terça-feira, 5 de junho de 2012

O que significa ser fluminense? por R. S. Kahlmeyer-Mertens





Ser fluminense é encontrar-se no vão entre quatro pontos, não os marcos cardeais usados nas orientações no espaço ordinário, mas a guanabara, as serras, brejos e restingas quando destes me aproprio. É nessa quadrindade que a vagueza que somos se determina, se perfaz e se afeiçoa. Daí, é necessário dizer que ser fluminense não é voluntária condição; antes, é fruto de uma destinação que faz com que, insensivelmente, nos façamos identidade fluminense ante a diferença abismal, e pertença telúrica antes mesmo de declarações ufanas de vinculação atávica ou de posse de raiz. Assim, nos cultivamos fluminenses no a priori de uma dita “cultura fluminense”, de sorte que toda forma, estilo de vida, visão de mundo, cultura, vínculos e valores já são tardios. Aprendemos o fato de nosso ser com as lições que tomamos dos rios que nos dão o nome de flumen: pendendo das terras altas, eles já são rios desde que margens lhes foram dadas no nascedouro, não importando se formam caudalosas bacias nos planaltos, se, abruptos, quedam de escarpas, ou se, morosos, serpenteiam nos tabuleiros e planícies, todos – Paraíba do Sul, Macaé, Guandu, Piraí, Muriaé, Carangola, Pomba e Paquequer – são fluminenses a caminho da foz.
Testemunhas de cada palmo de nossa província, rios contam sua história nos sedimentos que trazem: memória e potamografia. Descrição do horizonte que somos e temos, de seu aberto, relevo, relatos e legendas... lavando a mataria espessa, o prado e a fazenda, povoados ou urbes, tomam eles o sal de cada solo e a cor que nosso céu empresta. Ser fluminense é, assim, o sincretismo desta fluência, a miscigenação que os primeiros souberam criar: o goitacá que instituiu o sentido de pátria já na origem; bandeirantes lusos e garimpeiros das Minas Gerais na pista faiscante do ouro; o negro, tenaz motor de empreitadas tantas; colonos estrangeiros cujo sangue e modos se imiscuíram aos autóctones, determinando a semblância que temos. Quadratura somos, somos quarenta vezes quatro; somos mais de dezesseis milhões.
Unidos na pluralidade, muitas palavras nos traduzem: Campos dos Goytacazes, Itaguaí, Itaperuna, Niterói, Teresópolis e Vassouras, nomes que ora ou outrora se firmaram por valores próprios, valeriam outros bons de se cantar: Cabo Frio, Duas Barras, São Fidélis, Paraty, Miracema, Cantagalo, Sumidouro, Rio Claro; Saquarema, Itaocara, Porto Real, Barra Mansa, Bom Jardim, São Gonçalo, Búzios, Sapucaia; Cordeiro, Itatiaia, Valença, Resende, Araruama, Macaé, Magé, Varre-Sai... Percebei, fluminense não é um adjetivo, não é algo aderido a estes que somos. Fluminense é substantivo, do mesmo modo que substancias são todos os atributos que nomeiam o mundo aí constituído: a restinga, maral, oleosa, salmourada, sinestésica, fértil; a guanabara, horizontal, urbana, velada, tórrida, célere; o brejo, lagunar, colonial, açucareiro, benfazejo; a serra, vertical, maciça, campesina, ancestral, sorridente, serena... uma pujança (!).
Com tal topologia, entretanto, tal instância essencial ainda não se mostra. Há de ser descoberta na silenciosa individualidade dos que aprendem a cultivar sua escuta... Cada qual, aqui, há de fazê-la por meio de uma experiência singular, e isso não deve ser pretexto para noticiar minha própria pessoa; esta fica aqui biograficamente sub-referenciada no registro que se segue.
*

