O texto que se segue é parte da introdução de um livro organizado por mim e a ser lançado para o ano que vem. Trata-se do atrasadíssimo: Conversações com intelectuais fluminenses. Tal livro conta com 20 entrevistas de diversas personalidades de destaque que nasceram ou se radicaram no Estado do Rio de Janeiro, entre eles: o antropólogo Roberto DaMatta, do teólogo Leonardo Boff, do acadêmico Marco Lucchesi, do filósofo Gerd Bornheim, do historiador Ciro Flamarion Cardoso, do poeta Luís Antônio Pimentel, da educadora Célia Linhares, do artista plástico Israel Pedrosa, do jurista Jorge Loretti entre outros. O livro, que conta com o prefácio de Victor Pinheiro (curador do espólio de Benedito Nunes) e com orelhas assinadas por Renato Nunes Bittencourt, busca registrar o perfil do intelectual fluminense na medida em que registra conversas que versam sobre o tema.
O extrato abaixo enfoca a identidade do que seria um intelectual, mais sobre esta ave rara poderá ser vista no livro. Ao fim desta, ainda se veicula uma relação de títulos sobre a temática do intelectual para eventual consulta e aprofundamento de pesquisa:
Laocoonte e seus filhos
O Destino de Laocoonte ou Resposta à pergunta: o que é isto, o intelectual?
Roberto Kahlmeyer-Mertens
(...)
A noção de intelectual é vasta. A denominação reúne, em torno de si, na mesma proporção, tanto definições quanto controvérsias desde o século XVIII (quando vemos o tema ganhando feição moderna nas intuições iluministas de Kant e nas Preleções sobre a determinação do letrado de Fichte e, depois, com Hegel e com o jovem Marx), sem que isso fosse suficiente para a criação de uma unidade de perspectivas e sentidos. Buscando uma compreensão pacífica que abrigasse essa polissemia, quase nos persuadimos a ceder à ironia de Michel Foucault, quando afirma a ideia de intelectual lhe parecer estranha, não tendo ele conhecido intelectuais: “Encontrei pessoas que ensinam, pessoas que pintam e pessoas que não compreendi bem se elas faziam seja lá o que for. Mas intelectuais, jamais”.1 Foucault acrescenta ter conhecido pessoas que atuam em muitos ofícios, mas reluta em entender o intelectual como um ofício, possuindo uma noção do que esse o seja, apenas por dele ouvir falar.
Ao nos ocuparmos do tema, identificando suas muitas abordagens possíveis, declinamos a provocação do filósofo, pois esta nos deixaria expostos à incerteza e ambiguidade acerca do conceito de intelectual, importante aqui. Assumimos, portanto, um esboço também para uma compreensão do que isto seja. Com essa compreensão, estaríamos salvaguardados de um intelectualismo ingênuo, que pressupõe o intelectual como todo indivíduo dotado de inteligência, e do estreitamento de seu significado na figura do intelectual orgânico (representante e articulador político-ideológico de determinada classe social) como formula Gramsci; discorda a Escola de Frankfurt (propositora da ideia de intelectual crítico) e uma parcela da mídia, muitas vezes, distorce. Isso é motivo suficiente para estarmos convencidos a não deixar o conceito de intelectual apenas subministrado.
O termo intelectual surge negativamente conotado. Vem em desdenhosa oposição a Émile Zola, Marcel Proust e Anatole France, que manifestaram sua indignação frente ao caso Dreyfus (escândalo envolvendo este oficial francês de origem judaica que foi falsamente acusado de alta traição por partidários do anti-semitismo francês).2 Com o tempo, o deboche passou a designar aqueles que prestam o serviço de entender e elucidar a sociedade de seus problemas, como acusa o termo “intellegere”, etimologia que apropriada conceitualmente significa entender.
Pensar o intelectual como este “entendedor”, antes de nos reportar à cultura latina, nos põe em contato com a cultura iluminista, na qual se encontra a proposta do uso esclarecido da razão. O intelectual ali era quem, agindo racionalmente em domínio público, colaboraria com a autonomia do indivíduo, da sociedade e, enfim, da espécie humana. É, portanto, um transformador da sociedade, tornando-a cada vez mais emancipada, garantindo a intelecção dos limites das instituições reguladoras do poder e do papel transformador que cada indivíduo na sociedade pode exercer. Dotado de habilidades e competências, o intelectual as exerce ordinariamente no campo cognitivo (ciência, educação e difusão), prático (direito, ética) ou estético (artes plásticas, literatura etc...) e, extraordinariamente, quando, mesmo sem mandato, intervém nos casos que entende que o estado ou outros sujeitos ferem princípios legais atinentes à realidade humana e que envolvem a ordem e a liberdade coletiva. Deste modo, o intelectual bem poderia ser comparado ao Laocoonte, expresso na riqueza simbólica e instintiva das narrativas greco-latinas. Homero, em sua Ilíada, retrata-o como possuidor de dotes especiais: sacerdote do deus Apolo, Laocoonte é o único a entrever os riscos que, ocultos em “cavalos de Troia”, ameaçam o homem da pólis e a seu povo; é aquele que acha prestar um serviço público, intrometendo-se e pronunciando categoricamente a verdade que intui.3 Os intelectuais, bem como o personagem, estão fadados, apesar de toda a sua veemência, aos poderes vigentes que, sub-repticiamente os sufoca e a sua grei, submergindo-os em múltiplas formas de silêncio.
Recolhidos às suas tarefas habituais ou engajados em causas excepcionais, intelectuais são seres de cultura. Promotores de conhecimento, cronistas de acontecimentos, críticos em permanente vigilância, eles opinam e intervêm na medida em que os acontecimentos se dão, estando prontos a dizer sempre mais do que se conhece, a apresentar o que eles viram além dos outros. Este esboço não pretende esgotar as acepções de intelectual.4
Do intelectual, resguarda-se a variedade de sua formação, titulação, orientação política, profissão e áreas de atuação, seus perfis são diferentes ideológica e socialmente, etária e etnicamente: são gente da filosofia, ciências sociais, letras e história. (...)
Notas:
1 FOUCAULT, Michel. O filósofo mascarado. In: Ditos & escritos II – Arqueologias das Ciências e Histórias dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 301.
2 Cf: WINOCK, Michael. O século dos intelectuais. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
3 HOMERO. Ilíada. In: Obras completas de Homero. Trad. Luis Segalá Estalella. Barcelona: Montaner y Simon, 1955.
4 Cf: NETO, A. L. Machado. Da vigência intelectual – Um estudo de sociologia das ideias. São Paulo: Grijalbo, 1968.
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Divulgação Cultural
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