sábado, 5 de maio de 2012

Projeto "Livros que marcaram Niterói" ("O homem fluminense", de Vera de Vives)



Convicto do brocardo lobatiano segundo o qual “um país se faz com homens e livros”, tentei elencar, de memória, aqueles títulos que eu acreditava representar bem a cultura literária de Niterói. Consultando várias pessoas ligadas ao meio acadêmico de minha cidade, foi curioso o fato de minha lista coincidir com os títulos apontados por aqueles conhecedores de livros. Diante desta coincidência (ou deveria dizer “feliz serendipidade”), animei-me, sem maiores pretensões, a apresentar quinzenalmente alguns dos livros que teriam, de algum modo, marcado a cena literária niteroiense. Livros que trouxeram contribuições substanciais em alguma área, inovações, resgates, celebrações de datas festivas da cidade e que, até, ficaram conhecidos pelas polêmicas que causaram. Em todos esses casos, o valor literário ou histórico foi o que deu o critério para essas escolhas que – longe de serem completas – serão singelos afagos na cultura de nossa cidade.


Em cada quinzena, o leitor de Literatura-Vivência poderá conhecer, no Projeto “Livros que marcaram Niterói”, um pouco mais das nossas letras.
 
 
O homem fluminense, de Vera de Vives
 
 



Aos conhecedores da literatura especializada sobre o Rio de Janeiro parece ser patente a importância e excelência que a tetralogia de Alberto Ribeiro Lamego possui. Obra reconhecida e, ainda hoje, estudada com significativo proveito, O homem e a Serra, O homem e a Guanabara, O homem e o Brejo e O homem e a Restinga constituem um competente trabalho que envolve a geografia física, a demografia, a etnologia e a geologia de nosso estado (quanto a este último item, impressiona o autor dissertar até sobre a granulação dos compostos rochosos presentes nos penedos de nossas serras!).
A atenção ainda hoje voltada para estas obras foi, sem dúvida, a responsável pela tímida visitação que se faz a outros títulos que enfocam, da mesma forma, aspectos significativos de nosso Rio de Janeiro. Entre estes: O homem fluminense.
Editado em regime de cooperação pela Fundação Estadual de Museus do Estado do Rio de Janeiro e pelo Museu de Artes e Tradições Populares, no ano de 1977, a obra foi idealizado por Elton Medeiros, embora toda a pesquisa de campo e redação tenha ficado a cargo da jornalista e escritora Vera de Vives.[1] Produzido pela já referida Fundação, tendo como seu presidente Leonídio Ribeiro Filho, o trabalho é fruto de uma pesquisa etnológica que pretendia registrar traços da vida rural: moradia/arquitetura, as técnicas da lavoura, a pesca e seus ambientes (rios, banhados e lagoas), os gêneros agrícolas cultivados, os utensílios, a culinária típica; a arte material, renda de bilros, os santeiros e escultores de madeira, os artífices de instrumentos musicais, a cerâmica manual etc; a arte imaterial (nomeada pela autora “arte espiritual fluminense”), o caxambu e o jongo, boi pintadinho e jaguará, folias de reis e do Divino, a Carvalhada, as festas de Paraty e Saquarema etc...
Com metodologia bem fixada e adequadas técnicas de pesquisa de campo, o trabalho que deu origem a O homem fluminense possuía uma única justificativa: a de que era necessário documentar a cultura fluminense diante do risco de sua descaracterização ante o inevitável avanço da cultura de massa. Também um único objetivo: preservar as memórias de nosso estado. E, por fim, uma generosa oferta: “O homem fluminense é uma homenagem a elas (as memórias do estado), pela tenacidade com que souberam preservar suas raízes e tradições”. (p.3)
A elaboração dos sete capítulos que compõem esta obra de mais de cem páginas exigiu da equipe envolvida no projeto longas viagens por 23 municípios fluminenses. Luís Antônio Pimentel (que colaborou como fotógrafo no livro), em depoimento exclusivo ao Blog Literatura-Vivência, narra um pouco dessa aventura: “Eram verdadeiras incursões ao coração do estado. Havia horas em que andávamos léguas debaixo de sol e comendo a poeira naquelas estradas de chão. Era um grande alento quando podíamos nos abandonar nos bancos da kombi que vinha nos buscar. Mas ninguém da equipe reclamava, estávamos todos cansados mas muito satisfeitos com o que fazíamos. Só a Vera parecia não cansar!”. Além de Pimentel, trabalharam na documentação fotográfica Jorge Sirito Vives (marido de Vera de Vives), Zalmir Gonçalves, Gilson Barreto e Roberto Costa de Sá Peixoto. Estes fizeram com que O homem fluminense se tornasse um documento ricamente ilustrado com requintes de detalhes.
Entre as três mencionadas divisões do livro, a que certamente parece melhor documentada é aquela que trata da “Arte espiritual fluminense”. Os folguedos são minuciosamente descritos ali por meio da prosa límpida e objetiva de Vera de Vives. Esta parte ainda traz as letras e as partituras das músicas que embalam àquelas manifestações culturais. Destaquem-se, neste momento, as peças do mineiro-pau de Santo Antônio de Pádua, a folia de reis de Duas Barras e a “Benção da farinha”, oriunda da folia do Divino de Saquarema. Desta última, pedimos licença para reproduzir, aqui, sua singeleza: 

