terça-feira, 29 de maio de 2012

Literatura maral, pintura de alto mar, música na maresia: Carlos Rosa Moreira


Conta Luís Antônio Pimentel que – em parceria com os poetas Geir Campos e Hugo Tavares – elaborava um vocabulário sobre termos de marinha. O livro, mais uma obra de folclore do que um trabalho linguístico, já teria até título: O linguajar dos pescadores na orla da Guanabara. Entre os muitos verbetes estavam lá: “negró”, “cinzido”, “velado”, “fateixa”... e outros vocábulos tão herméticos quanto poéticos da fala dos marinheiros e pescadores. Em uma manhã, entretanto, Hugo Tavares, apressado para ir para o trabalho, esqueceu na barca que faz a travessia Rio-Niterói a única prova do livro que, fatidicamente, perdeu-se para sempre.
Quantas palavras matizadas de sal estariam naquele manuscrito... quanta sabedoria maruja não haveria ali... quantas metáforas náuticas e belos termos para se falar da vista do mar não se perderam... Resgatar cada palavra de memória? Impossível! Melhor é imaginar cada uma delas a partir da presente crônica de Carlos Rosa Moreira.
  

PANCETTI Série Bahia - Musa da paz. Óleo sobre tela, 1950.


No azul


 


Estou refestelado na poltrona de domingo com as pernas esticadas e a cara virada para cima, para o céu de um azul que chega a ser arrogante. É tanto azul que fecho os olhos, mas não adianta: o azul permanece e diante dos meus olhos fechados se divide entre a calma do céu e a inconstância do mar.
Você atravessa o azul, rema com vigor seu caiaque pouco à frente do meu. Vejo seus longos cabelos escuros sobre as costas nuas morenas, sua rija musculatura delicada e braços e ombros em perfeitos movimentos ritmados. Eu sigo logo atrás, deslumbrado.



PANCETTI. Saquarema. Óleo sobre tela. 1955.

Foi o nordeste manso que alisou o mar e permitiu nossa aventura. Se continuarmos neste ritmo, alcançaremos o Boqueirão no estofo da maré, então será fácil atravessá-lo. A água está tão clara que vejo passar as lajes, cinco, seis, dez metros lá no fundo. Gostaria de mostrar a pedra onde vivia a imensa moreia verde que quase me mordeu. Mas você não para... É bonito vê-la assim, avançando sobre o mar com determinação. Você, que parece tão frágil, que é tão feminina, dá gosto vê-la, honey baby. Em breve dobraremos a ponta e ficaremos paralelos à ilha. Quero rever a grande figueira sobre a duna de areias brancas. Além da ponta as águas serão mais rasas, haverá o fundo de pequeninas pedras da cor de ouro velho, outrora esconderijo de grandes linguados que ali se aninhavam. À noite, Jacy sairá das águas por trás da Ilha dos Porcos e deitará sua luz sobre as praias, a luz que faz bem à sua alma, a luz que também te pertence. Mas eu quero pensar coisas do mar, honey baby. Poderia te contar histórias do mar. Casos de velhos pescadores, histórias que ouvi de faroleiros em ilhas perdidas, coisas humildes acontecidas comigo. Queria surpreender você, que desliza em seu mar com a segurança de quem pisa o chão de sua casa. Lembro-me de que contou daquela praia selvagem, cravada na pedra, solitária e inóspita, que o mar toma para si em cada maré cheia. Você nadava nua com sua amiga e ambas sangravam num dia coincidente. E viram barbatanas ameaçadoras e furtivas entre as ondas, possíveis predadores no rastro das fêmeas.


PANCETTI. Cabo Frio. Óleo sobre tela. 1947

Penso tudo isso enquanto sigo você. O mar está calmo e há essa brisa amiga, mas sabemos que os ventos mudam e mexem com as águas. Tento captar seu cheiro e  tudo o que sinto é o perfume do mar, esse perfume que tanto amamos!  Você é tão simples, você é tão sua praia! Parece querer tão pouco. Eu é que sou assim, como esses ventos que rondam, desembestam, parecem não acreditar na existência de enseadas e calmarias que não precisam deles.


PANCETTI. Musa da paz. Óleo sobre tela (37,5 x 55 cm), 1950.

