Literatura-Vivência
“Ser anfitrião das belas letras.” Com esta legenda, o presente Blog pretende abrir espaço para os talentos da literatura (com ênfase na fluminense). Tal sítio é reservado ao fomento e divulgação da boa poesia, da crônica, do conto, da crítica e, também, da vivência em meio às Instituições acadêmico-literárias. Preservar a memória dessa literatura, promover o trabalho de autores cujas obras já se encontram consolidadas e apoiar as promessas que ingressam na senda literária é o nosso papel.
sábado, 3 de junho de 2017
quarta-feira, 5 de outubro de 2016
Zetinho: O encontro do futebol com a literatura fluminense
Já era hora do futebol encontrar a literatura no L&V.
Vamos pelas mãos de Bruno Pessanha e pelas chuteiras de Zetinho a duas das muitas paixões nacionais:
Zetinho
Em 1938, Murundu, a 50 km de Campos, no norte do
Estado do Rio de Janeiro, tinha estação de trem (única forma de acesso ou saída
da Vila) e uns 300 habitantes, se tanto. Rua de terra, casario, igreja, armazém
e farmácia compunham o distrito - um fim de mundo, por assim dizer. Os
fazendeiros e sitiantes criavam gado ou plantavam cana-de-açúcar, atividades
predominantes em todo o município; mas, do ponto de vista esportivo, Murundu
era uma miniatura do Brasil: tinha torcedores e jogadores de futebol. Naquela
época, já se podiam acompanhar os jogos pelo rádio de seu Donizetti, o dono da
farmácia; ambos únicos na Vila – o rádio e a farmácia.
Situada exatamente entre
dois outros lugarejos com características semelhantes, Murundu se comunicava
com o mundo através desse aparelho e do telégrafo da ferrovia. O fato de a Vila
ter sido escolhida como ponto de parada dos comboios da Leopoldina Railway
estava a indicar seu potencial de futuro entreposto comercial da região.
O farmacêutico
trabalhava sempre com um longo e engomado jaleco branco e só saía à rua de
terno, gravata e chapéu, pois era assim que os senhores de respeito se vestiam,
na época. Mas, apesar do formalismo, gostava muito de futebol. Tanto que,
sempre que podia, fazia coincidir as viagens a Campos com os fins de semana,
sobretudo quando acontecia a partida final do campeonato campista, disputado
rotineiramente pelos times do Goitacaz e Americano, de grande torcida no Norte
Fluminense.
Depois que seu filho
Zetinho completara 5 anos, passara a acompanhar o pai na arquibancada do
estádio da Rua dos Goitacazes. Identicamente ao que sucedia com Flamengo e
Fluminense na Capital, os times de Campos tinham torcidas diferenciadas: o
Americano, uniforme branco e preto, contava a maioria dos seu torcedores na
classe abastada. Era o clube da elite, para o qual seu Donizetti gostaria que o
menino torcesse. E o Goitacaz, azul e branco, era o time popular.
As idas de seu Donizetti
a Campos eram mensais, tanto por causa de seu trabalho quanto para atender a
seu desejo de estar por dentro do que se passava no país e no mundo. O rádio
não dava conta dessas necessidades de homem do interior. Era bom conversar com
fornecedores e amigos e ler o "Monitor Campista" para se atualizar
com as notícias locais e internacionais. Assim, acompanhava a movimentação do
governo de Getúlio Vargas, que assumira o poder em 1930 e, como caudilho de
fronteira, tão cedo não pensava dele apear-se.
Além do farmacêutico,
quantos na Vila faziam mensalmente o mesmo tipo de contato com a sede do
município ou com um centro maior de informações? O padre, o dono do armazém e
talvez meia-dúzia de grandes agricultores e pecuaristas. Estes, porém, residiam
nas suas propriedades, e em geral faziam na Vila apenas compras de armazém e
farmácia. De volta dessas visitas, tornavam-se a fonte de informações para os outros
moradores. Assim, um fazendeiro encostado no balcão para um trago de pinga trazia
sempre novidades e relatos de fatos
acontecidos em Campos e na Capital – quase sempre ligados à política municipal,
federal ou aos usineiros (preço da cana). A informação dizia respeito às
medidas do Governo Vargas ou às brigas entre o prefeito e a oposição, ou aos
craques de futebol e suas condições físicas para os próximos jogos.
Boa parte das notícias
internacionais referia-se à Rússia, Alemanha e Itália, países sob regimes
ditatoriais, cujos líderes alimentavam ambições expansionistas. No Brasil,
essas disputas imperialistas já começavam a se refletir, levando o país a um
estado de efervescência política. Embora Vargas tendesse disfarçadamente para o
fascismo, durante a década de 30 seu governo viu-se sob o fogo cerrado de
adeptos do integralismo e comunismo. A ebulição política chegou ao ápice quando
Luiz Carlos Prestes (em 1935) e Plínio Salgado (em 1937) lideraram tentativas armadas,
um tanto caricatas, de derrubá-lo do poder.
Seu Donizetti, patriota,
sentia-se atraído pelo integralismo, vertente brasileira do fascismo. A
expressão maior desse regime era a Itália, onde predominava a figura de Benito
Mussolini, il Duce. De Roma, as
manifestações públicas do regime, as marchas e passeatas cívicas, o culto à
eugenia, ecoavam aqui como algo
saudável, atraente, digno de ser imitado, pelo caráter de infalibilidade e de
paraíso coletivo que transmitiam. Em pouco tempo, pela pregação de Plínio
Salgado, Gustavo Barroso e outros líderes de projeção, o número de adeptos do
fascismo cresceu no País. Se os fascistas italianos vestiam camisas negras,
aqui no Brasil, para dar um toque de autonomia ao movimento, o verde foi
escolhido para colorir as camisas nas manifestações coletivas de amor à Pátria.
Na pequenina e distante
Murundu, o slogan "Tradição,
Família e Propriedade" e a leitura do "Manifesto Integralista",
de Plínio Salgado já haviam convencido o senhor Donizetti de que o integralismo
era o regime ideal para o Brasil. Do mesmo tamanho de seu amor à Pátria, a empolgação com o "Manifesto" foi tanta que, três meses depois,
decidiu demonstrá-la ao povo local através de uma caminhada, à
semelhança das passeatas promovidas por Plínio Salgado nas maiores capitais do
país. Assim, em 1936, Murundu assistiu a evento memorável: seu Donizetti e
Zetinho, então com 7 anos, peitos inflados de orgulho, marcharam à frente de 30
moradores, todos vestidos de camisa verde.
Na posse do único rádio
do lugar estava certamente a raiz principal de todo o prestígio do
farmacêutico, capaz de mobilizar 10% dos murunduenses para uma manifestação
política. Até o padre, simpatizante notório de Plínio Salgado, pensou integrar
a passeata, não o fazendo para evitar falatórios. Dos participantes, parte não sabia o motivo
por que marchavam. Sabiam, contudo, que a adesão à marcha era condição essencial
para continuarem ouvindo os jogos dominicais do Flamengo, do América e demais
times do Rio de Janeiro - oportunidade de escutar a voz rascante de um
locutor ranheta chamado Ari Barroso.
O status do farmacêutico era grande no local. Naquela época, a
farmácia e o armazém eram os pontos de encontro em qualquer lugarejo perdido no
interior do país. Na farmácia, a beleza das estantes de madeira nobre, cheias
de frascos coloridos, chamava a atenção dos moradores tanto quanto o poder do
profissional de manipular as misteriosas substâncias neles contidas. Seu Donizetti disputava com o padre e o dono
do armazém a atenção dos moradores de Murundu. Ele tinha consciência, ainda que
difusa, de ser um agente social do lugar. Daí ele se ter envolvido com o movimento
integralista, liderado por Plínio Salgado, em cuja pregação messiânica de
renovação moral da Pátria acreditava piamente. O rádio era o outro
elemento de prestígio de seu Donizetti, superando até mesmo o do padre, que não
via com olhos tão cristãos o uso daquele
aparelho para atrair os moradores, sobretudo quando o horário dos jogos
coincidia com o da missa vesperal aos domingos. Mas o que fazer? Seu Donizetti
era bom católico, contribuinte de mão aberta e assíduo às missas.
Da marca Phillips, o rádio
era enorme. Suas dimensões - 60cm de altura x 35 de largura e 30 de
profundidade – eram de per si uma atração. Ovalado na parte superior, a frente, em
madeira entalhada e vazada, com um forro de seda marrom, lembrava pequeno
altar. Funcionava à base de uma bateria grande, cuja recarga era feita em Campos. A curiosidade
que despertava pelo entretenimento produzido só era comparável ao transtorno
que era o seu transporte, de trem, para recarga ou troca de válvulas. Um
trambolho, sem dúvida, mas tarefa que seu Donizetti cumpria, orgulhoso, com a
ajuda do filho.
