segunda-feira, 29 de agosto de 2011

“Misael” – Crônica de paternidade e correspondência poética


Não é segredo o juízo que faço do livro Misael, fruto da mestria de A. Barcellos Sobral. Minha apreciação se encontra registrada em uma postagem anterior de Literatura-Vivência (confira). Por agora, devo ratificar que se trata de um livro de valor singular, algo que demorará a ser superado na cena literária fluminense. Fico feliz em não estar só nesta avaliação, poetas respeitados como Wanderley Francisconi Mendes, José Inaldo Alonso (além de outras personalidade das letras: Alceu Amoroso Lima e Antônio Carlos Villaça) têm o mesmo parecer sobre esta “crônica de uma paternidade”.
Recentemente encontrei na poetisa Neide Barros Rêgo outra admiradora de A. Barcellos Sobral. Neide (que foi responsável pela organização de algumas importantes antologias poéticas de nosso estado, como é o caso da memorável Água escondida – Poesia) é autora de uma carta que não só reforça o coro favorável a Misael, quanto nos fornece subsídios conhecer mais detalhes da recepção desta obra no ano de 1998.
A postagem de hoje, além de trazer algumas partes seletas de Misael (deixando que o leitor possa fazer também sua avaliação sobre a obra), traz a afetiva carta de Neide Barros Rêgo ao mestre A. Barcellos Sobral.





Fragmentos de Misael – Crônica de uma paternidade


                                                                                                                         A. Barcellos Sobral

10.
Aí vem ele. Acendrar, cada vez mais, o coração: que a luz se encharque de luz. Acender os olhos, as mãos. Lavar-me nas águas da tua serenidade, Senhor: inocência não ficará, junto de mim, como flor ao pé do espinheiro.
Não posso tanto perder-me da angelitude. É preciso que, entre dois extremos – ele e eu, haja coincidências brancas.

11.
Por fim ele chegou. Como diamante bacento, mal garimpado na gruna.
Veio batizado de sangue. Lágrimas houve de Inaiá. Lágrimas simples como o orvalho que rega a felicidade das flores.
Bendita seja a vida que o fez belo como o dia. Puro como a trapoeraba dos campos.
Bendita seja Inaiá – portão de ouro por onde ele entrou para habitar o enigma da vida.
As águas jogam-se no abismo para que as cidades se iluminem.

(...)

15.
Ah, o momento em que o ouvimos, pela primeira vez, o choro do filho recém-chegado!
Toque para acordar que põe em marcha, no curso da imaginação, um bando de futuros. Segunda vida reacendendo a nossa velha vida. Como se engenhoso infinito irrompesse de surpresa.

16.
Ele dorme enrolado no cobertor. Sono límpido, de rola, na acácia do jardim. Dorme ao lado de Inaiá, ainda cansada do sofrimento mágico de anteontem. Um contraste está armado sobre o leito generoso: a palidez da face que a tormenta machucou; e o róseo do anjo, incólume, intato como a manhã do campo.
Se eu pudesse dormir um instante com seu sono, quando acordasse explicaria ao homem o rosto de Deus.

(...)

18.
Misael. Assim o chamaremos.
Que seja esse o outro nome da bondade, da beleza e da verdade.
Esse nome é harpa da esperança. Nela ensaiamos o adágio da felicidade. Parece-nos um nome forte para dizer as fortalezas e delicados que lhe ensinaremos.

(...)

21.
Dizem que ele parece comigo. O eco reproduz e remenda a voz esmigalhada. A madrugada copia o amanhecer.
Parece que nos sentimos mais vivos, na vida de nossos filhos, quando algum deles demonstra alguma parecença conosco. No físico, no temperamento ou no caráter. Ver-nos duplicado ou triplicado em algum de nossos filhos como que dilata nosso tempo existencial. Prova nossa força geratriz, sua preponderância sobre as demais que influem nos secretíssimos processos genéricos.
O filho que se parece conosco é como um parceiro, um cúmplice que prolonga nosso sentimento de vida, nossa presença entre as demais presenças humanas.

(...)

26.
O sorriso de Misael encanta como um rasgo de infinito.
O girassol acompanha o movimento furtivo do Sol. Eu sigo os jeitos e alegrias de Misael, que está viçoso como capim, às margens úmidas do ribeiro.
Felicidade inédita, esse captar a delicadeza. A pequenina imensidade. O existir suculento de Misael.

(...)

30.
Os olhos de Misael são dois candeeiros que iluminam a claridade do nosso quarto.
Seus lábios estão a ponto de descobrir a volúpia da palavra. Neles ainda zumbe a abelha da inocência.
Ele aprendeu a levantar e sacudir os braços tênues. Balança-os como o vento balança as hastes do tinhorão que Inaiá plantou atrás da casa.
Quando ele ri, o rosto se acende como céu de verão.