“São José, Santa Maria
− Jesus, Maria
Puxando a sua bestinha
− Jesus, Maria, protegei...
Jesus, Maria.”
(p. 92) 

Embora na época de seu lançamento a obra tenha recebido uma ampla tiragem, todos estes anos sem uma nova reedição faz com que exemplares de O homem fluminense sejam mais frequentemente encontrados em bibliotecas públicas e em estabelecimentos de ensino (proporcionalmente, são poucos os exemplares pertencentes a particulares). Ainda que esta falta seja insuficiente para considerar O homem fluminense um livro raro, estamos convictos de que: por sua louvável iniciativa, sua elaboração acurada e sua caprichosa acolhida, a Obra já nasceu sobre a reputação de “raro livro”.


[1] Vera de Vives foi membro da AcademiaNiteroiense de Letras – ANL e durante década assinou uma coluna chamada “Diário sem data”, no jornal O Fluminense. Entusiasmada defensora da causa fluminensista, escreveu um romance dedicado à lenda cantagalense do Mão de Luva, a obra se chama Descobertas e extravios (Record, 1997).
 

15 comentários:

  1. Este me parece um resgate importante de ser feito.

    Aloísio Leite

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  2. Sem querer desmerecer nenhum dos meus demais colegas niteroienses - manda a verdade que a justiça seja feita - eu não lembro, em todos esses anos, de ter visto alguém ter empreendido tanto em tão pouco tempo pela cultura da cidade de Niteró.

    Tens meu reconhecimento e admiração, jovem Roberto Khalmeyer

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    1. Olha, se é o intelectual mais produtivo que o movimento cultural já viu em pouco tempo, eu não sei.
      Mas sei que este meu ex-professor é um dínamo! Orientava não sei quantas mil monografias por vez, estava sempre publicando livros, dava aulas, cursos e palestras feito um desesperado!
      Deve estar muito bem de vida!...

      Professor, sentimos falta de nossa antiga turma!Tenho visto sempre notícia sua no jornal.

      Parabéns, vc merece!

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  3. Eis aí uma ideia muito interessante!

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  4. É um projeto de grande relevância!
    Em empreendimento verdadeiramente intelectual.

    Minha admiração,
    Landri

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  5. Alcirema Perlingeiro6 de maio de 2012 às 10:19

    Dadicadíssimo!

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  6. Roberto, há mais de dez anos, chamei o querido Pimentel de "arconte da memória fluminense", pois, na antiga Grécia, o "arconte" era o guardião das tradições. Agora, nosso mestre centenário delegou o posto a você, apesar de ser ainda tão jovem.

    Igual a ele, você vai à "arqueologia" das figuras fluminenses, chega às "arcas" da cultura e estabelece o "arco" da aliança entre o passado e o porvir.

    Parabéns!

    Dalma

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  7. Excelente! Excelente! Com depoimento exclusivo do Pimentel e tudo! Excelente!

    Anderson Lima

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  8. Jorge Pachecco Menezes6 de maio de 2012 às 14:40

    É preciosa a contribuição, Kahlmeyer, não há como negar!

    Do seu velho amigo, amigo velho,

    Jorge Pachecco Menezes

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  9. Parabéns por todas essas preciosidades que tem apresentado.
    Bjs
    Belvedere

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  10. Roberto,

    De quinze em quinze dias é muito tempo. Faça semanalmente!

    Niterói agradece!
    Vanessa

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    1. A Vanessa tem razão, queremos pelo menos um por semana!

      É muito interessante a proposta!

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  11. Palavras exemplares que despertam à sabedoria e Compartilham com as nossas raízes são atitudes apreciadas e relutantes tradições culturais. Como especificou a ilustre escritora e professora Dalma Nascimento a responsabilidade dessa tarefa, está além de qualquer coisa que possa ser justificada. Trata-se da guarda das nossas referências.
    Bravo

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  12. Roberto,

    Faça um por semana, quinzenalmente vc nos matará de curiosidade!
    Aposto que vc tem bastante matéria para fazer um por semana.

    Pense na proposta!

    Abraços
    Kelly Passos

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  13. Olá professor Roberto. Aproveito para registrar que um amigo, nascido em Niterói, e hoje em Belém do Pará elogiou o blog por ser de altíssimo nível cultural e afirmou ter transformado o seu olhar sobre a literatura fluminense a partir do contato com o Literatura e Vivência. É isso mesmo o que este blog proporciona, como também a mim, pela valorização da nossa arte literária fluminense e sua abertura e alcance universal.
    Um abraço. Mauro Nunes

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