Além da farmácia, o
farmacêutico possuía um terreno próximo ao trilho da ferrovia e um sítio mais
distante. Por insistência de Zetinho, o pai mandou fincar no terreno umas
traves, construindo o segundo campo de futebol de Murundu - o que desde logo tornou o menino famoso entre
os coleguinhas do Grupo Escolar, que passaram a chamá-lo “o dono do campinho”. Os jogos da meninada
passaram a fazer tanto sucesso quanto os do campo do Murundu Futebol Clube, em
cujo gramado as partidas se restringiam ao embate de casados contra
solteiros. Tanto num campo como no
outro, a bola utilizada era de couro e a câmara de ar de borracha tinha um
umbigo para enchê-la; depois o umbigo era embutido e o local em volta costurado
por um fio de couro, ali causando um abaulamento. Prejudicada em sua esfericidade, a bola não
era ideal para a prática do futebol, mas era o modelo mais fácil de encontrar e
o mais barato. Porém, o que importava essa imperfeição geométrica, se correr
atrás dela, chutá-la, fazer gol na meta da vida era preciso... E era a bola
usada na maioria dos campos de várzeas das cidades brasileiras, onde se chutava
até bola de pano.
Aluno aplicado, nas suas
horas de folga Zetinho só falava em futebol. Aos 6 anos, sua mãe, dona Magnólia, lhe
dera uma faixa vermelha para pôr na
testa. Era a cor do América Futebol Clube, time carioca pelo qual ela passara a
torcer por gostar muito das marchinhas carnavalescas de Lamartine Babo (o mais
entusiasta torcedor do time americano).
No ano seguinte, a camisa com que jogava era vermelha; mas, tendo virado
torcedor do Flamengo, campeão carioca naquele ano, por influência dos parceiros
de campo, Zetinho pediu à mãe que acrescentasse faixas pretas à camisa rubra.
***
Em 1938, ano da 3a
Copa do Mundo (realizada na França), o futebol, paixão nacional, já havia sido
incorporado à cultura brasileira, e Murundu não fugia à regra. Ansiosos, os
seus habitantes queriam torcer pelo escrete
nacional nos campos franceses.
A participação nas Copas
anteriores tinha sido decepcionante: derrota em campos uruguaios em 1930 e um
triste 14o lugar em 1934. Na França, esperava-se que seria
diferente. Apesar das pressões de dirigentes de clubes e federações, a seleção
treinada por Ademar Pimenta tinha realmente os melhores jogadores do país:
Batatais no gol, Domingos da Guia na defesa e Leônidas da Silva no ataque. Um
timaço, que não podia fazer feio. Até Zetinho sabia o nome dos jogadores. Ele
ficava sempre atento ao que os meninos mais velhos falavam sobre os craques da
seleção. Quem era o grande driblador, quem fazia mais gol, quem fazia as
melhores defesas. E, curiosidade aguçada, ia para casa perguntar ao pai:
-
Pai, o Leônidas é mesmo o nosso maior jogador? Os meninos estão dizendo
que ele fez um gol de bicicleta, como é
que pode isso, pai? Nunca vi ninguém entrar de bicicleta no campo...
Seu Donizetti achou difícil explicar:
-
A jogada nada tem a ver com o brinquedo que comprei para você no ano
passado. Acontece quando a bola é cruzada pelo alto na área adversária e o
jogador está de costas para o gol. A bola vem em sua direção e ele não tem
tempo de se virar. Salta e as pernas pedalam
no ar uma bicicleta imaginária; um dos pés bate na bola e ela vai direto
para a meta adversária e estufa as redes. Foi Leônidas, o nosso craque, quem
primeiro fez essa jogada que encantou os
europeus. E como ele é negro, passou a ser chamado de "Diamante
Negro". Sabe, meu filho, eu nunca vi, mas imagino que deve ser um lance
muito bonito, verdadeira acrobacia, coisa de circo! - completava o pai que,
empolgado com a beleza plástica da jogada (vista apenas em foto de jornal),
esquecia-se que falava com uma criança.
***
Toda vez que, no andar de cima da farmácia do senhor
Donizetti, o rádio ia ser ligado para transmitir uma partida de futebol,
Zetinho se apressava em ajudar na arrumação da sala, trazendo as pesadas cadeiras
dos outros cômodos. Tudo pronto, ele se acomodava bem em frente da estante com
o rádio. O pai observava aquela dedicação e, por momentos, se preocupava com o
exagerado interesse do filho. “Será que essa mania não vai prejudicar seus
estudos?” – perguntava-se. Mas aquele assento especial não era muito esquentado
pela bundinha magra do garoto. A cada amigo ou correligionário que chegava, o
farmacêutico olhava na direção do menino, que prontamente atendia à ordem muda
do pai e passava para a fileira de trás. No dia do jogo contra a Suécia, a sala
estava cheia e Zetinho, como sempre, sentado no banco da última fileira. Nem
mesmo via o rádio.
No prélio anterior, o
Brasil havia sido derrotado por 2
a 1 pelos italianos. Na tarde da disputa pelo 3º lugar
com a Suécia, a sala grande já estava preparada, com todas as cadeiras e bancos
à frente da mesa com o rádio. Era esperada casa cheia; no mínimo uns trinta
amigos e fregueses do farmacêutico viriam ouvir a irradiação.
À semelhança da Alemanha
nazista, o culto à eugenia tinha no esporte o meio mais adequado para mostrar a
superioridade do regime italiano. E a evidência maior do uso político dos seus
atletas foi a troca, já a partir das quartas-de-final, da tradicional camisa
azul do time (a conhecida Squadra Azurra) pela negra do partido
fascista. A nova cor da camisa foi considerada um acinte aos franceses, que
hostilizavam a seleção do técnico Pozzo (ou do Duce, para eles o verdadeiro
escalador do time) desde que chegara ao país.
Esses fatos não eram de
conhecimento dos moradores da Vila, mas
o time italiano tinha a preferência de seu Donizetti que, além de admirador do
fascismo, por ser oriundo,
considerava a Itália a sua segunda pátria. Nessas horas, mão direita junto ao
peito, pensava: “Aqui nós desfilamos com a camisa verde. Mas, quem sabe, um
dia, eu ainda vou marchar em Roma, diante do Duce, com a camisa negra!”
O que não estava nos planos
do anfitrião, naquele dia, era o
aparecimento - verdadeira surpresa - de
um pequeno plantador de cana. Meia hora antes do jogo, gente em pé já encostada
nas paredes, Gregório Pessanha chegou, acompanhado de um amigo.
***
Por ter sido criado em
Murundu até a adolescência, Gregório já era
conhecido na Vila, de onde saíra
brigado com o pai. Em Campos, empregou-se numa usina situada à margem esquerda
do rio Paraíba. Era alimentador direto da esteira de cana para ser moída, trabalho estafante; no fim do dia “o moído
era ele”, como dizia ao voltar para casa com as roupas escuras como carvão.
Morava com vários outros trabalhadores em uma casinha distante da usina e do
centro da cidade. A rotina de vida de todos era da casa para o trabalho e
vice-versa. Apenas Gregório quebrava o dia-a-dia do casebre: vivia lendo uns
papéis esquisitos que falavam da existência no país de uma incipiente
organização política que acenava com a libertação dos trabalhadores de todo o
mundo. Através desses papéis, Gregório
tomou conhecimento de que a experiência já havia sido realizada em um país
longínquo - a União Soviética, no qual os trabalhadores, através de uma
revolução, assumiram o poder. E as palavras "socialismo" e
"comunismo" passaram desde então a fazer parte de sua vida durante os
três anos em que trabalhou duro em troca de um salário miserável que mal pagava
a comida. As reuniões com outros trabalhadores se amiudaram a partir de 1934,
com a notícia de que Luiz Carlos Prestes viria à cidade para falar diretamente
aos trabalhadores das usinas. A visita anunciada não aconteceu, mas representantes da
recém-fundada Aliança Nacional da Libertação
passaram a ir à cidade com a incumbência de fomentar uma greve dos
trabalhadores das usinas de açúcar existentes no município.