Cerro meus olhos com força. Ultrapassamos ilha e continente, o mar se abriu. Há o sobe e desce das ondas grandes e o movimento selvagem do oceano.
Gostaria de saber, honey baby, gostaria de acreditar que emociono você. Acho que remará até o farol, ou à Gruta Azul, não sei... Vejo suas costas bonitas, seus cabelos levados pela brisa salgada. E abro os olhos para não ver você, minha grande, minha pequena, oh, minha grande obsessão.




Divulgação Cultural
(Clique na imagem para ampliar) 


27 comentários:

  1. Pow Roberto!
    Ae eh covardia!
    Muuuuuito irado!

    ResponderExcluir
  2. Muito especial seu blog. Parabens pelo trabalho tão expressivo.

    ResponderExcluir
  3. Carlos Rosa + Pancetti + Gal Costa = êxtase!

    ResponderExcluir
  4. Kahlmeyer, meu amigo, que coisa mais linda você fez! Pancetti, meu querido pintor, o "Terra Estrangeira", a poesia de Wally Salomão e Gal, a Gal total. Obrigado por ter deixado meu texto entre essas maravilhas.
    Um forte abraço.
    Carlos Rosa Moreira.

    ResponderExcluir
  5. Carlos Rosa, o poeta do mar. Seus textos são límpidos feito as águas da Praia das Flechas dos meus tempos de menino (Nem o nome é mais o mesmo... João Caetano...). Ave, Caymmi! Ave, Carlos!
    Grande abraço,
    Wanderlino

    ResponderExcluir
  6. Cheguei a sentir gosto de sal marinho na boca e areia roçando a pele.
    Muito lindo, Carlos.

    Parabéns
    Munick Ribeiro

    ResponderExcluir
  7. Prezado blogueiro,
    desde que conheci este blog em uma página do Facebook, venho acompanhando-o de perto.
    É uma grande alegria acordar pela manhã e encontrar disponível textos e imagens de excelência como as de hoje.
    Gostei muito do texto do Carlos e gostaria muito de conhecer algo mais do autor.

    A pintura do Panceti também foi novidade para mim.

    Tudo muito lindo.
    Alcenor

    ResponderExcluir
  8. Essa é uma bela crônica que eu chamaria de holística. Cuidadoso o trabalho de entremeá-la com lindas pinturas e música afinada. Tudo trazendo equilíbrio e alegria ao nosso dia. Parabéns!

    ResponderExcluir
  9. Gilson Rangel Rolim30 de maio de 2012 às 10:38

    Roberto.

    Cumprimento-o pela feliz combinação nesta postagem: belo texto de Carlos Rosa e belas marinhas de Pancetti.

    Abç. Gilson

    ResponderExcluir
  10. Roberto
    Carlos Rosa é o Pancetti das letras.
    Ambos fazem do mar a elegia do azul.Emocionam.
    Abraços do
    Luiz Calheiros.

    ResponderExcluir
  11. Ricardo Saraiva Kahlmeyer Mertens30 de maio de 2012 às 12:43

    Pô Mano,

    Linda esta sua mais nova postagem. Está aí em cores e letras todo o bom gosto que eu sempre admirei em você.
    Você sabe fazer a coisa!

    Parabéns ao escritor Carlos Rosa,
    Abraços do irmão

    Ricardo

    ResponderExcluir
  12. Fuderoso seria uma boa qualificação?

    ResponderExcluir
  13. Eloquente! Apesar da mansidão narrativa. o Rocco(comentário acima), somou a tríade: “Carlos Rosa + Pancetti + gal”, para expressar o seu êxtase diante da beleza. Reporto-me também ao Wanderlino: “Carlos Rosa, o poeta do mar. Seus textos são límpidos como as águas ...” O fundo musical, aliás, sempre muito bem escolhido, de Vapor Barato com sua Honey Baby... imprime em nossa alma o lirismo poético do Carlos, quase explode o coração. E tem mais: as imagens do par romântico do marcante Terra Extrangeira, caramba! Só não digo que assim é demais, porque beleza nunca é demais quando se fala da natureza ambiental que nos cerca e da natureza humana, da simbiose das duas que jamais explicaremos integralmente. “...Ando tão a flor da pele...” Amigo Carlos, como é bom tê-lo perto de nós! Nosso cronista-poeta, criador de imagens que suscitam o universo das emoções humanas. Obrigada por tudo, pelas voltas que o tempo dá em nossa cabeça quando lemos os seus textos. Obrigada pelos tempos de então rememorados e quase revividos.
    Abraço da Liane.

