Conta Luís Antônio Pimentel que –
em parceria com os poetas Geir Campos e Hugo Tavares – elaborava um vocabulário
sobre termos de marinha. O livro, mais uma obra de folclore do que um trabalho linguístico,
já teria até título: O linguajar dos
pescadores na orla da Guanabara. Entre os muitos verbetes estavam lá: “negró”,
“cinzido”, “velado”, “fateixa”... e outros vocábulos tão herméticos quanto poéticos
da fala dos marinheiros e pescadores. Em uma manhã, entretanto, Hugo Tavares, apressado
para ir para o trabalho, esqueceu na barca que faz a travessia Rio-Niterói a única
prova do livro que, fatidicamente, perdeu-se para sempre.
Quantas palavras matizadas de sal
estariam naquele manuscrito... quanta sabedoria maruja não haveria ali... quantas
metáforas náuticas e belos termos para se falar da vista do mar não se
perderam... Resgatar cada palavra de memória? Impossível! Melhor é imaginar
cada uma delas a partir da presente crônica de Carlos Rosa Moreira.
PANCETTI Série Bahia - Musa da paz. Óleo sobre tela, 1950.
No azul
Estou refestelado na poltrona de
domingo com as pernas esticadas e a cara virada para cima, para o céu de um
azul que chega a ser arrogante. É tanto azul que fecho os olhos, mas não
adianta: o azul permanece e diante dos meus olhos fechados se divide entre a
calma do céu e a inconstância do mar.
Você atravessa o azul, rema com vigor seu caiaque pouco à
frente do meu. Vejo seus longos cabelos escuros sobre as costas nuas morenas,
sua rija musculatura delicada e braços e ombros em perfeitos movimentos
ritmados. Eu sigo logo atrás, deslumbrado.
PANCETTI. Saquarema. Óleo sobre tela. 1955.
Foi o nordeste manso que alisou o
mar e permitiu nossa aventura. Se continuarmos neste ritmo, alcançaremos o
Boqueirão no estofo da maré, então será fácil atravessá-lo. A água está tão
clara que vejo passar as lajes, cinco, seis, dez metros lá no fundo. Gostaria
de mostrar a pedra onde vivia a imensa moreia verde que quase me mordeu. Mas
você não para... É bonito vê-la assim, avançando sobre o mar com determinação.
Você, que parece tão frágil, que é tão feminina, dá gosto vê-la, honey baby. Em breve dobraremos a ponta
e ficaremos paralelos à ilha. Quero rever a grande figueira sobre a duna de
areias brancas. Além da ponta as águas serão mais rasas, haverá o fundo de
pequeninas pedras da cor de ouro velho, outrora esconderijo de grandes linguados
que ali se aninhavam. À noite, Jacy
sairá das águas por trás da Ilha dos Porcos e deitará sua luz sobre as praias,
a luz que faz bem à sua alma, a luz que também te pertence. Mas eu quero pensar
coisas do mar, honey baby. Poderia te
contar histórias do mar. Casos de velhos pescadores, histórias que ouvi de
faroleiros em ilhas perdidas, coisas humildes acontecidas comigo. Queria
surpreender você, que desliza em seu mar com a segurança de quem pisa o chão de
sua casa. Lembro-me de que contou daquela praia selvagem, cravada na pedra,
solitária e inóspita, que o mar toma para si em cada maré cheia. Você nadava
nua com sua amiga e ambas sangravam num dia coincidente. E viram barbatanas
ameaçadoras e furtivas entre as ondas, possíveis predadores no rastro das
fêmeas.
PANCETTI. Cabo Frio. Óleo sobre tela. 1947
Penso tudo isso enquanto sigo
você. O mar está calmo e há essa brisa amiga, mas sabemos que os ventos mudam e
mexem com as águas. Tento captar seu cheiro e tudo o que sinto é o perfume do mar, esse
perfume que tanto amamos! Você é tão
simples, você é tão sua praia! Parece querer tão pouco. Eu é que sou assim,
como esses ventos que rondam, desembestam, parecem não acreditar na existência
de enseadas e calmarias que não precisam deles.