Nessas reuniões,
Gregório tomou conhecimento de um pouco da história de Luiz Carlos Prestes, o
líder daquele movimento no Brasil. Soube que ele, na década anterior havia
chefiado um grupo de revoltosos contra o Governo; movimento que qual
posteriormente ficou conhecido com o seu nome: Coluna Prestes. Soube ainda que
depois desse protesto, viajara para o exterior e que um dos países por ele
visitados fora justamente a União Soviética, onde a experiência socialista
estava em andamento. De
lá, voltara ao Brasil com a missão de aqui instalar a primeira república
popular das Américas. Para isso, a derrubada do ditador Vargas fazia-se
necessária. A tentativa de 1935, que ficou conhecida como "Intentona
Comunista", fracassou e os adeptos da Aliança Nacional da Libertação passaram
a ser perseguidos.
Dois anos depois, com a
morte do pai, Gregório voltou para Murundu. Para ele, a herança do sítio tivera
duas vantagens: escapar da perseguição e viver com tranqüilidade, plantando os
4 alqueires de cana para vender à Usina de Outeiro, a mais próxima da Vila. Mas
a sua fama chegou aos ouvidos do seu Donizetti em uma das viagens a Campos. Nem
precisaria, pois, no dia do desfile dos "camisas verdes" na Vila,
Gregório foi o único que teve coragem de se posicionar frontalmente contra os
integralistas.
-
Anauê! Prepara as pernas pra correr, seus "galinhas verdes"!
A frase marcou seu
Donizetti e o companheiro que vinha batendo o tambor. Este, indignação maior
dentro do peito, rosnou um “esse filho-da-puta me paga!”, mas continuou
marchando e bumbando
E agora, o miserável do
Gregório Pessanha estava ali, na sua sala! Seu Donizetti se perguntava o que
fazer. A fama de homem educado, jaleco
branco na farmácia e terno e gravata para ouvir rádio, mandava receber bem a
incômoda visita.
-
Seu Donizetti, o senhor vai me perdoar o que eu fiz durante a marcha,
mas eu e meu amigo queremos também ouvir
o jogo do Brasil. Leônidas vai jogar, não vai?
O batedor do bumbo
integralista, ímpetos de tirar aquele comunista miserável dali, levantou-se do
banco. Mas o braço do farmacêutico
acenou para que continuasse sentado, como a dizer “A casa é minha, eu é
que resolvo.” E Gregório e o amigo, encostados na parede, por lá ficaram.
Consciente da
importância do futebol para seu movimento,
seu Donizetti não queria saber de brigas. Ao contrário, havia pensado em
revestir aquelas reuniões com a formalidade necessária, ou seja,
acrescentar-lhes um toque cívico. Afinal, era a nossa Pátria que estaria
representada na capital francesa. “Dar um tapa de pelica naquele intruso era
mais proveitoso.” – pensou. Rádio já ligado no volume mais alto, o farmacêutico
pediu a todos que se levantassem para cantar o Hino Nacional.
O som do aparelho
oscilava. Ora chegava alto aos ouvidos dos presentes, ora sumia de vez, ora a
estática tomava lugar da voz do locutor. Acompanhando o volume do aparelho, os
moradores também iam e vinham nos seus lugares, inclinando-se pra frente toda
vez que a voz de Ari Barroso sumia ou era vencida pelo zumbido do aparelho.
Ondulação dupla – do volume do rádio e da platéia sentada – acontecia na sala.
Movimento idêntico ocorria com o pessoal em pé, que de tempos em tempos se
deslocava pra frente, formando dois amontoados ao lado da pesada estante do
rádio. Zetinho, na última fila, quase não via nem ouvia nada. O grito de gol
ecoava na sala sem que se soubesse se
era ou não do Brasil. Mas a saudação era
quase sempre correta: o Brasil ganhara da Suécia por 4 a 2, e Leônidas
foi o artilheiro da Copa, com 9 gols.
Cativa do som instável do
aparelho, a platéia ondulava na sala como a antecipar a ola futura dos estádios
de futebol – a exuberante saudação com que a torcida passou a saudar seus times
na entrada no campo e após os gols.
O 3o lugar
nos campos da França fora considerado um feito espetacular. Muitos "Hip,
hip! Hurra! Viva o Brasil!" retumbaram
durante vários dias em Murundu e no Brasil. Com a vitória brasileira, os
europeus descobriram que havia na América do Sul outra força futebolística além
de Uruguai e Argentina.
Na sala do farmacêutico,
no entanto, a comemoração restringiu-se a muitos gritos de orgulho e amor à
Pátria. Nada de brinde com bebida, nem mesmo cerveja ou champanhe: seu
Donizetti não permitia o uso de álcool em casa.
Gregório e seu amigo
agradeceram e sumiram logo que o jogo acabou.
Murundu e seu único
rádio prometiam surpresa especial para o dia seguinte: o jogo final da Copa:
Itália x Hungria. Tanto ou mais do que o jogo do Brasil, a notícia mexeu com os
nervos do seu Donizetti e de seu parceiro de marcha (o que tocava bumbo). Para
eles, o jogo com a Suécia parecera um anticlímax, já que a Pátria disputava
apenas o 3o lugar. Como
admiradores do fascismo, estavam convictos de que o prato principal seria
saboreado no dia seguinte, quando os atletas italianos vestidos de camisas
negras entrariam em campo.
Ante a possibilidade de
acompanhar e torcer pela Itália, os dois líderes integralistas desde logo
iniciaram a mobilização dos companheiros locais. Seu Donizetti queria concentrar
em sua sala um número de pessoas maior do que a marcha de seis meses atrás. Uma
verdadeira festa cívica jamais vista em Murundu. Afinal , o Duce estaria pessoalmente no estádio
parisiense para saudar os seus atletas em mais uma jornada gloriosa da Itália.
Sim, porque nenhuma força pararia aqueles homens no caminho da vitória. O que
acontecera com os alemães nas Olimpíadas de Berlim não se repetiria com a
equipe italiana. Não! Em Paris, mesmo que os franceses torcessem contra, o Duce não seria humilhado por um Jesse
Owens qualquer, como o fora Hitler, o Führer
alemão, dois anos antes!
Sem dúvida, a Itália,
pela força superior de seus atletas, pela dedicação à Pátria, sairia vitoriosa
como em 1934. A
convicção era tanta que os jogadores entrariam em campo com as camisas negras
dos fascistas.
Do outro lado do mundo,
a crença que empolgava os fascistas italianos era partilhada com idêntico
fervor cívico pelos murunduenses liderados por seu Donizetti. Na manhã de
domingo, as camisas verdes e as gravatas negras dele e de Zetinho já estavam
passadas a ferro, para uso na hora solene do jogo. Conforme fora combinado com os companheiros,
todos viriam de calça cáqui e trariam camisas e gravatas para trocar ali mesmo.
Na hora do Hino Nacional, já deviam estar devidamente paramentados. O arranjo
havia sido feito à boca pequena entre os adeptos e simpatizantes do
integralismo, de modo a evitar que Gregório e seu camarada tomassem
conhecimento do programado para o dia seguinte. Camisas negras em Roma, camisas
verdes em Murundu.
Meia hora antes do jogo,
o rádio já estava ligado e todos os lugares ocupados, com Zetinho na fileira de
trás. A um aceno do farmacêutico, todos se levantaram para cantar o Hino
Nacional. O "Anauê!" puxado por seu Donizetti foi ouvido. Mãos no
peito, os retorcidos versos do hino iam sendo cantados quando os degraus de
madeira rangeram.
-
Quem pode ser, – se perguntou seu Donizetti, – se todos os convidados já estão aqui? Será
que a mulher abriu a porta?
Em meio a essas
indagações, os versos “Dos filhos deste solo és
mãe, gentil, Pátria amada, Brasil!” foram cantados também por Gregório e
seu companheiro de andanças de trabalho e política, que acabavam de chegar.
Pediram, então, licença ao dono da casa para ouvir o jogo. Seu Donizetti se
segurou para não expulsá-los dali, daquele ambiente particular, prestes a viver
tão grande momento cívico-esportivo.
Cheirando confusão no
ar, o faro do farmacêutico não estava errado. Os dois ali torciam pela Hungria;
as camisas que vestiam por baixo eram vermelhas.
***
Durante o jogo, o
ambiente se manteve dentro dos padrões de educação dos ouvintes. Que a Itália
fosse a vencedora, como foi pelo escore de
4 a
2, isso já era esperado por quase todos. Hungria? muitos nem sabiam que diabo de país era esse
e muito menos onde ficava.
