Foto: Marcos Borges
Arlete, Arlete...
Não considero apenas a demolidora frase de Arlete, meu retorno intempestivo, o óleo no asfalto, a árvore à beira da estrada. Há um sem-número de outros cacos formando este mosaico. Afinal, nada acontece por acaso nem deve ser olhado isoladamente. A árvore, por exemplo. Quando a plantaram, semente ainda, já estava destinada a me proporcionar este momento paradoxal, misto de agonia e paz. Quantas vezes passei por ela, em idas e vindas, sem jamais imaginar tal desfecho. Impávida no descampado, copa farta de galhos e folhas, tronco robusto, solidamente fincada ao solo por uma teia de raízes, esperou-me pacientemente. Se Arlete não me tivesse dito o que disse, a esta hora eu estaria ao seu lado. Se as palavras inexistissem, tudo teria sido diferente entre mim e Arlete. Mas há o verbo, maldito seja. Mais um pouco, a árvore ficaria para trás e um gramado razoavelmente regular acolheria o automóvel quando, ziguezagueante, ele deixou a estrada. Minha decisão de abandonar a casa pela madrugada, sob o impacto do comentário ferino de Arlete, sem dúvida contribuiu para o acontecido. Não fosse o lusco-fusco do amanhecer, com certeza eu teria percebido a mancha amarelada no asfalto, óleo recém-trocado, conforme pude ouvir de alguém neste atropelo de vozes aflitas: “Meu Deus, que horror!”, “Afaste as crianças, leve daqui as crianças”. “O celular... o celular...”Ai, meu Deus!” “Alguém sabe o número? ” Mais uns centímetros, temo, a lâmina espetada em meu peito tornar-se-á mortífera. Essa gente há de estranhar meu sorriso. Acho graça da mesóclise. “O momento não se presta a firulas gramaticais”, Arlete diria se aqui estivesse e lhe fosse possível intrometer-se em meu pensamento. Arlete, Arlete... Da cintura para baixo, sinto meu corpo amortecido. Agora sim, querida Arlete, com certeza já não sou o mesmo. Rompendo o último fio a nos unir, ela dissera isso exatamente, logo após eu havê-la feito gozar como nunca. De início pareceu-me zombaria, mas aqui, preso às ferragens, lembro-me de que o olhar de Arlete se mostrava opaco. Naquele instante, desfizemos nosso pacto de convivência. Sinto cheiro de sangue, de resina e do perfume favorito de Arlete. “Ligou para os bombeiros?” “Deus do céu!” “Pra Polícia Rodoviária, ligou?” “Já não lhe disse para afastar as crianças?” Estranhamente, nunca estive tão lúcido. Meu relacionamento com Arlete, muitas vezes nebuloso, se aclarou por inteiro. Não há dúvida, foram elas, as palavras, as responsáveis pelos abismos, pelos tantos desencontros. Desde o primeiro instante, Arlete delas se valeu para fustigar-me. Qual exímio espadachim, ela sempre soube o momento certo de investir. E foram muitos lanhos, muitas cicatrizes nesses dez anos de estocadas. A lâmina em meu peito materializa o golpe derradeiro. Arlete, Arlete... Nossos momentos felizes foram silenciosos. Instintivamente, estabelecemos um pacto de convivência repleto de olhares. Os olhos de Arlete, ao contrário de seus lábios, nutriam-me o ego. “Você já não é o mesmo”. Quando me lançou esse dardo, ainda extenuada pelo gozo, busquei em seus olhos o desmentido, mas vi uma nuvem neles. Os patrulheiros chegaram primeiro. Ouço o freio de suas viaturas, as batidas das portas, os passos ligeiros. Conheci Arlete berrando palavras de ordem numa passeata. Saídas de sua boca, pareciam punhais, setas certeiras, inteiramente apropriadas à ocasião. Com o tempo, descobri que as armas verbais de Arlete independiam de manifestações cívicas. Arlete, Arlete... Relembro sua sentença, seu olhar opaco, minha súbita decisão de abandonar a casa de campo madrugada ainda. As luzes difusas do