Convicto do brocardo lobatiano segundo o qual “um país se faz com homens e livros”, tentei elencar, de memória, aqueles títulos que eu acreditava representar bem a cultura literária de Niterói. Consultando várias pessoas ligadas ao meio acadêmico de minha cidade, foi curioso o fato de minha lista coincidir com os títulos apontados por aqueles conhecedores de livros. Diante desta coincidência (ou deveria dizer “feliz serendipidade”), animei-me, sem maiores pretensões, a apresentar quinzenalmente alguns dos livros que teriam, de algum modo, marcado a cena literária niteroiense. Livros que trouxeram contribuições substanciais em alguma área, inovações, resgates, celebrações de datas festivas da cidade e que, até, ficaram conhecidos pelas polêmicas que causaram. Em todos esses casos, o valor literário ou histórico foi o que deu o critério para essas escolhas que – longe de serem completas – serão singelos afagos na cultura de nossa cidade.
A contar de hoje, assim, em cada quinzena, o leitor de Literatura-Vivência poderá conhecer, no Projeto “Livros que marcaram Niterói”, um pouco mais das nossas letras.
Presença da cultura fluminense, de Horácio Pacheco
Presença da Cultura Fluminense em primeira e única edição.
“Admirardes a riquíssima paisagem cultural fluminense”. Sem saber que cravava um marco literário na cultura do estado do Rio de Janeiro, é com este convite que Horácio Pacheco finaliza o seu Presença da cultura fluminense. No discurso festivo, proferido em solenidade da Academia Fluminense de Letras – AFL, no dia 13 de março de 1975, o autor consagra à nossa terra, em páginas abreviadas, um de seus mais proeminentes retratos. A relevância deste breve documento só pode ser apreendida depois de situada no tempo em que foi concebida.
Editada a Lei Complementar nº 20, de 1974, e assinada pelo então Presidente da República Ernesto Geisel, fundiam-se a Guanabara e o Rio de Janeiro. Separados desde 1834, na data de 15 de março de 1975 se restauraria a unidade preexistente. Ainda que conservados os símbolos e legendas do antigo estado do Rio de Janeiro, e em meio ao inegável entusiasmo que a novidade provocava, alguns “antenas” esperavam com apreensão o produto dessa síntese. Ao fim da década de 1960, quando a fusão era apenas uma hipótese aventada, alguns intelectuais já se mostravam pressurosos quanto ao impacto de uma tal fusão sobre a identidade cultural da Velha Província. Não é por acaso que nesses anos tenham-se proliferado publicações que pretendiam “um registro de nosso patrimônio cultural” no qual “afigura-se oportuno mostrar, além das belezas panorâmicas, a exuberância dos nossos poetas e prosadores, e a alma fluminense.” Esta missão, tal como formulada por Jacy Pacheco em sua antologia literária Paisagem fluminense (1969), já havia sido intentada por Rubens Falcão um ano antes, em sua Antologia de Poetas Fluminenses (1968), além de perseguida pelo olhar antropológico de Vera de Vives, mesmo posteriormente à dita fusão, em O homem fluminense (1977). Contudo, é em Presença da Cultura Fluminense (1975), que vemos mais bem noticiados os traços identitários de nosso estado.
Ao lado das já referidas obras e de outras que versam sobre o Rio de Janeiro (neste último caso a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, do IBGE; e a alentada tetralogia de Alberto Ribeiro Lamego, O homem e a Guanabara, a Serra, o Brejo e a Restinga), o opúsculo de Horácio Pacheco difere não apenas por sua extensão mas, também, por sua natureza. Interessado em descrever traços sócio-político-culturais de um Rio de Janeiro originário, nos vemos diante de um discurso acadêmico. Peça que testemunha a viva tradição oratória que, àquela época, ainda exibia seu vigor, criatividade e erudição por meio das prédicas de mestre Horácio e das assinadas por nomes como Alberto Francisco Torres, Paulo de Almeida Campos, Alaôr Eduardo Scisínio, entre outros cavalheiros de uma nobre escola de cortesia e inteligência.
Na Ética a Nicômaco, Aristóteles orienta sobre o lidar com homens instruídos de diferentes ofícios. Segundo ele, seria insensato exigir, por exemplo, de um tribuno, demonstrações e conclusões rigorosas; do mesmo modo, aceitar raciocínios apenas prováveis de um matemático. No entanto, aquele velho heleno se admiraria ao verificar o grau de fidedignidade obtido por Horácio Pacheco em suas discrições do homo fluminensis, de suas imagens e visões de mundo. Tal fato se explica, por um lado, por nosso autor (um Bacharel em Direito por formação) ser, antes de tudo, um professor dotado de metódico interesse investigativo e oportuna preocupação didática; por outro, o fato de o autor ter nascido em Ribeirão Preto - SP, tendo escolhido em 1935 o RJ para nele se radicar, isso faz com que a condição fluminense de Horácio Pacheco não seja um lance do acaso, mas de um ato de vontade, um engajamento referendado por jus cordis. Entendemos que, não sendo nascido no Rio de Janeiro, o autor desfrutou de um distanciamento ótimo para fazer suas análises, ao mesmo tempo em que valorizava os apreciáveis atributos desse torrão.