O que ninguém, no
entanto, soube contar direito, foi como começou o rififi, como os
franceses chamariam a confusão se tivessem tomado conhecimento do ocorrido na
Vila de Murundu, logo após o apito final do jogo. Ninguém sabia de quem partira
a primeira ofensa, o primeiro puxão de gravata, o primeiro empurrão, o soco
inicial. Na sala da casa de seu Donizetti formou-se, ao redor das duas camisas
vermelhas, um bolo de homens que gritava e lutava, armado com os pés das mesas
e cadeiras já destruídas. Mas para surpresa de todos, na luta Gregório e seu
companheiro não estavam sozinhos. Três ouvintes a eles se uniram. Os descarados
não eram nem um pouquinho integralista; as camisas verdes, meros disfarces para
ter acesso à casa do farmacêutico, ouvir a irradiação dos jogos tranquilamente.
Fúria aumentada, durante a luta o fio que durante anos sustentara o retrato do
avô italiano, lentamente comido pela ferrugem do prego, acabou de rebentar, o
retrato caiu e a moldura e o vidro partiram-se. Já havia gargantas roucas,
olhos roxos, roupas rasgadas, homens berrando seu ódio político-esportivo. À porta, as mulheres da casa, apertadas num
grupinho assustado, não tinham coragem de se aproximar.
Até que um estrondo
maior abafou todos os outros sons e os contendores, ofegantes, se aquietaram
assustados: o pesado e enorme rádio caíra junto com sua estante, cacos de
válvulas juncando o assoalho, fios repontando para todos os lados.
O mais estranho, porém, e que
estarreceu a todos, foram os dois bracinhos vestidos de verde, visíveis sob os
restos do aparelho e da estante onde ele era colocado. Silenciosos, incapazes
de entender o que viam, ficaram ali olhando apatetados o lento filete vermelho
que começava a escorrer sob os restos do rádio, ainda abraçado protetoramente
por duas brancas e magras mãozinhas.
Divulgação Cultural
Divulgação Cultural
(Clique na imagem para ampliar)
quarta-feira, 19 de junho de 2013
sexta-feira, 10 de maio de 2013
"Pseudonímica e comunicação indireta na obra de Kierkegaard", por R. S. Kahlmeyer-Mertens (Conferência por ocasião do bicentenário de Kierkegaard).
“Que é um poeta? Um ser
humano infeliz que encerra em seu coração profundos tormentos, porém seus
lábios são formados de tal modo que quando os suspiros e os gritos fluem por sobre
eles, ressoam como uma linda música. Com ele acontece o que ocorria aos
infelizes que eram torturados demoradamente, com fogo lento, no boi de Falaris,
e cujos gritos não podiam alcançar os ouvidos do tirano para não assustá-lo; a
este os gritos soavam como uma doce música. E os homens se reúnem em multidão
ao redor do poeta e lhe dizem: Vamos, canta de novo, quer dizer, tomara que
novos sofrimentos martirizem tua alma, e Oxalá teus lábios continuem sempre
formados como até agora; pois o grito apenas nos assustaria, mas a música, esta
sim é deliciosa. E os críticos se chegam e falam: Assim está correto, é assim
que deve ser, de acordo com as regras da Estética. Ora, dá para compreender, um
crítico de arte é exatamente igual a um poeta, só que não tem os tormentos no
coração e nenhuma música nos lábios. Olha, por isso eu prefiro ser um pastor de
porcos na Amagerbro e ser compreendido por eles do que ser poeta e ser
incompreendido pelos homens”. (KIERKEGAARD,
S. A. Diapsalmata. In: Either/Or. Princeton: Princeton University
Press,1953, p. 15)
Venha conhecer um pouco
mais da vida e obra do multifacético Søren Kierkegaard:
sábado, 13 de abril de 2013
terça-feira, 19 de março de 2013
Renato Augusto está de volta em nova obra
Confira a matéria em seu sítio original:
Roberto Santos
Sensível, autor escreve para corações doces
“Quanto tempo perdido/ sem perceber que o sol/ desmaia pétalas de imaginação”. (pág. 37)
...haja, ainda, partículas de sol. Renato Augusto Farias de Carvalho. Nitpress Editora. 176 páginas. R$ 35.
A antiquíssima voz de Diógenes — em Na Vida de Alexandre, de Plutarco — exclamou: “Sai um pouco de entre mim e o sol”. Exatamente o que faz Renato Augusto neste seu novo livro, a vocalizar: “Não fora a força da poesia/ e a coragem do poeta,/ o que seria desse sol de rebeldia?”. Ou, ainda, com flama solar: “Comprei lupa nova,/ água fresca de colônia/ e um pouco de sol/ à mesa de cabeceira”.
Em mistura de ficção e realidade, o autor repete a velha tradição dos românticos ingleses e alemães — a união da poesia e da prosa. Aparentemente separadas no livro, com 83 poemas (em “tons de claridade”, ou como “luares”) e 26 “quase crônicas”. Mas, como indica Sonia Peçanha, no “Prefácio”, “Renato é hábil alquimista da palavra”, razão por que se impõe o registro de Roberto Kahlmeyer-Mertens, na “Orelha”: “Como soa uma tal lira? Para saber, basta abrir o presente livro (seria pouco chama-lo só de livro) e entregar-se à prosa e à poesia de Renato Augusto Farias de Carvalho”.
Em iluminada linguagem, aqui e ali, haja ainda partículas de sol, que, até diminuídas, tocam o livro de Renato: “O passarinho cochilava ternuras/ enquanto o sol amortecido/ pressentia luares”. E que adiante prossegue: “O ofício do poema/ é esquecer as rimas/ em busca desse arco-íris de luz, / possível regaço de juntarmos as mãos.” Mais além, em três versos, homenagem consciente a uma poetisa e preito inconsciente ao poeta Angelo Longo: “Olho o barranco/ e repito Adélia Prado: “ / “o campo santo é estrelado de cruzes”.
A volta à meninice do poeta: “Sou filho do Amazonas livre”; “Minha cidade não tinha trem/ Tinha cais”(Manaus). São muitas as viagens ensolaradas de Renato pelo mundo, repletas de lembranças de ambientes e pessoas, principalmente em suas “Quase crônicas” (uma delas de obrigatória leitura: “Férias”). E “Josias” é exemplo de uma triste realidade em nosso país.
Também há o retrato falado de uma Clarice, empregada e integrante da família, que é pura poesia, repleta de saudade.
O FLUMINENSE
...haja, ainda, partículas de sol. Renato Augusto Farias de Carvalho. Nitpress Editora. 176 páginas. R$ 35.
A antiquíssima voz de Diógenes — em Na Vida de Alexandre, de Plutarco — exclamou: “Sai um pouco de entre mim e o sol”. Exatamente o que faz Renato Augusto neste seu novo livro, a vocalizar: “Não fora a força da poesia/ e a coragem do poeta,/ o que seria desse sol de rebeldia?”. Ou, ainda, com flama solar: “Comprei lupa nova,/ água fresca de colônia/ e um pouco de sol/ à mesa de cabeceira”.
Em mistura de ficção e realidade, o autor repete a velha tradição dos românticos ingleses e alemães — a união da poesia e da prosa. Aparentemente separadas no livro, com 83 poemas (em “tons de claridade”, ou como “luares”) e 26 “quase crônicas”. Mas, como indica Sonia Peçanha, no “Prefácio”, “Renato é hábil alquimista da palavra”, razão por que se impõe o registro de Roberto Kahlmeyer-Mertens, na “Orelha”: “Como soa uma tal lira? Para saber, basta abrir o presente livro (seria pouco chama-lo só de livro) e entregar-se à prosa e à poesia de Renato Augusto Farias de Carvalho”.
Em iluminada linguagem, aqui e ali, haja ainda partículas de sol, que, até diminuídas, tocam o livro de Renato: “O passarinho cochilava ternuras/ enquanto o sol amortecido/ pressentia luares”. E que adiante prossegue: “O ofício do poema/ é esquecer as rimas/ em busca desse arco-íris de luz, / possível regaço de juntarmos as mãos.” Mais além, em três versos, homenagem consciente a uma poetisa e preito inconsciente ao poeta Angelo Longo: “Olho o barranco/ e repito Adélia Prado: “ / “o campo santo é estrelado de cruzes”.
A volta à meninice do poeta: “Sou filho do Amazonas livre”; “Minha cidade não tinha trem/ Tinha cais”(Manaus). São muitas as viagens ensolaradas de Renato pelo mundo, repletas de lembranças de ambientes e pessoas, principalmente em suas “Quase crônicas” (uma delas de obrigatória leitura: “Férias”). E “Josias” é exemplo de uma triste realidade em nosso país.
Também há o retrato falado de uma Clarice, empregada e integrante da família, que é pura poesia, repleta de saudade.