amanhecer são enganosas, camuflam coisas, mostram o inexistente. Havia óleo na pista, vi um remendo no asfalto. Num instante, tudo se deu e aqui estou, entre as ferragens, uma lâmina-frase espetada no peito. Agora os bombeiros: “Isolem a área, tragam a motosserra, tomem cuidado, há uma lâmina no peito da vítima”. Veloz, meu pensamento viaja. Vai até quando conheci Arlete, mas não passa daí. Se tento ir além, ele retorna ao momento em que deixei a casa de campo. Quando quis saber as razões de ela esgrimir com palavras, Arlete pareceu meditar, mas a resposta veio vaga: “Talvez seja atávico...” Nesses anos todos, Arlete nunca me afagou com palavras, só seus olhos me fizeram carinho. Quando deles mais precisei, eles não brilharam. Passo a crer na falsidade deles. Olhos enganosos, plenos de desfaçatez. Sempre exerceram o dom de iludir. Acreditei neles, neles depositei todas as fichas, meu cacife de esperanças. Cúmplices de Arlete, bancaram o jogo e me deixaram de mãos vazias. Ai, essa pontada no peito e a sensação de haver um filete a escorrer dentro de mim. O barulho da motosserra rasgando as chapas metálicas, vozes distantes, imagens difusas. Por fim, uma névoa e um rosto de mulher. Cale-se, Arlete, e afaste de mim esse olhar.
(NETTO, Wanderlino Teixeira Leite. Arlete, Arlete. In: Beijo de língua. Rio de Janeiro: Editoração, 2007)
Divulgação Cultural
(Clique na imagem para ampliar)
Chocante, inusitado e inteligente: Wanderlino Teixeira Leite Netto...
ResponderExcluirR.S. Kahlmeyer-Mertens, obrigado por nos apresentar a esta prosa exemplar!
Leir de Orfeu
Um escritor perfeito. Na minha opinião é um dos melhores do Brasil.
ResponderExcluirGrata pelo presente, Roberto! Abs
Belvedere
Sim! Já tinha ouvido falar nele, Wanderlino!
ResponderExcluirMuito bom! Parabéns pelo conto!
O blog só traz os "ases"!
Uma das coisas mais legais que o Blog já postou até agora!
ResponderExcluirAlda Velles
Me pareceu meio mórbido "discutir a relação" em meio aos escombros de um acidente...
ResponderExcluirNão achei mórbido, achei que o conto retrata a estranhice de se ser humano (a anormalidade de se ser "Humano, demasiado humano").
ResponderExcluirTem algo se surreal e psicologístico.
Muito bom!
Passei por um desastre parecido. Não consegui terminar de ler o conto... É dolorido. Nada contra o autor, mas o Blog poderia adotar tematicas mais "light"!
ResponderExcluirConcordo com a Alda.
ResponderExcluirSylvianne
Roberto.
ResponderExcluirCom prazer, reli o conto do Wanderlino, vencedor do II Concurso de Contos da Petros (2001).
È relato denso, muito bem desenvolvido, como de hábito nos textos dele.
Abç. Gilson
Eu gostei do vídeo.
ResponderExcluirRoberto,Grato pela gentileza da postagem. Abç.
ResponderExcluirWanderlino
O fazer literário do Wanderlino... Seja prosa, seja poesia, é sempre denso, vai da beleza ao inusitado e, não raro passa pela perfeição. É sempre bom, é sempre muito e é impossivel ficar indiferente.
ResponderExcluirCarlos Rosa Moreira
excelente revista literária.
ResponderExcluirparabéns ao wanderlino.
maura morett
O Blog "Literatura-Vivência" tem a satisfação de comunicar que a postagem de "Arlete, Arlete...", de Wanderlino Teixeira Leite Netto, acaba de completar 250 acessos.
ResponderExcluirCom pouco menos de cinco horas, esta foi a marca de acessos mais rapidamente atingida na história do Literatura-Vivência.
Parabéns ao autor
Digno de um prêmio literário.
ResponderExcluirExcelente sacação!
Estive no site do autor, gostei do que vi.
Parabéns pelo alto nível do Blog.
Armando Costa Neto
A vida fica mais fácil de levar depois que nos abastecemos de beleza e ânimo em seu blog, professor Roberto.