PANCETTI. Musa da paz. Óleo sobre tela (37,5 x 55 cm), 1950.
Cerro meus olhos com força.
Ultrapassamos ilha e continente, o mar se abriu. Há o sobe e desce das ondas
grandes e o movimento selvagem do oceano.
Gostaria de saber, honey baby, gostaria de acreditar que
emociono você. Acho que remará até o farol, ou à Gruta Azul, não sei... Vejo
suas costas bonitas, seus cabelos levados pela brisa salgada. E abro os olhos
para não ver você, minha grande, minha
pequena, oh, minha grande obsessão.
Divulgação
Cultural
(Clique na imagem para ampliar)
Pow Roberto!
ResponderExcluirAe eh covardia!
Muuuuuito irado!
Muito especial seu blog. Parabens pelo trabalho tão expressivo.
ResponderExcluirCarlos Rosa + Pancetti + Gal Costa = êxtase!
ResponderExcluirKahlmeyer, meu amigo, que coisa mais linda você fez! Pancetti, meu querido pintor, o "Terra Estrangeira", a poesia de Wally Salomão e Gal, a Gal total. Obrigado por ter deixado meu texto entre essas maravilhas.
ResponderExcluirUm forte abraço.
Carlos Rosa Moreira.
Carlos Rosa, o poeta do mar. Seus textos são límpidos feito as águas da Praia das Flechas dos meus tempos de menino (Nem o nome é mais o mesmo... João Caetano...). Ave, Caymmi! Ave, Carlos!
ResponderExcluirGrande abraço,
Wanderlino
Cheguei a sentir gosto de sal marinho na boca e areia roçando a pele.
ResponderExcluirMuito lindo, Carlos.
Parabéns
Munick Ribeiro
Prezado blogueiro,
ResponderExcluirdesde que conheci este blog em uma página do Facebook, venho acompanhando-o de perto.
É uma grande alegria acordar pela manhã e encontrar disponível textos e imagens de excelência como as de hoje.
Gostei muito do texto do Carlos e gostaria muito de conhecer algo mais do autor.
A pintura do Panceti também foi novidade para mim.
Tudo muito lindo.
Alcenor
Essa é uma bela crônica que eu chamaria de holística. Cuidadoso o trabalho de entremeá-la com lindas pinturas e música afinada. Tudo trazendo equilíbrio e alegria ao nosso dia. Parabéns!
ResponderExcluirRoberto.
ResponderExcluirCumprimento-o pela feliz combinação nesta postagem: belo texto de Carlos Rosa e belas marinhas de Pancetti.
Abç. Gilson
Roberto
ResponderExcluirCarlos Rosa é o Pancetti das letras.
Ambos fazem do mar a elegia do azul.Emocionam.
Abraços do
Luiz Calheiros.
Pô Mano,
ResponderExcluirLinda esta sua mais nova postagem. Está aí em cores e letras todo o bom gosto que eu sempre admirei em você.
Você sabe fazer a coisa!
Parabéns ao escritor Carlos Rosa,
Abraços do irmão
Ricardo
Fuderoso seria uma boa qualificação?
ResponderExcluirEloquente! Apesar da mansidão narrativa. o Rocco(comentário acima), somou a tríade: “Carlos Rosa + Pancetti + gal”, para expressar o seu êxtase diante da beleza. Reporto-me também ao Wanderlino: “Carlos Rosa, o poeta do mar. Seus textos são límpidos como as águas ...” O fundo musical, aliás, sempre muito bem escolhido, de Vapor Barato com sua Honey Baby... imprime em nossa alma o lirismo poético do Carlos, quase explode o coração. E tem mais: as imagens do par romântico do marcante Terra Extrangeira, caramba! Só não digo que assim é demais, porque beleza nunca é demais quando se fala da natureza ambiental que nos cerca e da natureza humana, da simbiose das duas que jamais explicaremos integralmente. “...Ando tão a flor da pele...” Amigo Carlos, como é bom tê-lo perto de nós! Nosso cronista-poeta, criador de imagens que suscitam o universo das emoções humanas. Obrigada por tudo, pelas voltas que o tempo dá em nossa cabeça quando lemos os seus textos. Obrigada pelos tempos de então rememorados e quase revividos.