Da casa situada em Mury, no oitavo distrito de Nova Friburgo, contam-se 846m. de altitude. Geralmente ensimesmado, aquele espaço entrega aos poucos sua intimidade com minha chegada. O quarto de solteiro é também o local de estudo e, apesar de confortável, é misto de cela de monge e dormitório de orfanato, nota sóbria dada pela mobília em pau preto. A janela se abre ao jardim, que seria morto durante a noite, não fossem o ruído de um córrego e os aromas de ervas que entram pelas venezianas. Um faisão assobia ao longe; minhas mãos, sobre os livros de filosofia, azulam com o frio; o corpo, no leito, experimenta a solidão perfeita traduzida na familiaridade do quarto, do jardim, dos ciprestes da cerca viva, da mata que sobe a encosta aí adiante, da rocha imemorial que se avulta em picos e penedos; enfim, do entorno. Pela manhã, após adaptar a vista ao brilho baço do sol daquelas serranias, vejo que o manacá que eu plantara de antanho floresceu pela primeira vez: uma única e pequena flor arroxeada que me permitiu articular – emocionado e grato – a identidade que sou em mundo. Mas seria mundo o melhor indicador do que significa ser fluminense? Ser fluminense é o pertencimento a um mundo ou a aspiração à “terra” que lhe é precondição?
Mundo e terra estão, aqui, deslocados de seu contexto filosófico original. Servem, contudo, como imagens plásticas para pensarmos nosso escopo, tarefa a nós favorecida pelas palavras de Michel Haar, em Le chant de terre:


"A terra possui um fundo secreto que resiste a toda elucidação, que não cede à violência de nenhuma explicação ou exposição. É preciso consentir a sua dimensão não laborada, sob pena de destruí-la. Ela deve se mostrar como esta que se reserva. Assim, a terra aparece bem no aberto, na claridade dos entes, mas como impenetrável. Ela é abertamente latente, manifestamente fechada. (...) Sendo essencialmente este movimento de tomada e retomada de si, ela faz surgir e aparecer visivelmente no centro do mundo este que se põe a cobrir. A terra é a livre aparição deste que reafirma constantemente seu ser. Como o domínio por excelência da livre aparição é o mundo, a terra torna-se ligada a uma condução ambígua e conflituosa com o mundo, seu contrário. (...) A terra não pode renunciar à abertura do mundo se ele deve aparecer ele mesmo como terra." (1)


Oculta, a terra é pano de fundo para o mundo, mundo é o aparecer da terra; é modo de ser que não se sabe pela via intelectual. Indômita, a terra não se submete ao olhar panorâmico das teorias, nem à autoridade dos pretensos sábios que as propalam. Terra libera a aparição do mundo dos entes e dos afazeres que, de fato, temos junto a esses; faz-se por meio de mundo sem com ele se confundir. Reafirma seu ser na tensão entre seu velamento e as amostras que dá no mundo; dá combate às ricas semânticas do mundo ao irromper com sua abissal indigência, sua originária pobreza: A terra nada possui; da terra nada nos podemos apropriar; com a terra recordamos apenas de nossa finitude de homens, do quanto o mundo nos é familiar e de que um deus chamado tempo é promessa para todo o porvir. A “fluminensidade” na qual habitamos é aqui forjada, é aqui conjugada.
Poucos sabem dessas premissas. Há quem diga que só os poetas o sabem, justamente por viverem predispostos à escuta das raízes na obscuridade do solo natal – “O poeta apenas, meu amigo; hoje só ele pode”(2) –. Entretanto, diante da necessidade de expressá-las, alguns deles deram a seu relato a roupagem de um romantismo de escola. Assim, fluminenses como Casimiro de Abreu e Fagundes Varela, ao comporem inspirados pela escuta da terra mater, cantaram a nostalgia romântica da casa paterna, mas o faziam de tal forma que esses cânticos constituem autênticos poemas geográficos.



NOTAS:
1. HAAR, 2000, p.122-123.
2. GOETHE, 1920, p.2.




