segunda-feira, 30 de julho de 2012

Beatriz Chacon, Babette e a bossa na “cozinha” poética



Beatriz Escorcio Chacon, autora de Mesa Posta (Cromos, 1991)


A poesia é comunhão, e toda comunhão depende da companhia do outro com quem se comunga (não é à toa que companhia viria do latim com + panem, significando “dividir o pão com alguém”). Assim, toda poesia tem algo ceia e libação; é por isso que muitos poetas abrem a casa, põem a mesa e dão banquete. Entretanto, para quem gosta da poesia íntima e espontânea (daquela poesia que, como bossa nova, se canta em voz baixinha), o recato da cozinha é melhor do que o esplendor e etiqueta das salas. É na cozinha que o verso fica a frigir enquanto se corta tempero, que a palavra ganha sentido ao cheiro do simpático refogado, e que o poeta se faz duplamente sacerdote como a cozinheira do filme A Festa de Babette. Assim é a poesia de Beatriz Chacon, com ela, a mesa é posta, e lugar de poeta – felizmente – é na cozinha.



Mesa posta

Venha minha vó
o nosso ensopado traz
o aipim feitinho agora
tudo o que se plantou
não esqueça a travessa
a fumaça e a
terrina pintada em flor

chegue com seu avental
engomado em laçarote
cadê você? com o cuidado
do branco pano bordado
– Domingo! –
entre rendas
pontos de cruz
                      (p.37)




Poema na cozinha


                           Para Carlos Drummond de Andrade

Refogo meu triste arroz
Pressa cebola e cansaço
E o coração afogado
Tanta fila cidade e batente
Um dia todo não cabe
No ônibus nove nove nove lotado
E a notícia aqui dentro gravada
– o poeta se foi assim apressado.

Vou correndo sem querer olhar
Não me desculpo
Um corpo quieto em close na tevê
(o poeta ali sem escrever nada)
E boba chorei com o José
E com toda dona de casa
(mãos flores mais um close/flores Dolores)
Poeta nem combina com aquela máquina.
                                                    (p.149)









Prato feito

Poesia nas mãos
quiabo no fogo
carente o almoço 

há gosto em se dar
a palavra metade
o grude imitando a carne

sentir meio insosso
e a língua se prova
de angústia de arroz 

meio quilo que falta
e o verso na folha
de dor ensopada

sabor pela boca
coração na barriga
prendendo um marido:

prato feito servido
eis a fatia do dia!
e a requentada poesia.
                          (p.19)







A canção como uma flor 

Ângelo Longo 

Este livro – Mesa Posta é sugestão de ágape de primitivos cristãos em comunhão fraterna – sinaliza um artífice e aponta um talento: Beatriz Escorcio Chacon em suas páginas magistrais utiliza pincéis de aleluias e hosanas e trabalha cores de coisas simples para realizar uma tarefa de rara competência poética, na revelação misteriosa de denúncias de querer e denúncias de desamor. Tudo em Mesa Posta é biblicamente consagrado: desde a santificação de cantos irmãos a estrofes críticas de apostolados infiéis.
Beatriz Escorcio Chacon iguala-se a outras importantes vozes de nossa poética, concebendo uma dicção universal e transformadora, plena de uma linguagem de humanidade e paz, coro de ungir canções em catálogo de profecias. Beatriz liga-se, religa-se cristicamente ao gorjeio de outros pássaros, na tessitura de novas madrugadas. Mesa Posta não é banquete de iguarias vulgares.
Mesa Posta, desta notável e grande poeta Beatriz Escorcio Chacon, é a presença maior de uma artista autêntica, produzindo poemas de absoluta transparência estética e de extraordinária transcendência lírica. É livro de estreia, não definitivo, mas definidor: há uma estranha voz nas vozes multiformes deste livro encantador. Ela identifica o labirinto, refaz o enigma e acorda itinerários na pauta de sons interrompidos.
Elegendo a praça pública para púlpito de uma mensagem de poesia, Beatriz Escorcio Chacon leva seu ofício a anfiteatros de múltiplas paisagens e auditórios de variadíssimos quilates: o importante – em poesia, tudo é importante – é conduzir a canção como uma flor na correnteza, sem distinguir a distância da foz ou da agonia das margens.



