca mais divina que a de Borges
Consigo decifrar todas as letras.
Frases paralisadas,
Frases dessacralizadas.

Lobato com Narizinho fugiram com todo o sítio.
                             Babá Maria fechou seu livro.


Cadê o Saci? O Bicho-Papão comeu?
O Negrinho do Pastoreiro sumiu,
O Caipora morreu.
Cadê Aladim?
Ali Babá roubou?
Andersen invade meu mundo

 
IV

Colégio, adolescência...
a diferente chega.
O mundo desaba.
Exótica,
            Esquisita,
                         maneiras diferentes.
                                                      Um Patinho Feio?
Mas...
conhece o Saci !?
Fala uma língua estranha,
mas já brincou com a Cuca,
- a Cuca não te pegou?
Olhares,
             risos nervosos,
debochados
A professora, a estranha, como é dura!
Mamãe fechou a história de Princesa e
a ervilha.
Cadê a candura da tia Nastácia?
Cadê o Rouxinol?
Para onde fugiu Pinóquio?
E a Carruagem de Cinderela?


O Coelho gargalha de sua toca.
Não há espelhos.
Há inquisidores.
Queimam-se livros.
Papai desaparece.
Ninguém soube, ninguém viu, ninguém ouviu.
Breu!

 
VII

“Liberdade ainda que tardia”
Ouço Gonzaga, Cláudio clamarem dos calabouços
“Criança não veras país nenhum como este”
Bilac grita de seu livro.
“Que país é esse?”
Affonso pergunta
Verdades ou Mentiras?
Finjo a dor dos poetas
Sempre?


Salvo um livro do fogo,
transfigurado,
sem beleza,
cansado,
saturado,
estirado,
silenciado.
Papai retornou?


VIII

Descubro Drummond,
tenho apenas duas mãos e todo o sentimento do mundo.
Mundo mundo vasto mundo, meu coração não consegue ser mais vasto
Meu mundo existe na margens das folhas




IX


Novos livros
Conheço
As métricas, as rimas, os ritmos
Descubro a biblioteca da poesia.
Silenciosa,
Avassaladora,
predadora,
pensadora,
libertadora
meu rosto se mistura às letras
meu verso expõe meu reverso
Fragmento?
Letras espalhadas
Pelo meu corpo
Palavras
Com
Significados
Significantes
Hipérboles e antíteses
Povoam minha biblioteca.



X


O livro sobre o sultão e seu cavalo branco.
Já li esta história?
Palavras poéticas, corpos escritos,
inscritos,
circunscritos.


XI


Novo livro,
Novo corpo,
Outro ritmo,
Hipérboles,
Metonímias.
Lord Byron,
Álvares de Azevedo,
William Blake,
Victor Hugo,
Emily Brontë…

Um livro sopra do canto da biblioteca.
Dele salta um
Sultão, vassalo e suserano
Dócil, indócil
Corpo definido
Rosto, cadê você?
Tato,
Olfato,
Paladar,
Invisível seu rosto...
Não o vejo
Só as letras o conhecem.


XII


Contemplo a biblioteca da juventude.
O corpo em forma poética
Em linguagem trocada
Palavras tocadas
Letras trocadas
Fonemas dobrados
Na formação do texto
Dos versos
Dos pensamentos
Trancados no diário.
Corpo : exposto no sonho.
Corpo :abrindo-se em desejo.
Um hexágono montado.
Não há peregrinos em minha biblioteca.
Só eu contemplo e a toco.




XIII

O livro do sultão me chama,
novamente.
Meu sultão toma forma,
matéria concreta,
signo perfeito,
rouba-me a vida
Não é sonho.
Viajo pelo seu corpo
E nele descubro o meu corpo
Entrego-me ao seu desejo
Toco seu rosto


Sou uma mulher abraçada ao seu livro-amante.


XIV

Tantos livros,
Tantos poemas,
Tantas histórias.
Sou poeta?
Não sei.
Pego o lápis,
Um poema nasce
Curiosa, olho o labirinto de palavras que se forma diante de mim
Um organismo gráfico se forma
Move-se
E finalmente (re)clama.
Aprendi a lição.
Posso contar histórias?
Posso entrar na Biblioteca?
Um poema não é impossível de não fazer.
Encho a página,
Esqueço a margem,
As palavras em forma e figura,
Nelas e em mim navego
Vejo-as nitidamente,
vejo-me através de um vidro embaçado.
Penso na vida e só vejo abismos.
Um livro vaga pela rua
E vê a condução dos loucos e poetas.
No centro o poeta-louco.
Circunscreve seu mundo
Olho.
Tremo.
Sou poeta?
Louca?
Papéis perdidos,
Recortados,
Papéis cotidianos
Poesia perdida nas gavetas
Reescrevo-me e (re)vejo o mundo mutilado
O texto perdido, tecido.
A palavra à espera de ser capturada
Para encher a página
Desenham-se as primeiras letras
Palavras perdidas