Divulgação Cultural

(Clique na imagem para ampliar)



14 comentários:

  1. Roberto Kahlmeyeer:

    Quem não se sente impulsionado a seguir a linha de uma escrita tão plena do sabor original e de ressonâncias que, em geral, se fazem maravilhosametne sentir na alma literára universal. Todos o que lemos um texto que se volta para si e para o espírito da arte temos a felicidade de estarmos planando num mundo mais digno do que merecemos com as nossas mesquinahrias terrenas. Seu texto, pródigo de "vozes veladas, veludosas vozes", é, com diria meu pai, um bálsamo para a alma que está além de nós no tempo e no espaço e se vai fundir às vozes que somente a arte da palavra escrita e, às vezes, falada, tem o sortilégio , ou melhor a mágica, a química da fusão de todas as formas, plásicas, etéreas, cênicas, sonoras, rítmicas, arqitetônicas, pintura pura e befazeja aos olhos, aos tons musicais. Fusão, assim,por via semântica da escrita, de partes num todo harmonioso, que deseja tentar captar todas as nuances do que o pensamento humano, romântico ou realista, pouco importa, com que a nossa imaginação, a sua, no caso, deseja exprimir-se e expandir-se às alturas da Beleza e da Universalidade. De resto, a paisagem humana e artítica, usando este termo na sua mais lata significação, esteve sempre a motivar penas dadivosas e criativas na poesia, na prosa, por escritores fluminenses ou não, como são as ressonâncias esplêndidas das descrições de José de Alencar no romance histórico O Guarani.
    Li seu texto em êxtase e lhe sou grato por esta leitura. Você pode afirmar que é do ramo filosófico, mas eu o situo no cerne da prosa maior.
    Cunha e Silva Filho

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  2. Prezado Roberto,
    vivo em Niterói desde 1933,quando tinha cinco anos de idade. Aqui cresci, estudei,casei, tive filhos e netos.Recebi o honroso título de Cidadão Honorário desta querida cidade.Portanto, niteroiense de papel passado.E de alma, sempre.A fluminensidade está neste velho coração.
    Parabéns pela bonita crônica. Abraços do Luiz Calheiros.

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  3. Roberto," belissimamente" filosófico e essencial o seu texto-testemunho do Ser Fluminense. Turbilhonante de conteúdo, de expressão literária e de fundamentos topográficos. Energia telúrica do pertencimento, explodindo na radicalidade das imagens!



    E que ritmo frasal, que desdobramento de metáforas! Cascata de expressões deslizantes, em que a estilística fônica confere um dos grandes tons.



    Fluminense que sou, fiquei à escuta dos fluxos do seu rio. Flumen a refluir nas águas internas do meu também.

    Levaram-me à confluência do Paraíba com o Piraí, que se dá exatamente na minha cidade de origem: Barra do Piraí.



    Parabéns é pouco para a sua vigorosa Poesia em Prosa!!!



    Dalma.

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  4. Oi, Roberto! Belo texto. Uma cantiga de terra, de identidade, de memória. É exatamente assim que eu sinto minha teima de instigar "fluminensidades" nos projetos que toco; é assim que retorno à minha Cantagalo, com frequência, buscando pautar uma outra canção, em outra clave, pois "mais que nunca é preciso cantar"... Obrigada por compartilhar conosco seus enleios e cantares. Um abraço, Anabelle Loivos.

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  5. Célia Regina dos Santos Rosa6 de junho de 2012 às 01:13

    Parabéns pelo texto belíssimo e tão bem conseguido!! Ao descrever tão lindamente essa terra fluminense e o sentimento que permeia todo esse "ser fluminense", nos faz sentir orgulho de por essas paragens habitar.Tua poesia/prosa é uma verdadeira ode a essa terra.
    Mais uma vez parabéns e continue a nos brindar com coisas tão belas e sentidas.

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  6. Kahlmeyer, vc eh sinistro!
    Tenho mto orgulho de ter sido seu aluno.

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  7. Diante da dificuldade de alguns em postar comentários no Blog, segue aqui um tutorial (um roteiro de postagens):

    Tutorial para postagem:

    1) Clique na legenda “Comentários” e se abrirá o quadro em branco para vc escrever o comentário (Caso o quadro em branco já esteja visível, desconsidere esta primeira etapa);
    2) Clique com o botão esquerdo do mouse na setinha preta do comando “Comentar como” ela abrirá opções;
    3) Escola a opção Nome/URL clicando encima;
    4) No quadro “Editar perfil”, escreva seu “Nome:” na primeira lacuna e desconsidere a outra (“URL” é só para quem tem site na internet, isso não influi em nada).
    5) Aperte o botão “Continuar”
    6) Escreva, agora sua mensagem no quadro em branco.
    7) Ao fim, certifique-se que não haja nenhum erro e aperte o botão “ Publicar”.
    8) Logo em seguida aparecerá a mensagem de que seu comentário será publicado logo após passar pelo moderador.
    9) Em alguns casos (não é sempre) o blog pede uma confirmação para ver se não é um robô que está enviando o texto. Neste caso, é só copiar as letras de código que aparece na tela.