ResponderExcluirMonique
CARO KAHLMEYER
ResponderExcluirGOSTEI MUITO DO MATERIAL ENVIADO NESTA MENSAGEM. PARABENS A
VOCÊ PELO EXCELENTE TRABALHO DE DIVULGAÇAO. TODOS GANHAM COM ISSO. GOSTARIA DE PARTICIPAR, POIS TENHO INÉDITOS NA GAVETA. PEÇO-LHE INFORMAR-ME A VIA DE ACESSO. ABS. ASO.
Antonio Soares
Sinistro este Wardelino!!!
ResponderExcluir"Arlete, Arlete" é o texto mais interessante e de estilo que eu li em anos.
ResponderExcluirVolto a acreditar na literatura de Niterói depois disso.
Amanhã mesmo sairei à cata de um volume do livro.
Abraços,
Jorge Telles
Com certeza, Jorge!
ResponderExcluirBelvedere
Conheço o Wanderlino desde a época do Petrobrás. Ele estava sempre no boletim da empresa por causa dos concursos literários que ganhava. Levava todos, não tinha para ninguém!
ResponderExcluirSucesso,
Wanderlino
Isso mermo, um texto bon como este mereci estar no gugo e no iutubi.
ResponderExcluirDesde que conheço Wandelino, ele nunca negou fogo, negou palavra, de quem é amigo dileto e faz dela gato e sapato. Este conto só vem confirmar isto. Escreve bem pra caramba o Wandelino!
ResponderExcluirRoberto,Em nome da Arlete, agradeço aos leitores pelo interesse (250 acessos em menos de 5 horas). É tudo que um escritor deseja: ser lido!Abraço fraterno,
ResponderExcluirWanderlino
Muito bom. Arlete, com sua "malícia de toda mulher" e seu "dom de iludir", fez o personagem conhecer o amargo sabor do Cálice, que ele também pede que seja afastado.
ResponderExcluirBelo texto, Wanderlino. Parabéns
M. Esther Torinho
ESther, por onde andas? Que legal te reencontrar aqui!
ResponderExcluirEScreva para meu e mail:belbruno@bol.com.br
BjsBel
Excelente, como aliás, todo o conteúdo do "Beijo de Língua". Parabéns ao blog; parabéns ao Wanderlino.
ResponderExcluirWesley Collyer - Presidente da Academia Catarinense de Letras e Artes
Wanderlino,
ResponderExcluirEu sei o quanto voce e' bom no que faz.Realmente, este conto e' um dos meus preferidos.Excelente. Por favor, deixe a poesia um pouco de lado e volte para os contos.Precisamos dos seus contos.Uau! 250 em cinco horas?
Bela e traumática forma de discutir relações humanas, que aliás podem ser feitas até trancado em um banheiro de estação rodoviária, só ou mal acompanhado.
ResponderExcluirParabéns caro amigo "saturnino", sempre fazendo nossa massa encefálica a funcionar!!!
Parabéns, Roberto, pela iniciativa de publicar o "Arlete, Arlete...". O conto é mesmo excelente (como, aliás, tudo que o Wanderlino escreve) e bem merece o sucesso que alcançou ao ser postado no seu blog. Abraços.
ResponderExcluirSandro.
Roberto:
ResponderExcluirExcelente o conto do Wanderlino! Foi indiciando gradativamente o quadro e
insinuou a situação nas entrelinhas com efetiva competência e segura
observação psicológica. Ele é um extraordinário escritor. Merece ampliar
seu horizonte e tenho a certeza de que o seu Blog será mais um espaço para
a obra dele ficar conhecida por "estes Brasis".
Em 3 de julho de 1995, quando fiz uma análise-resenha para a
Tribuna da Imprensa do Rio, do livro de contos Noturno em mi bemol, de Wanderlino,
percebi o traço do "fantástico" se expandindo pelas frestas do seu
discurso numa sequência de episódios "extra- ordinários". Na ocasião,
estabeleci até um paralelo entre os contos dele e a obra fantástica de J.
J. Veiga, apesar de marcar também a sua "diferença". Referi-me também ao
fato de como é dificil conseguir tais efeitos narrativos, sobretudo, com
velozes e compactas pinceladas. Wanderlino sabe instaurar o suspense e a
surpresa, criar ambiguidades e efeitos insólitos, resolvidos no final do
conto.