O FLUMINENSE
sexta-feira, 8 de março de 2013
Niterói comemorará na Bienal do Livro de 2013 o centenário de livro da Roda do Café Paris
O ambiente dos cafés da Niterói do início do século XX
era terreno fértil à literatura de Lili Leitão e Sylvio Figueiredo
Sonetos é uma pequena plaquete
publicada por Sylvio Figueiredo e Luiz Leitão no ano de 1913. Em 2013 (ano de
seu centenário), esta lendária obra - que já peça de coleção - receberá uma
segunda edição, comemorativa.
O projeto de resgate do legado da
Roda do Café Paris (movimento literário do início do século XX e que está na
gênese da literatura niteroiense) é empreendido desde 2008. Naquela ocasião,
publicou-se uma segunda edição, crítica, da obra Vida apertada, de Luiz Antônio Gondim Leitão (o afamado Lili
Leitão). Embora esta obra não tenha
recebido a atenção esperada de quem mais esperaríamos atenção (os ditos
“literatos” de Niterói), é certo que ela cumpriu bem seu papel,
frutificando na forma de uma caprichosa exposição permanente sobre o Café Paris
na Biblioteca Pública de Niterói e fomentando pesquisas sobre os escritores que
frequentavam aquele ciclo literoboêmio entre as décadas de 1910-1930
Com organização de Roberto
Kahlmeyer-Mertens (assim como também foi Vida
apertada), colaborações de Emmanuel Macedo Soares, Luiz Antonio Barros e
Francisco Cunha e Silva Filho, o lançamento do centenário livro de Sonetos de Figueiredo & Leitão,
conta também com a aleluia de Luiz Augusto Erthal, editor da Nitpress que, comprometido com este projeto, e com outros
ligados ao resgate deste importante capítulo da história literária fluminense,
promete o lançamento para a Bienal de 2013.
Além de textos inéditos sobre aquela
escola literária, e do texto original em edição fac-similada, tal obra traz
aquele que talvez seja o mais substancial estudo dedicado à Roda do Café Paris.
Trata-se do distinto ensaio do doutor em literatura brasileira Prof. Cunha e
Silva Filho. Um extrato substancial deste escrito é o que se vê na postagem de
hoje:
Conheçam a Biblioteca Pública de Niterói - BPN
Os poetas Sylvio Figueiredo e Lili Leitão: epígonos, sim, mas nem tanto (Veja o texto em seu sítio original)
Tinham apenas vinte e dois anos e vinte e três
anos, respectivamente, Sylvio Figueiredo e Lili Leitão quando publicaram, em
1913, pela Livraria Jacintho Silva, a obra Sonetos, reunindo, na
primeira parte, vinte sonetos do primeiro e, na segunda parte, também vinte
sonetos do segundo. Na capa da obra,os nomes dos dois poetas aparecem naquela
ordem acima nomeada. No corpo do livro, os sonetos de Sylvio Figueiredo não
apresentam títulos. São apenas indicados por algarismos romanos. De I a XX; na
segunda parte, separada da primeira apenas com a indicação “Sonetos”, estão
reunidos os poemas de Lili Leitão, todos exibindo títulos e, na maioria,
dedicados a alguém do convívio ou amizade do autor.
Sylvio Figueiredo e Lili Leitão são
intelectuais que tomaram parte do festejado grupo de frequentadores e boêmios da
conhecida Roda do Café Paris – locus de encontro noturno da
vida intelectual de escritores, artistas e jornalistas do velho Centro de
Niterói, cidade que já foi capital do Rio de Janeiro e, agora, é apenas um
município importante e com vida cultural intensa. A Roda do Café Paris
compreendia o Hotel, Restaurante e Café Paris, conforme as informações do
historiador Wanderlino Teixeira Leite Netto.[1] A Roda teve duração de, pelo
menos, três décadas, visto que só acabou depois de um incêndio, em 1933, que se
alastrou até atingir as proximidades do local em que os concorridos encontros se
realizavam. Entretanto, em menos de dez anos, com a demolição de prédios no
entorno e com a abertura da Avenida Amaral Peixoto, a famosa Roda deixou de
existir.
À primeira vista, o conjunto de poemas oferece
alguma confusão de autoria pra o leitor, caso não fosse este orientado pelas
indicações de alguns sonetos republicados na obra humorísitco-jocosa de Lili
Leitão, Vida apertada (1923) já referida na primeira nota de rodapé deste
estudo, ou por outras pistas informativas colhidas em obras de estudiosos deste
admirável escritor, comediógrafo e exímio improvisador nascido em Niterói.
Sabe-se que a breve coletânea Sonetos não foi
bem recebida por alguma crítica da época. Entretanto, isso não é motivo bastante
sólido para que se revisite esta obra e, aos olhos de hoje, se possa reavaliá-la
sob novas perspectivas de interpretação e de julgamento crítico.
Alguém já afirmou que a literatura não se forma
apenas de gênios, de grandes talentos. Escritores chamados menores muito têm a
ensinar aos críticos e historiadores literários, até mesmo no processo de
avaliação crítica, no estudo comparativo entre autores, os menores, os que os
ingleses chamam de minors, para diferenciar dos majors, dos maiores, são balizas
necessárias à avaliação e, por conseguinte, jamais podem ser subestimados nem
muito menos alijados das historiografia literária. Outro dado contraproducente
na avaliação dos menores bem poderia estar associado ao critério subjetivo e,
portanto, precário, de algum historiador ou crítico, ou seja, o que é menor para
alguns, não o é para outros. As nossas histórias literárias, mesmo as mais
qualificadas, têm com frequência incidido neste erro de classificação valorativa
de autores, quando não de crassa omissão de escritores com reconhecido valor
literário. Poderia citar alguns exemplos dessa deficiência historiográfica.
Confio, porém, na argúcia do estudioso e pesquisador para confirmar ele próprio
esse fato.
Luis Figueiredo e Lili Leitão, no primeiro
decênio do século 20, imagino, eram amigos e cúmplices nas incertezas da vida
literária e da própria sobrevivência Um dia, decidem editar, num mesmo volume,
os Sonetos de 1913. Culturalmente, seu tempo se situa na chamada Belle Époque, a
qual, na Europa, terminaria com a Guerra de 1914 e, no Brasil, se estenderia
além de 1930.
Os dois poetas niteroienses se afirmariam, nos
seus redutos provinciais, num período de grande transformações nas artes
ocidentais, com o surgimento das vanguardas e com todos os seus desdobramentos
em outros países, inclusive no Brasil. Literariamente, aqui no país, passávamos
por um tempo literário de coexistência de estilos epigônicos, como o
Neo-Romantismo, Neo-Simbolismo, Neo-Parnasianismo e Neo-Simbolismo. O quadro de
nossa produção literária era, pois, de multiplicidade de formas e temas, ou
melhor, de sincretismo nas letras, na poesia, sobretudo.
Sílvio Figueiredo e Lili Leitão, com as suas
obras, não chegaram, como na maior parte de autores da província, em qualquer
estado brasileiro, com raras exceções, a níveis de aceitação das maiores figuras
de escritores que, no Rio de Janeiro, na Metrópole, conseguiram a fama e o
reconhecimento a ponto de, nas histórias literárias, serem citados e
comentados.
Da mesma forma que grandes nomes de escritores
provincianos não ultrapassaram, em sua maioria, os limites da província natal,
os exemplos de Sylvio Figueiredo e Lili Leitão praticamente só se firmaram em
Niterói e nas suas rodas literárias e de grupos de boêmios noctívagos
itinerantes, de talento sim, mas não a ponto de ganhar notoriedade nacional ou
pelo menos nesta caixa de ressonância que sempre foi a cidade do Rio de Janeiro,
na época, capital da República Velha (1889-1930).
Isso, contudo, não me parece nenhum desdouro às
figuras dos dois escritores objetos dessa exposição.O sentido deste estudo, ao
contrário, é o de recuperar para o leitor atual uma parcela da produção desses
autores e dela extrair o que de permanente ou de original neles se pode buscar
na oportunidade em que intelectuais nascidos ou radicados na “Cidade Sorriso”
estão empreendendo uma justa retomada da obra um tanto esquecida de dois autores
que sem dúvida em muito ajudaram a formar o espólio da produção literária e
artística de Niterói e do estado fluminense.
Um passo nessa direção já foi dado com a
publicação recente, segunda edição (2009) da obra Vida apertada de Lili Leitão
pela Editora Nitpress, num esforço meritório e oportuno do organizador da edição
crítica, o professor e ensaísta Roberto Karhlmeyer-Mertens,[2] que reuniu
sonetos humorísticos de Lili Leitão num volume único contendo – diria quase
exaustivamente - o que de melhor se poderia recolher da fortuna crítica do poeta
com importantes trabalhos de cunho não acadêmico e ensaios de especialistas e
críticos de literatura, a par de contar ainda com um indispensável Glossário
fundamentado no léxico de Vida apertada criteriosamente preparado pelo professor
e estudioso da lexicografia, Luiz Antonio Barros, com uma cópia fac-similar da
obra, notas do organizador, cronologia do poeta, bibliografia ativa e passiva do
poeta e índice onomástico e analítico.