10 comentários:

  1. Beatriz Chacon, mulher maravilhosa, poeta e intérprete das melhores. Costumo dizer que Beá é minha musa! Quem não fica em estado de graça assistindo suas interpretações? Céus!!!!!!!!!!
    Ave Beá!
    Beijos
    Belvedere

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    1. Não entendo o silêncio que anda rolando aqui no blog.Estranho. Roberto trabalha, divulga, e o que vejo é os comentáriios cada vez menores. Que ele não se sinta desestimulado, pois muitos sabem olhar esse trabalho da forma que ele merece. Que vc nunca desista, Roberto!
      Abraços

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  2. Maravilha de postagem. Tudo bonito e gostoso, tudo de bom gosto. A poesia de Beatriz Chacon é bela, nuançada, imagética. Você colocou essas imagens do sensacional "Il pranzo de Babette", ou festa, como queiram. E ainda há a foto da Beatriz, lindamente "soixante" ou "soixante-dix".
    Parabéns, Roberto, seus alunos devem estar dizendo: iraaaaaaaado, prooof.
    Abração.
    Carlos Rosa.

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  3. Beatriz,
    Faltava você, nossa Adélia Prado, no Literatura & Vivência. Agora, a mesa está posta. Nesta tarde fria e cinzenta, seus versos me alimentaram. Grato, amiga.
    Grande abraço,
    Wanderlino

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  4. Renato Augusto Farias de Carvalho31 de julho de 2012 às 17:25

    Beatriz Chacon traduz, na sua poética,a fragilidade maravilhosa da alma e do pensamento feminino.
    Ademais, como diria Mário de Sá Carneiro " é uma sucessão de Beleza...seu olhar coleia em frenesis
    de mágicas " . A simplicidade de Beatriz Chacon permite o mais puro enlevo no seu sacerdócio de
    poeta. Beatriz se permite parir a ingênua e comprometida palavra que, aliás, só os poetas em
    mutações contínuas podem sorver em taças absolutamente cristalinas e transparentes aos olhos e
    aos corações. A mesa de Beatriz é um simbolismo tênue, uma porcelana convidando aqueles que
    saberiam participar... Àlias, nem todos. Beatriz não se mostra a toda hora: não é preciso Beatriz
    é criação, patrimônio, um encanto desmedido, um astral que fala de um fardo e o transforma em
    relíquia, como maças que transmitem desejo e perfume. Muito obrigado Roberto, por colocar no
    video essa amostra de fertilidade e rara expressão da poesia contenporânea. Eu aprendo beleza
    nos riscados de Beatriz Chacon. Um abraço Renato

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  5. PREZADO AMIGO,

    É SEMPRE GOSTOSO RECEBER TEXTOS DE QUALIDADE COMO ESSE POR VCENVIADO. É BOM LEMBRAR QUE A BEATRIZ CHACOM É UM DAS MAIS INSPIRADAS POETA QUECONHEÇO.

    OBRIGADO, VALEU A IDÉIA

    JOSÉ DE SOUZA

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  6. Boa tarde, caro Roberto Kahlmeyer.

    Literatura poética com inteligência...

    "Amor, prestígio... Tudo é efêmero. Só há uma coisa eterna.
    É a inteligência! Amor, beleza, fortuna, nada resiste à força
    da inteligência."
    (Joracy Camargo).

    Saudações poéticas,
    Alberto Slomp.

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  7. Branca Eloysa Pedreira Ferreira31 de julho de 2012 às 17:27

    Para amar beatriz tem que ler Hino ao Crítico de Maiakóvski. "Escritores, há muitos. Juntem um milhar./ E ergamos em Nice um asilo para os críticos/

    Vocês pensam que é mole viver a enxaguar/A nossa roupa branca nos artigos?

    Beatriz é hors concours.
    Branca

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  8. Roberto, que beleza de postagem, cheia de bom gosto e gosto bom. A poesia da Beatriz é imagética, nuançada, com gli ingredienti que fazem a gente descobrir perfume na curva. Recordar esse filme, que delícia... E a foto, linda, a poetisa tão "soixante" ou "soixante-dix", um pouco à la Schnneider, mas bem mais bonita. Parabéns, meu amigo, um aluno teu diria: iraaaaado prooof!
    Carlos Rosa Moreira

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  9. Olá professor Roberto...poemas saborosos ao paladar da alma. Um abraço. Mauro Nunes

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