ResponderExcluirAbraço da Liane.
Quando abri, agora há pouco, o Literatura & Vivência e dei de cara com o Carlos Rosa e Pancetti, pensei: “aí tem!” . E tem.
ResponderExcluirTem elegância, bom gosto e, sobretudo, conteúdo. (característica imanente nos trabalhos do Roberto K. Aliás, Roberto, esta “presente crônica” do Carlos não seria também uma crônica-presente, aos seus leitores?)
Carlos Rosa tem nos ajudado a olhar o mar com suas crônicas-poema, às vezes através dos seus olhos, suavemente e, em outras, provocando no leitor, uma euforia própria de quem está despertando em descoberta inesperada, mesmo naqueles que navegam a vida toda nas mesmas águas. Generoso, o Carlos Rosa.
Abraços aos amigos.
(porque será que me lembrei de “o menino e o mar” de Eduardo Galeano?)
Will Martins
Carlos, bela crônica: pele e brisa, cheiros e miragens, cores e memórias, ritmo e sensualidade, sal e doçura, música e pintura, palavras e simplicidade. Mergulho profundo. Obrigada.
ResponderExcluirLena
Boniteza ! Impossível adjetivar. É pra ver e sentir. Muitas, muitas, muitas vezes. Branca Eloysa
ResponderExcluir*!* ...
ResponderExcluirCarlos Rosa, como é bom "navegar" com suas crônicas, seguir seus devaneios marinhos, sentir, como você, esse cheirinho de marisia que faz um bem imenso para nossos sentidos. O MAR passou a ter um encanto especial desde que passei a lê-lo. Seu livro A MONTANHA, O MAR, A CIDADE me levou a EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, de Marcel Proust que eu leio atualmente totalmente fascinada, como quem faz esse passeio pelo mar das lembranças, dos sonhos e das boas obsessões ... Um grande abraço de uma fã ... Angela Ellias.
ResponderExcluirQue beleza! Carlos Rosa; que beleza! Kalhmeyer.
ResponderExcluirCorreção: "maresia" e não "marisia", no meu texto acima. Desculpem meu lapso. Angela Ellias.
ResponderExcluirQue pena o texto de Pimentel ter sido perdido... Em compensação temos pérolas como estas que o Carlos Rosa e o Pancetti deixam chegar a praia trazidas pelas espumas do Literatura-Vivência.
ResponderExcluirQueremos ler mais o Carlos Rosa neste Blog, OK?
Kahlmeyer,
ResponderExcluirCom Pancetti e Rosa "pintando" as praias fluminenses tudo vai bem.
Obrigado pelo apoio que vem dado à literatura e cultura de Niterói.
Tomara que este povinho de nossa cidade saiba reconhecer e ser grato por sua benemerência.
Sem o blog, voltaríamos à monotonia.
Abraços de sua admiradora,
Vera Gandra
Quem viveu aquele Arraial mítico e distante, ainda não destroçado pelo turismo, terá, nesse conto, uma eternização daqueles momentos. Só o Carlos e Pancetti para captar uma fotografia daqueles dias felizes eternizando-os. O mar da Praia Grande com certeza borrifou essas palavras com seu sal e saudade.
ResponderExcluirAbraços do admirador e amigo
Renato
Meu querido Renato, você que conhece os mares e as profundezas, e conheceu paraísos, logo identificou o lugar. Obrigado pelo gentil comentário.
ResponderExcluirUm abração.
Carlos.
Ninguém fala sobre o mar como você, Carlos! Leio embevecida e mergulho em suas letras sempre querendo mais e mais....Que venha seu livro. Logo.
ResponderExcluirBelvedere
P*TA QUE PAR*U !!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirQUE AUTOR, QUE PINTURAS, QUE ASTRAL!
Coisa boa este texto...que viajem gostosa...belas lembranças...!VALEU Cacazinho!!!
ResponderExcluirTatau de Uruguaiana(com muita saudade...)