31.
Ao isolar-me para escrever, tenho a impressão de que não devia fazê-lo. De que estou em prejuízo.
Deixando Misael, a fim de escrever estas notas, sinto-me como se deixasse o ouro pelo cobre salpicado de azinhavre.
Valerá a pena trocar, por alguns momentos, a obra da carne pela obra do espírito? Metafísica nenhuma seria capaz de resolver esse doce problema.

(...)

34.
Que quer ele, ao levantar os braços flutuantes e balançá-los, no ar, como dois pêndulos tontos, desencontrados, quando dele aproximo meu rosto? Às vezes, penso que se sente atraído pelos meus cabelos, e coloco-me de modo que ele possa tocá-los. No entanto, quando ele os alcança, recua. Como se eles queimassem seus dedos. Assim faz o pássaro ferido, À aproximação das mãos que tentam recolhê-lo, na moita onde se abrigou.
Outras vezes, penso que ele gosta desses balanceios, a ponto de fruí-lo com os músculos e nervos calouros.
Em nada ele toca com esses gestos quase sonâmbulos. Com estes, certamente, exercita-se o ritmo existencial. A dinâmica que, um dia, ele executará nas suas rondas, na sua temporada de adulto.
Os braços, ainda cegos, de Misael são um colar que perdura o céu em volta de meu pescoço.

35.
Filhos são metástases de tempo que a vida desprende e usa para compor e recompor o rio da sua duração, dentro da eternidade do universo.

(...)

(SOBRAL, A. Barcellos. Misael – Crônicas de uma paternidade.
Niterói: Cromos, 1996.)



Carta de Neide Barros Rêgo a A. Barcellos Sobral (datada de 1998)

                                                                                                                             Neide Barros Rêgo

Prezado Sobral:


Com o meu pedido de desculpas pela demora em pronunciar-me, aqui estou para expressar-lhe a minha gratidão pelo envio de seu livro “Misael – Crônica de uma paternidade” e dizer-lhe o quanto apreciei sua oferta.
Agradeço, sensibilizada, a gentileza de enviar-me sua mais recente publicação, da qual foi portadora uma amiga muito especial – Mila Barbosa.
Foi um presente precioso. Embevecida, li e reli vários tópicos, os quais pretendo ler muitas vezes.
Seu Misael exerce sobre nós o efeito da água fresca, quando estamos sedentos; do alimento saboroso, quando estamos famintos; da música suave, quando necessitamos de paz, bem-estar, repouso em cama aconchegante de quarto silencioso. Misael nos enleva e nos eleva.
Bem-aventurados os mansos porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurado você, Sobral, cuja alma pura tem a mansidão dos santos e dos anjos. Em você há suavidade, delicadeza de sentimentos.
No mundo estressante de hoje, de correrias, preocupações, ansiedades, pressa, medos, violências, torna-se quase impossível acompanhar-se com tranquilidade o crescimento de nossos filhos. E você o fez, até mesmo antes de eles passarem pelo “portão de Inaiá” para ver a luz do dia.
Vocês saborearam o sono tranquilo, o trocar de fraldas, o efeito da música, o fechar dos olhos, o erguer dos braços, o ficar de pé, o interesse pelas novidades, as descobertas, os passeios, as curiosidades, as experiências.
De você e de Inaiá os filhos receberam, diuturnamente, dedicação, paciência, bondade, compreensão. Dotado de sensibilidade, e com a arte de um exímio escritor, um verdadeiro poeta, você consegue passar todas as suas emoções para nós, leitores. A riqueza literária passeia por todo o texto. Passeia e permanece. Seu texto é pura seda. Seda pura.
O livro encantou-me desde a dedicatória a Inaiá e a seus filhos. Encantou-me da primeira à última página. “Se não olharmos para o alto, não veremos as estrelas.” Emocionei-me com tanto Amor e tanta Beleza.

Deus o abençoe.
Neide Barros Rêgo







Divulgação Cultural
(Clique na imagem para ampliar)


5 comentários:

  1. Roberto,

    Me sinto honrada por sua apreciação tão entusiasta da obra de papai, e de Misael em particular. Honrada mais ainda com esta sincera amizade a papai.
    Parabéns pelo excelente blog. Bem construído, elegante e de muito valor literário.

    Abs,
    Christina Sobral

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  2. Parabéns ao Sobral pela mais que merecida homenagem.

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  3. Roberto, em seu blog as pessoas perecem tão inteligentes...

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  4. Alcirema Perlingeiro30 de agosto de 2011 às 17:21

    Elegância, teu nome é Literatura-Vivência!

    Abraços,
    Alcirema Perlingeiro

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  5. Amigo Kahlmeyer:

    Mais uma vez agradeço-lhe a postagem de minha carta no seu excelente blog.

    Um abraço
    Neide

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