Não é meu intuito desenvolver neste trabalho um
estudo comparativo das poéticas de Luis Figueiredo e Lili Leitão. Pretendo antes
examinar alguns tópicos de natureza temática e analítica de tal sorte que possam
porventura lançar algumas luzes sobre o universo poético de ambos os autores.
Para isso, a minha linha de pensamento abrangerá, separadamente, cada um deles
sem, todavia, negligenciar, quando me parecer necessário, algum cotejo entre
eles em aspectos formais ou temáticos em que um se avizinhe do outro.
Poetas contemporâneos como são, não seria
gratuita a circunstância de que cada um escolhesse o soneto. A meu ver, a
condição comum de amizade, de ambiente espiritual e intelectual (Sylvio
Figueiredo era também chargista, poeta satírico, jornalista) de que partilhavam
entre si e a decisão de trabalharem em conjunto num volume único, ou até mesmo
razões financeiras, possam explicar ou dar alguma pista para a concretização do
lançamento desta pequena obra nos idos de 1913.
A POESIA DE SYLVIO FIGUEIREDO
Lendo e relendo os vinte sonetos de Sylvio
Figueiredo, o analista, pouco a pouco, começa a captar alguns ângulos que lhe
aguçam a atenção, aspectos que podem apontar para confrontos com níveis de
tratamento de temas e procedimentos formais além ou aquém do que o pesquisador
teria como expectativa.
No caso de Sylvio Figueiredo, pelo menos nos
poemas que dele conheço não seria demérito afirmar que ele pouco se
diferenciaria de tantos poetas de seu tempo no que tange ao tratamento do tema
do amor e das estratégias de composição de seu lirismo na fatura do poema de
forma fixa. . Nos aspectos e cuidados técnicos de domínio da métrica e da
semântica que envolve os poemas, com segurança se pode adiantar ser ele, ainda
com apenas vinte e dois anos, um artista do verso que já demonstra familiaridade
com os elementos intrínsecos da criação literária, com a economia do verso e
sobretudo com um raro talento rítmico, ainda que a significação temática se
mostre um tanto imatura na arquitetura geral dos poemas.
Como reforço a essa reflexão me vem um pormenor
relativo à formação cultural de Sylvio Figueiredo. Segundo informa o ensaísta
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens[3] o poeta era pessoa ilustrada, conhecedor de
alguns idiomas modernos, que lia no original. Poetas de renome para leitores de
sua época teriam sido Baudelaire, Leconte de Lisle, José Maria Heredia, entre
outros. Outro fato que me parece útil assinalar foi que Sylvio Figueiredo
interrompeu seus planos de escritor, pois não foi um autor de um livro só,
porquanto à sua atividade n a imprensa, ainda escreveu em prosa: Contos que
a vida escreve (1931), Quixote (1934) e Passos na areia
(1962); em poesia: legou ainda Forja e Atlantes (1934), provavelmente
escritas na década de 1930.
Seu falecimento se deu em 1972, quer dizer, não
deixou, ao que tudo indica, uma obra extensa, mais indicando que, ou deixou de
publicar regularmente, ou o que tenha escrito não tenha vindo ao conhecimento do
público, i.e., não se publicou. Seria este ponto obscuro de sua biografia mais
uma oportunidade de pesquisa a ser desenvolvida pelo historiador literário
apreciador de sua produção.
os vinte sonetos de Sylvio Figueiredo, posso
distinguir duas principais vertentes temáticas: a amorosa e a
jocoso-heterodoxa.. Optamos por denominar à segunda vertente jocoso-heterodoxa
por reunir esta temas com predominância jocosa e outros temas que, embora
falando ou não do amor em contexto humorístico, representassem traços de
modernidade conexionados com outros modos de construção poética indicando
desvios do tradicionalismo literário e utilizando recursos de composição como os
metapoéticos, os metalinguísticos, a paródia, a apropriação de textos
não-poéticos A primeira abrange 11 sonetos: I, III, VII, VIII, IX, X, XI, XII,
XIII, XIV e XIX; a segunda, compõe-se de 9 sonetos: II, IV, V, VI, XIV, XV,
XVII, XVIII e XX.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE
AMOROSA
Como se vê, a primeira vertente tem no conjunto
de sonetos de Sylvio Figueiredo, uma leve superioridade numérica sobre a
segunda. Quer dizer, a exploração do tema do amor se multiplica em motivos
combinados a outros sentimentos pessoais neles imbricados, destacando-se: a
sensualidade feminina (soneto I), a distância física do amor (soneto III) o amor
sensual ou até mesmo com traços eróticos (soneto VII), a efemeridade física da
beleza da amada (soneto VIII), sensualismo amoroso ( soneto IX), o amor não
consumado (soneto XI), da passagem do amor sonhado à posse do amor (X), a
natureza em descompasso com o sentimento do amor desiludido (soneto XII), da
incerteza do amor ( soneto XIII), o desencontro amoroso (soneto XIV) o
sentimento do amor ausente ou o receio da perda do amor (soneto XIX).
Obviamente, todas as nuances amorosas de seu
estro fazem largamente coro com outras vozes poéticas, notadamente dos estilos
literários românticos, parnasianos e até mesmo simbolistas.Em outras palavras, o
lirismo que perpassa os sonetos de Sylvio Figueiredo, segundo atrás sugeri,
mostra-se caudatário dessa mistura de estilos literários, desse sincretismo, o
qual, à altura da produção do autor, final do século 19 e início do século 20,
ou seja, já em fase de epigonismo, amolda-se ao conservadorismo literário do
Romantismo, Parnasianismo e Simbolismo onde pontificavam grandes nomes da poesia
brasileira.
Sem ostentar o nível alcançado por um Castro
Alves, um Bilac, um Alberto de Oliveira, um Raimundo Correia, um Cruz e Sousa,
Sylvio Figueiredo de certa maneira e consoante seu poder de adaptação, de
influência, de mimetismo, inclusive por via direta dos poetas portugueses e, por
via indireta, das leituras de bons poetas franceses muito lidos no original ou
em traduções no país de certa forma procurou obter o máximo daquela adaptação da
tradição do cânone.. Este espírito de imitação no âmbito literário se estenderia
a padrões de modas e de cultura francesa, muito comuns durante a Belle
Époque no Rio de Janeiro, Metrópole cultural do país, que ditava, ou
melhor, irradiava essa submissão cultural a outras cidades brasileiras.Não é
gratuito Niterói dar nomes franceses a restaurantes como Café Paris, ou
cinemas com nomes franceses como “Pathé” e mesmo francesismos no corpo de poemas
tanto de Sylvio Figueiredo quanto de Lili Leitão.
Mimetizando a tradição do cânone poético
ocidental, Sylvio Figueiredo não deixou de levar em conta alguns elementos
estruturais da poética ocidental: a dicção, a semântica do texto, o aparato ou
solenidade dos versos, temas de extração clássica, o ritmo, a musicalidade, o
apuro estrófico. A despeito de existir, em alguns sonetos, a posição ideológica
do “eu lírico” de fundo romântico, a moldura dos sonetos, em geral, inclina-se
para a forma parnasiana.
Posto tenha o poeta atuado nessa fase de
cruzamentos ou coexistência de estilos e, segundo tenho reiterado, em tempo de
epigonismo, até mesmo pela referência da forma poética empregada, o soneto,
muito praticado por parnasianos, não vejo que essa preferência por aquela forma
fixa seja necessariamente uma maneira de o poeta rebelar-se(falando-se aqui não
só de Sylvio mas também de Lili Leitão) com os novos ismos trazidos pelas
vanguardas europeias e pelos primeiros avanços do Modernismo brasileiro que se
avizinhava.
O fato é que tanto Sylvio Figueiredo quanto
Lili Leitão, no primeiro decênio do século passado, já haviam praticamente se
formado no domínio das letras, ou seja, nessa fase de transição da poesia
brasileira. Esta questão faz parte do âmbito da sociologia da literatura,
acrescida da circunstância de que ambos os poetas, posto que vivendo perto da
Metrópole e separados apenas pela Baía da Guanabara, não se arredaram da vida
boêmia e provinciana de Niterói.