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  8. Seja quem for que desejar descrever, definir a fluminensidade, terá de ler, recorrer, estudar, apreciar esse texto do Kahlmeyer. Belo texto. E eu, papa-goiaba, ou seja, fluminense até as raízes dos cabelos, amei o texto e me emocionei com a poesia nele contida. Pode-se definir de várias formas o que é ser fluminense, mas a fonte está aí, há que se beber nela.
    Carlos Rosa Moreira.

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  9. Gilson Rangel Rolim6 de junho de 2012 às 10:50

    Prezado Roberto.

    Meus cumprimentos pelo texto, muito bem elaborado e fundamentado. De minha parte, fluminense por vivência e opção, fico feliz por ver que, finalmente e após quase quarenta anos de reintegração política, a cultura e história fluminenses, em seu todo, vão se tornando realidade. Como curiosidade, listo nomes de municípios fluminenses em que a palavra Rio aparece, direta ou indiretamente: Rio Bonito, Rio Claro, Rio das Flores, Rio das Ostras, Rio de Janeiro, S. José do Vale do Rio Preto; há, ainda, Três Rios e Paraíba do Sul, cujo nome tem a ver com o próprio rio da integração fluminense.

    Abraço, Gilson

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  10. Roberto, que beleza ! Quero mais textos seus no blog! Queremos, não?Eu e todos os leitores, com certeza.
    Bjs
    Belvedere

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  11. Pedro Afonso Vasquez7 de junho de 2012 às 14:32

    Caro Kahlmeyer-Mertens,
    Belo texto. Você está num caminho muito interessante. Meus sinceros parabéns.

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  12. Caro professor Roberto... senti-me em uma aula elevada de literatura e filosofia; fiquei como um aluno, extasiado! Caro Roberto... viajei no texto! Literalmente, poeticamente, filosoficamente, geograficamente! E diria... teologicamente! Belíssimo! Magnífico! Sempre que vou a Friburgo, páginas vividas, contemplo Mury e suas habitações próprias ao descanso, à contemplação, à mística, às leituras e escritas... enfim, conheço bem aquele paraíso terrestre! Vejo com lágrimas os estragos daquele dilúvio! Dos rios que citou, conheço quase todos: Macaé, Paquequer, Pomba, Paraíba do Sul, Muriaé... senti falta do rio São João, mas me vi em cada um. Mais uma vez, minha extensa gratidão! Estou encantado! Um abraço. Mauro Nunes

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  13. Lindo! Apesar de não ser fluminense, me vi nesse cenário.
    Parabéns!

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  14. Caro professor Roberto Kahlmeyer, "descobri" este seu fantástico texto pesquisando na rede EXATAMENTE sobre o que é ser fluminense! O que significa? Quem são? Quem SOMOS? O que é e como é essa identidade histórico-cultural?
    Todos os comentários anteriores foram sensacionais, e me deixaram muito feliz, com a certeza de que não sou o único a pensar e sentir o que aqui li. Aliás, seus leitores disseram TUDO o que pensei e senti, e o fizeram de modo muito melhor do eu faria.
    Não vou, então, repetir todos os elogios muito justos e precisos, mas quero convidar a todos aqui para conhecerem a comunidade que criei no Google+ chamada "Estado do Rio de Janeiro".
    Abri as postagens com um link para este maravilhoso texto, uma linda aula do que "fluminensidade" (espero que não se importe!)

    Um abraço respeitoso de seu mais novo leitor, Roberto Silva.

    Comunidade Estado do Rio de Janeiro, no Google Plus:

    https://plus.google.com/u/0/communities/108572032789553278836

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