    ResponderExcluir
  14. Quando abri, agora há pouco, o Literatura & Vivência e dei de cara com o Carlos Rosa e Pancetti, pensei: “aí tem!” . E tem.
    Tem elegância, bom gosto e, sobretudo, conteúdo. (característica imanente nos trabalhos do Roberto K. Aliás, Roberto, esta “presente crônica” do Carlos não seria também uma crônica-presente, aos seus leitores?)

    Carlos Rosa tem nos ajudado a olhar o mar com suas crônicas-poema, às vezes através dos seus olhos, suavemente e, em outras, provocando no leitor, uma euforia própria de quem está despertando em descoberta inesperada, mesmo naqueles que navegam a vida toda nas mesmas águas. Generoso, o Carlos Rosa.

    Abraços aos amigos.
    (porque será que me lembrei de “o menino e o mar” de Eduardo Galeano?)

    Will Martins

    ResponderExcluir
  15. Carlos, bela crônica: pele e brisa, cheiros e miragens, cores e memórias, ritmo e sensualidade, sal e doçura, música e pintura, palavras e simplicidade. Mergulho profundo. Obrigada.
    Lena

    ResponderExcluir
  16. Branca Eloysa Pedreira Ferreira30 de maio de 2012 às 15:57

    Boniteza ! Impossível adjetivar. É pra ver e sentir. Muitas, muitas, muitas vezes. Branca Eloysa

    ResponderExcluir
  17. Carlos Rosa, como é bom "navegar" com suas crônicas, seguir seus devaneios marinhos, sentir, como você, esse cheirinho de marisia que faz um bem imenso para nossos sentidos. O MAR passou a ter um encanto especial desde que passei a lê-lo. Seu livro A MONTANHA, O MAR, A CIDADE me levou a EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, de Marcel Proust que eu leio atualmente totalmente fascinada, como quem faz esse passeio pelo mar das lembranças, dos sonhos e das boas obsessões ... Um grande abraço de uma fã ... Angela Ellias.

    ResponderExcluir
  18. Que beleza! Carlos Rosa; que beleza! Kalhmeyer.

    ResponderExcluir
  19. Correção: "maresia" e não "marisia", no meu texto acima. Desculpem meu lapso. Angela Ellias.

    ResponderExcluir
  20. Que pena o texto de Pimentel ter sido perdido... Em compensação temos pérolas como estas que o Carlos Rosa e o Pancetti deixam chegar a praia trazidas pelas espumas do Literatura-Vivência.
    Queremos ler mais o Carlos Rosa neste Blog, OK?

    ResponderExcluir
  21. Kahlmeyer,

    Com Pancetti e Rosa "pintando" as praias fluminenses tudo vai bem.

    Obrigado pelo apoio que vem dado à literatura e cultura de Niterói.

    Tomara que este povinho de nossa cidade saiba reconhecer e ser grato por sua benemerência.

    Sem o blog, voltaríamos à monotonia.

    Abraços de sua admiradora,

    Vera Gandra

    ResponderExcluir
  22. Quem viveu aquele Arraial mítico e distante, ainda não destroçado pelo turismo, terá, nesse conto, uma eternização daqueles momentos. Só o Carlos e Pancetti para captar uma fotografia daqueles dias felizes eternizando-os. O mar da Praia Grande com certeza borrifou essas palavras com seu sal e saudade.

    Abraços do admirador e amigo

    Renato

    ResponderExcluir
  23. Meu querido Renato, você que conhece os mares e as profundezas, e conheceu paraísos, logo identificou o lugar. Obrigado pelo gentil comentário.
    Um abração.
    Carlos.

    ResponderExcluir
  24. Ninguém fala sobre o mar como você, Carlos! Leio embevecida e mergulho em suas letras sempre querendo mais e mais....Que venha seu livro. Logo.
    Belvedere

    ResponderExcluir
  25. P*TA QUE PAR*U !!!!!!!!!!!!!!!!

    QUE AUTOR, QUE PINTURAS, QUE ASTRAL!

    ResponderExcluir
  26. Coisa boa este texto...que viajem gostosa...belas lembranças...!VALEU Cacazinho!!!
    Tatau de Uruguaiana(com muita saudade...)

    ResponderExcluir