Detidas
Retidas
Afetivas

Enfrentam o branco do papel
Os loucos se afastam
Os poetas traçam os primeiros pontos
Intrínsecos
Cercados de sonho
A poesia aflora na pele como um fruto
Finca-se na memória,
Deflora o tempo
Tão doce, frui no corpo do poeta e na mente dos loucos.



XV

Sou mulher
Abro minha biblioteca
Contemplo-a como minha vida.
Vivo em sociedade, sempre.
Tenho bom senso, nem sempre
Converso amavelmente com as pessoas,
Incluindo as chatas
Rio da piada sem graça.
O Patinho Feio continua com bons modos, eu acho!
Os conflitos
Aladim ou Narizinho?
Este lado vive na sombra
Quer tudo
Conhece as coisas a fundo
Conhece-me de sobra
Eu o desconheço
Viro a página,
Não quero ler meu rosto triste
Fujo deste lado,
Desorganizo sua linguagem
Ele me persegue
Por que a biblioteca não me liberta?
Recolho-me em palavras,
sou texto
Encerro-me e tento vencer o inevitável
Busco a vida,
Triste, canina, felina, dura.
Afago as palavras
Tentando preencher o vazio inscrito.


Vencida ou vencedora?





Qasida selvagem (1)


Qasida Mutwahisha (1970) poema de Nizar Kabani (1923-1998)
em livre tradução de Muna Omran


Ama-me
com toda a fúria dos bárbaros
com todo o calor do deserto
com a fúria da tempestade
não pense como os demais seres civilizados
a civilização perdeu seus instintos
ama-me como um terremoto
como a surpresa da morte inesperada
deixa meus seios arderem em brasa
ataca-me como uma loba faminta e perigosa.


(...)


Não entre!
sua voz cerrou meu caminho
suas palavras trancaram meus passos
você estava sem seus amigos
sua mentira foi denunciada pela voz feminina que chamava a você
foi ela quem me substituiu?
‘Pare!’
esta ordem até agora envenena meu coração
enquanto isso, o vento soprava e trazia com ele a humilhação imposta pela sua voz
não se desculpe, mar em tormenta.


(1) As qasīdas são poemas com uma única rima até o final. Com uma “extensão variável de 20 a 80 versos e, quanto aos temas, priorizou o politematismo, entendido como a combinação de duas seções no poema: uma primeira voltada aos temas do amor, da sensualidade, do vinho e da viagem do poeta até os domínios do seu elogiado.”  (SLEIMAN, Michel. 2007, p. 15 . A arte do Zajal – Estudo da Poética árabe)




Muna Omran mora no Rio de Janeiro. Doutora em literatura comparada pela Univeridade Estadual de Campinas - UNICAMP, com a tese: Vozes Silenciadas – Uma leitura da obra de Salman Rushdie. A tese discute a construção narrativa dos romances Os filhos da meia noite, Os versos satânicos e O último suspiro do mouro, tomando por base as propostas teóricas da literatura contemporânea e sua articulação com os Estudos Culturais. Esses romances rejeitam a hegemonia das forças totalizadoras do pensamento institucionalizado que violam a individualidade humana e das minorias que seguem caminhos contra o conformismo.
Mestra pela Universidade Federal Fluminense em Literatura Brasileira com a dissertação Melancolia nas Letras-Utopia e Melancolia no Marco Zero de Oswald de Andrade. A dissertação tem como objetivo analisar possíveis interferências do discurso político de esquerda nos dois volumes que compõem a obra Marco Zero – A revolução melancólica e Chão –, de Oswald de Andrade, considerando que a construção dos dois volumes aconteceu nas décadas de 30/40, quando o autor ainda estava filiado no PCB. Destaca-se a presença dessas interferências ora na voz do narrador, ora na de alguns personagens que se comportam como porta-vozes das propostas políticas do momento. Assim, detectamos quais são estas vozes e como elas se manifestam na estrutura do romance.
Atualmente, integra o grupos de pesquisa leitura, fruição e ensino, na Universidade Federal Fluminense - UFF e temáticas narrativas e representações árabes, africanas, asiáticas e sul-americanas de comunidades diaspóricas, na Universidade de São Paulo – USP.