Convicto do brocardo lobatiano
segundo o qual “um país se faz com homens e livros”, tentei elencar, de memória,
aqueles títulos que eu acreditava representar bem a cultura literária de
Niterói. Consultando várias pessoas
ligadas ao meio acadêmico de minha cidade, foi curioso o fato de minha lista
coincidir com os títulos apontados por aqueles conhecedores de livros. Diante
desta coincidência (ou deveria dizer “feliz serendipidade”), animei-me, sem
maiores pretensões, a apresentar quinzenalmente alguns dos livros que teriam, de
algum modo, marcado a cena literária niteroiense. Livros que trouxeram
contribuições substanciais em alguma área, inovações, resgates, celebrações de
datas festivas da cidade e que, até, ficaram conhecidos pelas polêmicas que
causaram. Em todos esses casos, o valor
literário ou histórico foi o que deu o critério para essas escolhas que – longe
de serem completas – serão singelos afagos na cultura de nossa
cidade.
Em cada
quinzena, o leitor de Literatura-Vivência poderá conhecer, no
Projeto “Livros que marcaram
Niterói”, um pouco mais das nossas letras.
O homem fluminense, de Vera de Vives
Aos conhecedores da
literatura especializada sobre o Rio de Janeiro parece ser patente a
importância e excelência que a tetralogia de Alberto Ribeiro Lamego possui.
Obra reconhecida e, ainda hoje, estudada com significativo proveito, O homem e a Serra, O homem e a Guanabara, O
homem e o Brejo e O homem e a Restinga
constituem um competente trabalho que envolve a geografia física, a demografia,
a etnologia e a geologia de nosso estado (quanto a este último item,
impressiona o autor dissertar até sobre a granulação dos compostos rochosos
presentes nos penedos de nossas serras!).
A atenção ainda hoje
voltada para estas obras foi, sem dúvida, a responsável pela tímida visitação
que se faz a outros títulos que enfocam, da mesma forma, aspectos
significativos de nosso Rio de Janeiro. Entre estes: O homem fluminense.
Editado em regime de
cooperação pela Fundação Estadual de
Museus do Estado do Rio de Janeiro e pelo Museu de Artes e Tradições
Populares, no ano de 1977,
a obra foi idealizado por Elton Medeiros, embora toda a
pesquisa de campo e redação tenha ficado a cargo da jornalista e escritora Vera
de Vives.[1]
Produzido pela já referida Fundação, tendo como seu presidente Leonídio Ribeiro
Filho, o trabalho é fruto de uma pesquisa etnológica que pretendia registrar traços da vida rural: moradia/arquitetura,
as técnicas da lavoura, a pesca e seus ambientes (rios, banhados e lagoas), os
gêneros agrícolas cultivados, os utensílios, a culinária típica; a arte material, renda de bilros, os
santeiros e escultores de madeira, os artífices de instrumentos musicais, a
cerâmica manual etc; a arte imaterial
(nomeada pela autora “arte espiritual fluminense”), o caxambu e o jongo, boi
pintadinho e jaguará, folias de reis e do Divino, a Carvalhada, as festas de Paraty
e Saquarema etc...
Com metodologia bem fixada
e adequadas técnicas de pesquisa de campo, o trabalho que deu origem a O homem fluminense possuía uma única
justificativa: a de que era necessário documentar a cultura fluminense diante
do risco de sua descaracterização ante o inevitável avanço da cultura de massa.
Também um único objetivo: preservar as memórias
de nosso estado. E, por fim, uma generosa oferta: “O homem fluminense é uma homenagem a elas (as memórias do estado),
pela tenacidade com que souberam preservar suas raízes e tradições”. (p.3)
A elaboração dos sete
capítulos que compõem esta obra de mais de cem páginas exigiu da equipe
envolvida no projeto longas viagens por 23 municípios fluminenses. Luís Antônio
Pimentel (que colaborou como fotógrafo no livro), em depoimento exclusivo ao
Blog Literatura-Vivência, narra um
pouco dessa aventura: “Eram verdadeiras
incursões ao coração do estado. Havia horas em que andávamos léguas debaixo de
sol e comendo a poeira naquelas estradas de chão. Era um grande alento quando
podíamos nos abandonar nos bancos da kombi que vinha nos buscar. Mas ninguém da
equipe reclamava, estávamos todos cansados mas muito satisfeitos com o que fazíamos.
Só a Vera parecia não cansar!”. Além de Pimentel, trabalharam na
documentação fotográfica Jorge Sirito Vives (marido de Vera de Vives), Zalmir
Gonçalves, Gilson Barreto e Roberto Costa de Sá Peixoto. Estes fizeram com que O homem fluminense se tornasse um
documento ricamente ilustrado com requintes de detalhes.
Entre as três mencionadas
divisões do livro, a que certamente parece melhor documentada é aquela que
trata da “Arte espiritual fluminense”. Os folguedos são minuciosamente
descritos ali por meio da prosa límpida e objetiva de Vera de Vives. Esta parte
ainda traz as letras e as partituras das músicas que embalam àquelas
manifestações culturais. Destaquem-se, neste momento, as peças do mineiro-pau
de Santo Antônio de Pádua, a folia de reis de Duas Barras e a “Benção da
farinha”, oriunda da folia do Divino de Saquarema. Desta última, pedimos licença
para reproduzir, aqui, sua singeleza:
“São José,
Santa Maria
− Jesus,
Maria
Puxando a
sua bestinha
− Jesus,
Maria, protegei...
Jesus,
Maria.”
(p. 92)
Embora na época de seu
lançamento a obra tenha recebido uma ampla tiragem, todos estes anos sem uma
nova reedição faz com que exemplares de O
homem fluminense sejam mais frequentemente encontrados em bibliotecas
públicas e em estabelecimentos de ensino (proporcionalmente, são poucos os
exemplares pertencentes a particulares). Ainda que esta falta seja insuficiente
para considerar O homem fluminense um
livro raro, estamos convictos de que: por sua louvável iniciativa, sua
elaboração acurada e sua caprichosa acolhida, a Obra já nasceu sobre a reputação de “raro livro”.
[1] Vera de Vives foi membro da AcademiaNiteroiense de Letras – ANL e durante década assinou uma coluna chamada “Diário
sem data”, no jornal O Fluminense. Entusiasmada
defensora da causa fluminensista, escreveu um romance dedicado à lenda
cantagalense do Mão de Luva, a obra se chama Descobertas e extravios (Record, 1997).