Está enganado o leitor que reputaria Presença da cultura fluminense como resultado de intuições esparsas mescladas a protestos afetivos metidos em traje retórico, a receita de “misto de ensaio e epitalâmio, com borrifos de história, sociologia e antropologia cultural” dada pelo próprio Horácio e reforçada por Lyad de Almeida ainda é imprecisa, a ponto de não nos deixar entrever as matrizes disciplinares apropriadas de Alberto Lamego, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda (ousaria ainda assinalar, ali, traços apenas esboçados da presença de Arthur Ramos e Wilson Martins).
Depois de evidenciar, amparado pela ciência desses scholars, aspectos do comportamento dos fluminenses (esses generalizados sob o título de “técnica de bondade”), Horácio Pacheco indica também seus ofícios, culinária e folguedos. O olhar que o autor relanceia sobre a paisagem cultural do Rio de Janeiro ainda segue o rastro de cintilâncias deixado pelos melhores filhos da terra em diferentes épocas, locais (municípios) e áreas do saber. Horácio Pacheco elenca, por fim, de modo tão completo quanto o possível, o que é autenticamente fluminense nas artes, nas letras e nos fazeres de competência técnica. São oportunamente lembrados por nosso autor os nomes dos literatos poetas Luiz Pistarini, Lili Leitão, B. Lopes e os prosadores Silva Jardim, Agripino Grieco e José Cândido de Carvalho (esses dois últimos não só contemporâneos como também companheiros); nas ciências humanas Euclydes da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Viana são ressaltados; especificamente na educação, Benjamin Constant, Felisberto de Carvalho, Guilherme Briggs e Bittencourt Silva são lembranças felizes, entre outros tantos ainda constantes na significativa tradição política, jurídica e médica do referido estado.
Caminhando para a peroração de seu discurso, Horácio Pacheco ainda registra um agradecimento cordial a instituições culturais que trabalhariam pela difusão cultural do estado do Rio de Janeiro. Nestes votos de consideração, se reforça a fé que o autor nunca deixou de depositar no movimento das academias de letras do estado, convicção esta constatada tanto nos diversos laços de pertencimento acadêmico que o autor conservava (não apenas como membro, mas como dirigente e, em alguns casos, fundador), quanto nas palavras judiciosas sobre essas Casas de cultura: “atalaias, todas elas, de nossa sobrevivência cultural”.
Publicado em agosto de 1975 pelo Instituto Niteroiense de Desenvolvimento Cultural, sob os auspícios de seu presidente Lyad de Almeida, a tiragem de mil exemplares feita nas oficinas da Gráfica Editora La Cava Santos definitivamente não foi suficiente para garantir o legado de Horácio Pacheco até a presente data.
Já não estaria na hora de uma segunda edição deste belo texto?
Excelente iniciativa, Kahlmeyer.
ResponderExcluirKahlmeyer, excelente e produtivo trabalho.
ResponderExcluirParabéns.
Da sua fã, Márcia Pereira.
Com certeza já é hora de reeditar este belo livro!
ResponderExcluirBenemérito de nossa cultura será quem fizer isso!
Meu jovem amigo Kahlmeyer, Niterói deveria aclamá-lo "O intelectual defensor perpétuo da cultura fluminense". Se morasse em sua cidade já teria encabeçado a campanha!
ResponderExcluirDo velho amigo; amigo velho,
Jorge
Concordo!
ExcluirBelvedere
Roberto:
ResponderExcluirReceba o meu abraço com muita admiração por todo o teu
trabalho - sempre notável e belíssimo.
Cristiane de Gusmão
Caro Kahlmeyer, se este seu projeto souber ser feito [como já deu provas de êxito nesta primeira edição] você não apenas resgatará livros que marcaram Niterói, mas, você mesmo, marcará a história literária de nossa cidade.
ResponderExcluirNa torcida!
Rocco
Caramba Kahlmeyer!
ResponderExcluirVocê nos reserva uma boa surpresa atrás de outra!
Intelectual-defensor perpétuo da cultura fluminense é pouco...
Meu respeito antes mesmo de minha admiração!
Roberto,
ResponderExcluirfalar em Horácio Pacheco é falar em um dos homens mais iluminados da cultura brasileira. Um sábio do qual tive a honra de ser aluna.
A emoção se apossou de mim, pois era ele o Presidente da Academia Niteroiense de Letras quando tomei posse na cadeira de Luis Pistarini, recebida por Alaôr Eduardo Scisínio. Você está sendo de rara felicidade em trazer nomes desse calibre para nossas leituras. E, livro prefaciado por Lyad de Almeida !
Só mesmo levantando e aplaudindo!
Louvável iniciativa. Reconheçamos.
ResponderExcluirRoberto,
ResponderExcluirParabéns pela iniciativa e por iniciar a seleta com Horácio Pacheco,cuja ausência nos deixou uma lacuna que jamais será preenchida no ambiente cultural de nossa cidade.
Wanderlino
Parabéns, Roberto, pelo belo projeto.
ResponderExcluirPor sua primeira postagem - um livro do Professor Horácio Pacheco - já se vê que você vai nos oferecer, com toda certeza, a todos nós frequentadores do seu blog, um trabalho de primeiríssimo nível.
Abraços do Sandro Rebel
Digno de respeito.
ResponderExcluirOlá professor Roberto...
ResponderExcluirneste projeto, a viagem pela história literária fluminense ressaltada e exaltada pelos escritores niteroienses. Belo projeto. Um verdadeira aula histórico-literária.
Um abraço.
Mauro Nunes