Ele agora se superou. Sua força reside no jogo ambíguo do relato desde o
início que, embora narrado com fluência e naturalidade, gera o impacto. Em
"Arlete, Arlete...", conseguiu a tão famosa e difícil "verossimilhança"
interna, conforme convém à arte fantástica, com laivos também de
surrealismo. Instalou o personagem exatamente no "entre-lugar" da memória,
da ilusão dos sentidos e do vislumbre de intuições maiores. Demonstrou as
várias faces da realidade, ocultas, mas pulsantes na dinâmica da vida,
essencialmente fantástica e surrealista.
Dalma Nascimento
Wanderlino, muito bom lugar para estatelar a sua Arlete, Arlete...
ResponderExcluirEste blog parece árvore literária resistente, a lâmina do seu texto será cravada em muitos novos peitos.
É mais gente dando de cara com o dom de iludir do seu olhar sobre a disponível vida e a necessária morte.
Com a mesma já antiga admiração,
Guina Ramos
"Literatura-Vivência" = O blog da elite intelectual de Niterói;
ResponderExcluirWanderlino Teixeira Leite Netto = Gênio da raça.
O conto sintetiza o quanto a nossa mente é extremista. Nos momentos mais dolorosos vem a lembrança de coisas leves que muitas vezes não consideramos. Muito bom Wanderlino, sem medo de ser mórbido. Divulguem tudo dele!!! Um forte abraço, Julio Alfradique
ResponderExcluirExcelente conto. Humano, pungente, reflexivo, no divisor de águas que sempre está a vida humana... Parabéns ao autor!
ResponderExcluirDepois de tudo o que disseram, depois do socorro ao acidente o que me cabe é ficar na calçada olhando o asfalto oleoso, a árvore esquecida, a fotografia do acidente... colocar a mão na boca e pedir:"Deus, nosso, salva esses amantes!" eles não têm culpa, eu vi a moça, a Arlete, grudada nele, apavorada; não, não foi a pista, foram os beijos excessivamente perigosos que ela dava nele enquanto dirigia, eu vi, eu vi de longe, até mesmo quando o carro tombou e, eu conheço a Arlete, seu moço,ela gosta dele... pergunta a aquele rapaz ali, o Carlos Rosa, ele vinha subindo por ali e viu tudo... é, é amor mesmo, e dos puros, não discutiam relação nenhuma não, tá, tá bom, eu vou deixar um recado pra eles. Não tinha arma ou lâmina nenhuma, eu vi, era a mão dela sobre o peito dele...eu vi...
ResponderExcluirUm comentário tão interessante (diria, mesmo, literário) não deviaria ficar anônimo...
ExcluirO anonimato até certo ponto me protege como testemunha; eu disse tudo o que vi e só eu sei da aflição que me acometeu. Apaixonado por amantes, luto pela permanência, perpetuação do Amor- da minha forma -ora jogando sementes,ora regando pingos de água com as mãos...é, às vezes arranham-me porque há espinhos sob pétalas e folhas mas não me afugentam, não me espantam como cão danado ou jardineiro invasor. Ah!num dia de tempestade uma árvore desceu morro e grudou-se na grade da minha janela, deste segundo andar! Levou três meses e eu não sabia mais se ela tentou entrar no meu quarto e não conseguiu ou se me protegia além da grade...Aos poucos as folhas foram caindo, os galhos secando e as raízes expostas deixaram-me confuso: e se fosse por amor, paixão, insegurança de solitária na encosta que a fez vir desatinada para minha cama. Por vezes vazava o alumínio e chegava ao seu tronco, tocava-lhe, tímido, anônimo, ninguém nos olhando. Eu e ela. Vieram os homens e suas cordas e serras.Seiva? Tinha, tinha sim...bem no meio. Eu mesmo chamara os homens da corda e serra para romperem com essa descabida paixão. Livre o vão, a claridade revelava a silhueta em minha retina e os descuidados meus; criou-se um ponto de fuga: não amo mais, não amarei nunca, mas tu amarás, vós amareis e serei corda que isolará os amantes dos fatos ou criaturas cortantes. Amém.
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