Pesquisas desse lado biográfico do poeta Sylvio
- e o mesmo serviria para Lili Leitão -, contribuiriam muito para estabelecer
nexos entre a vida literária de ambos e, portanto, em parte ainda seriam bem
úteis como “elementos extrínsecos” à visão mais ampla da poesia dos dois
autores. Com poucas exceções, este fenômeno de comportamento cultural de
intelectuais da província se me afigura muito ocorrente em outros estados
brasileiros. Outro fator determinante provavelmente seria a condição social
modesta dos dois.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE
JOCOSO-HETERODOXA
Conquanto a dicção da vertente amorosa se pauta
pela nobreza de vocábulos raros, na linha do sermo nobilis da palavra
aristocratizante como moeda corrente dos estilos parnasianos, simbolista ou
mesmo românticos, a vertente jocosa satírica, irônica ou humorista se permeia
pelo rebaixamento do sermo vulgaris, do antilirismo – sinal de modernidade -
como elemento fundante da poiesia.
Os sonetos dessa vertente desssacralizam, por
conseguinte, qualquer pretensão de seriedade em lidar com a tradição da vertente
amorosa, na qual a luta do “eu lírico” canta a família às voltas com problemas
de natureza financeira, ressaltando-se, a par disso, a novidade introduzida pela
mudança, a que já aludi, do aspecto de oralidade, aspecto este que equivale a um
tour de force em relação ao conservadorismo literário.
Destarte, podem-se apontar, no soneto II,
vocábulos como “catadura”, “berreiro”, “descompostura”, “ferve”, os sintagmas,”
“vida torta, ” “tempo quente”, “pobre diabo”, além da nomeação de um personagem
visivelmente de extração popular, Candido Barreiro . Esta ausência de um
ambiente físico e humano interagindo com uma subjetividade e evasão romântica
contrasta radicalmente com a atmosfera lúdica da comédia à moda de um Artur de
Azevedo, de um Martins Pena. Ou seja, a poesia satírica se aproxima dos códigos
prosísticos da representação dramático-jocosa:
[...]
Para mais aumentar tal desventura,
briga a mulher porque falta dinheiro
e lhe permite uma descompostura
se não for paga a conta do padeiro.[4]
[...]
No soneto IV, de forma análoga, os desencontros
de uma família são objeto do “eu lírico” que, distanciado do quadro retratado,
expõe as mazelas de um personagem protagonizando uma situação existencial
grotesca devido ao vício da bebida, enquanto, no lar abandonado por ele,
“choram, filha e esposa na miséria.” O elemento do “enredo”, também manifesto no
grotesco do vocabulário do poema reitera a ruptura entre o léxico elevado da
primeira vertente em comparação com a segunda – traço também de modernidade
lírica - nos sintagmas “boca suja”, “testa negra”, “desgraçado aborto”, nos
lexemas “adunca”, “asquerosa”, “imundo”, “miserável, “torto”.” Este campo
semântico passa a ser uma recorrência de uma realidade física e humana
degradante, valendo como ressonância - poder-se-ia aventar - do espaço poético
de um Augusto dos Anjos.
A poesia de Sylvio Figueiredo, a esta altura de
amostragem e comentários, já me permite afirmar ter ela ultrapassado os limites
do mero epigonismo para uma fase aberta a formas de realizações artísticas
justificando-se o título deste estudo e a qualidade do verso do poeta que,
absolutamente, não se restringindo apenas a formas estagnadas do sistema
literário, contudo abriu-se a novas formulações de sua poética.
O soneto V não se desvia da verve do conjunto
de poemas da segunda vertente.
O poema se realiza pela desconstrução do rival
por parte do “eu-lírico” em questões amorosas. Em consequência, o soneto se
estrutura à base da demolição física e moral do adversário. Entretanto, logo no
1º quarteto, o retrato físico da jovem da vizinhança, motivo da rivalidade
amorosa, embora seja objeto de admiração do “eu-lírico”, ao mesmo tempo lhe é
objeto de critica. Com ela não existe nenhuma possibilidade aparente de uma
aproximação maior. O objeto de desejo amorosos se frustra desde o início do
poema, sem que exista nenhuma chance de conquista, tal como faz notar a citação
abaixo:
[...]
Eu, que no maior não tenho tal ventura,
invejo a esse magano sem decoro,
que o amor possui de tão gentil criatura.
A jovem namora um homem que, aos olhos do
“eu-lírico”, não preenche dotes físicos ou morais. Sua descrição e corrosiva: é
“gordo”, “paspalhão”, boçal, “magano”, sem modos. Isto é, o pretendente da
mocinha bem criada, porquanto seu status social se indicia pelo adjetivo “chic”,
francesismo muito usual na poesia do tempo de Sylvio Figueiredo, tempo de forte
influência da moda, cultura e convívio com a língua francesa.
O lexema “magano” salta logo à vista pelo
historicismo de que se impregna desde a época colonial através da sátira ferina
e debochada de Gregório de Matos:[5]
[..]
Que os Brasileiros são bestas,
E estarão a trabalhar
Toda a vida por manterem
Maganos de Portugal.
Ora, “magano” instaura no soneto um sentido de
falta de ética, conducente a uma existência vivida sob o signo da malandragem,
do querer levar vantagem. No entanto, um pormenor me chama a atenção logo no 1º
quarteto. Na descrição dos predicados estéticos e físicos da jovem moradora da
“avenida mais chic da cidade”, jovem “linda”, ela simultaneamente é aquinhoada
com alguns epítetos nada moralmente abonadores: uma moça “viva”, “astuta”,
“repleta de maldade”” e irrequieta, i.e., “não descansa” a “cabecinha”.
Abre-se aí um espaço no poema em que uma camada
submersa vem à superfície e lhe dá melhor potencial analítico: o mundo das
ações, pensamentos e valores internos do poema surpreende o leitor em termos de
realidade e aparência, verdade e mentira, e esse espaço do subtexto não acaba só
nesta gama de desvelamentos ou virtualidades Ao lado do tema do amor frustrado,
esboça-se um quadro coreográfico nos domínios do universo da malandragem entre o
magano e a mocinha esperta. Ambos possuem elementos para terçar armas a fim de
levar a cabo a sedução pela picardia:
[...]
Tem namorado: um paspalhão de pança,
que lhe fala, feliz, muito à vontade
e que os ouvidos seus mimosos cansa
com farta dose de boçalidade.
A malandragem da mocinha pode resultar
vitoriosa e a aparência ou realidade de um espertalhão sem modos e balofo pode
dar com os burros nágua.
Consequentemente, o eu lírico ao lamentar a
carência de sorte e demonstrar inveja pode perder no enganoso jogo do amor, mas
bem poderia também lamentar se a sua sorte no amor fosse a de um “cretino”. Ou
seja, aparentemente formam um par perfeito de malandrice cujo desfecho pode ter
sucesso ou não. Tudo depende de quem seja mais matreiro.
A qualidade do soneto reside justamente neste
cenário de comédia e de humor permitindo ao leitor uma oportunidade de
divertir-se com o riso e o ridículo da comédia humana, no que diz respeito ao
tema do amor, bem dentro daquele velho preceito de Sêneca: Castigat ridendo
mores (“Pelo riso corrigem-se os costumes”).
O soneto descortina um veio rico da literatura
brasileira, o tema da malandragem, o qual remonta aos poemas satíricos de
Gregório de Mattos e atravessa sucessivamente uma linha que já tornou tradição,
muito mais na ficção do que na poesia, e que se fez contínua através de Manuel
Antonio de Almeida, Machado de Assis, Lima Barreto, Marques Rebelo e deságua
ainda com força em vários autores brasileiros contemporâneos. Os mecanismos
psicológicos e da escrita do humorismo, da jocosidade, próprios da comédia,
desencadeiam a derrisão, põem a nu as vilanias, as fraquezas da alma humana,
i.e., fazem o homem rir-se de si mesmos.
No soneto VI, me deparo com um curioso exemplo
de um poeta que, ao procurar elaborar um soneto de estofo romântico, onde o
lirismo possa ser a tônica, termina por “abandonar” o projeto poético, saindo,
assim, da fantasia do universo das musas para o ramerrão pragmático da vida
“real”, quer dizer, a pena com que comporia o poema, o papel, a inspiração
cederam lugar a uma ação prosaica meramente mecânica : fazer as contas de
despesas.
