A crônica
que se segue endossa a afirmação de Kant segundo a qual o belo é o que aumenta nosso sentimento de vida,
bem como o projeto nietzschiano de pensar a vida
como literatura. Que as palavras de Sabino se coloquem acima de
todos os tratados de estética.
Ao Carlos Rosa Moreira
A última crônica
A caminho de
casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na
realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta.
Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do
pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher
da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que
a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta
perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de
uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a
noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café,
enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu
último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último
olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do
botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de
mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção
de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de
seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se
instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os
olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno
à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém,
que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a
observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do
bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão
um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel,
vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve,
concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher
suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua
presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.
O homem atrás
do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo
simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha,
contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o
garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai,
mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa
de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma
caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um
animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três
velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do
bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as
velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e
sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito
compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos:
"Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as
velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as
duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com
ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe
cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se
convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a
observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila,
ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num
sorriso.
Assim eu
quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."
Kahlmeyer Que bom reencontrar você! A crônica que nos oferece é uma das minhas preferidas. Obrigada. Abraços da Gracinda.
ResponderExcluirSentimos falta de sua militância literária, professor Roberto.
ResponderExcluirAndréa
Começou bem o dia de hoje: retornou o Literatura-Vivência. Ou é apenas um delicioso bocado servido aos poucos, como as melhores iguarias francesas? E, como se não bastasse, Kahlmeyer brinda a todos com uma das pérolas da nossa Literatura, essa crônica do Fernando Sabino, que "nasceu velho e morreu menino". No parágrafo inicial o escritor dá uma aula curta, mas completa, àqueles que desejam escrever o gênero. A primeira vez que a li, confesso, chorei, tanto pela emoção quanto pela delicadeza da arte de trabalhar nosso idioma. Vi -vi mesmo!- o sorriso do pai, e quis ter estado lá com o Sabino para devolver o sorriso àquele pai, um sorriso no qual ele veria um singelo sentimento de comunhão de um irmão desconhecido, mas agradecido por presenciar seu ato de beleza e poesia de um pai amoroso. Sabino escreve "casal de pretos" e "pretinha", ótimo! Mostra que não devemos deixar de usar a riqueza da lingua por causa de patrulhadores -notem que escrevo "patrulhadores"- equivocados e raivosos. A lingua portuguesa é rica e tem de ser utilizada em sua pujança, preto ou negro, ambas as palavras são boas. E o casal de seres humanos, pela brilhante pena do escritor, dá a todos, pretos ou negros, brancos e o que mais houver, um lindo momento de beleza, delicadeza e amor. E o Kahlmeyer dedica a mim esse belo momento do blog! Obrigado, Roberto, você também me emocionou, é agradecido e esperançoso que fecho essa mensagem. Espero que retorne de vez, enriquecendo com seu brilhante trabalho estas nossas paragens literárias.
ResponderExcluirUm forte abraço.
Carlos Rosa Moreira.
Prezado Roberto.
ResponderExcluirFoi com alegria que vi sua mensagem. Fazia tempo que...
Quanto à belíssima crônica de Fernando Sabino, foi com prazer e emoção que a reli.
Da primeira vez, li-a no livro AS CEM MELHORES CRÔNICAS BRASILEIRAS, selecionadas por Joaquim Ferreira dos Santos.
O mineiro Sabino foi, sem dúvida alguma, um dos mais sensíveis cronistas brasileiros.
Abraço, Gilson
Caro Kahlmeyer!
ResponderExcluirComo me emocionei ao ler esta crônica. Seu blog devia voltar aos bons tempos para sempre nos oferecer boas novas como esta. Seu trabalho nos anima.
Niamar Tannury
Sou admirador da obra de Fernando Sabino. Que bom
ler esta sua linda crônica!
Ótimo tê-lo de volta, Roberto.
Abraços do
Luiz Calheiros.
Bom dia, nobilíssimo Professor Roberto Kahlmeyer Mertens.
ResponderExcluirAgradeço por seu filosófico e-mail. Aproveito para externar os meus votos de parabenização à cidade do Rio de Janeiro pelo seu aniversário, em 1º de março, recebendo como presente o lindo Museu de Arte. Desejo a você e excelentíssima família,
um ótimo final de semana.
Felicitações
do casal amigo,
Alberto Slomp e Yara Regina Franco.
Kahlmeyer, você é o cara!
ResponderExcluirThiago Quintas
Pô, Roberto, pensei que você se tivesse esquecido de mim. Que bom tê-lo de volta, e com um cartão de visita como este. Já li essa crônica 100 vezes. Completei agora 101, sempre com a emoção da primeira. Que escritor, o Fernando Sabino! Correção de linguagem como tão dificilmente se vê, hoje em dia, quando há escritores (?) parecendo querer romper com a beleza e os encantos de nossa última flor do Lácio.
ResponderExcluirUm abraço.
José Eustáquio
Parabéns pela postagem, pela homenagem e por sua presença!
ResponderExcluirAbs
Belvedere
Para variar, genial! Tanto o texto quanto a escolha!
ResponderExcluirAbraço forte!
Deise