O soneto em questão me leva a interpretá-lo
como uma possível sátira às formas de composição da tradição literária, do
escrever bem uma peça poética de feição romântica. Fisicamente, um poema se
escreveu. Porém, como realidade abstrata, como substância, i.e., no plano das
ideias, o soneto não se realizou. Aqui se tocam as questões teóricas e complexas
entre a realização física do poema e a da poesia. Compreende-se aí a “luta pela
expressão” entre a vontade de criar e a impossibilidade de fazê-lo em
decorrência da ausência do “fado”, da “inspiração - questão de monta na poesia
do Romantismo Ocidental. Tem–se nesse soneto aquela situação, que é um dado
metapoético no qual o autor afirma a impossibilidade da realização de um poema
quando, ironicamente, o poema se concretiza na escrita, na linha do verso Esse
tópico da criação literária é bem recorrente entre poetas:
[...]
Na confusão dos ritmos me abismo,
Busco das rimas o alvo bando alado,
Nada consigo. Ponho a pena ao lado
E eis que de lado ponho o romantismo.
No soneto XIV, há uma hilariante situação
pessoal-amorosa na qual o “eu-lírico”, relando-se um tímido diante da mulher
amada, depois de um grande esforço, reúne força e coragem para lhe dar provas de
todo o seu sentimento. No entanto, no final do último terceto, a chave de ouro
lhe reserva uma surpresa, funcionando então como um exemplo de bathos,
um recurso poético da teoria literária que, na definição de Terry Eagleton,
seria “um movimento do sublime ao lugar-comum ou ridículo” [6]
- Vou demonstrar-te o afeto que me empolga!
–
porém, sorrindo com o sorriso louco,
ela me disse: - Ó filho, dá uma folga! –
Os demais sonetos do autor, XV, XVII, XVIII e
XX reiteram esta linha temática introduzindo novas realidades
comunicativo-poéticas, não somente no conteúdo como também na expressão
literária.
O soneto XV tipifica outra dimensão jocosa, em
verso que relatam a história de um convite para aniversário feito ao “eu lírico”
que,, entretanto, não pode ser atendido visto que a ele falta a roupa adequada
ao evento e nem a possibilidade de comprar uma nova, em razão da “pindaíba” em
que se enreda. É um soneto leve, divertido e que sinaliza para um outro tema que
rondará a produção poético-humorística de Lili Leitão. Verei esse aspecto quando
tratar mais adiante de sua poesia: a falta de dinheiro como elemento constante e
provocador de quase toda a sua obra poética. Da mesma sorte, lexemas nada nobres
da linguagem comum se fazem presentes no poema “bródio, “cuéca”, “candongas” e
expressões proverbiais ou sentenciosas como “... em festa de jacu nhanbu não
entra”, os quais, à semelhança do que ocorre no soneto II, comentado atrás,
reforçam o nível de oralidade de usos de lexemas apoéticos como sinais de
modernidade.
O soneto XVII, o mesmo tom peralta, entre sério
e brincalhão, da perspectiva, é claro, do “eu lírico”, não do receptor,
apresenta um diálogo entre um casal, em descompasso de visões na relação entre
marido e esposa. O poema, de tema ainda bem atual em algumas camadas sociais,
discute a posição machista, patriarcal de um marido que não aceita a
possibilidade de a mulher trabalhar em atividade que, segundo ele, só seria
compatível ao homem. Trabalho esse em “forja”, vestida de calça, atividade
considerada pesada, grosseira, masculina, indigna da mulher e de sua
fragilidade. A arquitetura do poema lembra uma cena teatral, num aparente
monólogo do “eu “lírico” em interlocução com a mulher, indicada pelo dêixis “tu”
Tu, numa forja, por exemplo, à frente
da fornalha! Imagina, ó meu derriço,
pensa bem, anjo meu terno e roliço,
tu, no trabalho da barbuda gente!
Concomitante, há ainda no poema outra questão
associada a mudanças de comportamento das mulheres. A polêmica questão do
“feminismo”. Para o marido, um estultice. Ora, esta questão do preconceito
contra a condição da mulher no trabalho se coloca como bem avançada para a época
da escrita do soneto, início da segunda década do século passado.
Poeta de fase liricamente transitória, conforme
tive oportunidade de acentuar mais de uma vez nesta exposição, Sylvio
Figueiredo, não se furta a artifícios quer na dicção, na temática, no
imaginário, quer nas situações de existência e nos recursos
retórico-métrico-estilísticos já repisados com mais ou com menos sucesso por
seus predecessores ou contemporâneos.
Um desses artifícios que, de resto, não era
comum na poesia simbolista, foi empregado por alguns poetas tais como Severino
de Resende, Marcelo Gama e Da Costa e Silva.[7] No que consistia esta retórica
temática? Diria respeito a poemas tematizando descrições de animais, a exemplo
dos “Poemas da Fauna”, da obra Mistérios (1920) do mencionado Severiano
Resende, com o seu conjunto de poemas descrevendo tipos diversos de animais. O
mesmo fez o piauiense Da Costa e Silva, com seus “Poemas da Fauna”, da obra
Zodíaco (1917) grupo de soneto descritivos nos quais figuram
caranguejo, lagartixa, sapo, cobra, morcego, aranha, besouro, cigarra e
vaga-lume.
A ensaísta Francine Ricieri,[8] em substancioso
prefácio à Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira, recorda que
esses poemas sobre animais bem podem ter sido espelhados em Tristan Corbière, na
obra Les amours jaunes, onde aparece o poema “Le crapau” (“O Sapo”).
Para Ricieri,[9] esse poema foi bastante traduzido para o português,
acrescentando que o poeta baiano Pedro Kilkerry havia até feito uma versão
dele.
No poema “Le crapau”, Corbière refere ao
“sapo,” porém entendendo este como a figura do poeta, da mesma maneira que
Manuel Bandeira,[10] no poema “Os sapos”, do livro Carnaval (1919)
satiriza os parnasianos.
No soneto XVIII, Sylvio Figueiredo retoma uma
figura zoológica – o corvo – assim como Lili Leitão fará com “A coruja” para
descrever tanto a ascensão do animal à “região do silêncio absoluto”, quanto a
sua descida à terra, num contraste de imagens que vão do sentimento de euforia
ao efeito disfórico. Ou seja, do ponto de vista visual, a descida sofre uma
metamorfose de cento e oitenta graus. O corvo, antes descrito em tons de beleza,
sofre uma redução estética qualitativa. Sua figura, agora, ante o olhar do “eu
lírico” reveste-se de deformidades. O que atraía a visão torna-se repulsão. A
“abelha” que, exerce visualmente, dependendo da distância do olhar, uma figura
dupla, passa a ser apenas um animal agourento, une-se ao domínio do
escatológico. Alinha-se, enfim, com laivos satânicos remetendo o leitor a vozes
de alguns poetas malditos, como Baudelaire ( com sua obsessão pela morte) Artur
Rimbaud, na França, Guerra Junqueiro, em Portugal e Augusto dos Anjos, no
Brasil, com o uso de um léxico associado ao estado de putrefação:
[....]
pois, nu passo cadente, em lerdos
empuxões,
caminha, horrendo, lento e lento,
farejando
a delícia da morte e o horror das podridões!
Ao contrário dos poemas da fauna de Da Costa a
e Silva, existe um dado que se distingue neste poeta: a descrição tende à
objetividade parnasiana, ao passo que no soneto de Sylvio Figueiredo o mood
do soneto expressa imagens oscilantes entre a dicção simbolista-abstrata e
a objetividade parnasiana sem descartar , outrossim, impulsos de um “eu
lírico"romântico:
Riscando o azul do céu, tranquilo, o corvo
monta,
Galga, ascende à região do silêncio
absoluto;
E enquanto da terra imensa as belezas sem
conta.
Compare agora com uma quadra de Da Costa e
Silva, extraída do soneto “A cobra”:
Certo ninguém prevê, nem ao menos
suspeita,
Mas esse tronco anoso, ulcerado de galha,
De alguma árvore umbrosa, outrora ao bem
afeita,
Hoje, abrigo do mal, uma cobra agasalha.
No soneto de Sylvio Figueiredo o contraste,
euforia seguida de disforia, a que aludi se torna evidente ante a subida do
pássaro e sua correspondente descida. Romântica. Vejam-se, para comprovação
desse contraste respectivamente evidenciados nos seguintes quartetos:
E a ave sobe e evolui e ergues-se, ousada e
pronta:
lembra uma abelha sobre um terreno ermo e
bruto.
olho-a e a vejo tão linda, o olhar atento e
arguto,
quando penso que cai de fatigada e tonta.
Desce, entanto e é medonha e asquerosa e
nojenta;
causa repulsa e dó se vai, calma,
baixando
e a transformação aos homens apresenta
[...]
É na subida que a visão da natureza toma uma
característica particular: a ave pelos olhos do “eu lírico” não exibe nenhuma
realidade grotesca, disfórica. No soneto esse segmento temporal vai do 1º ao 2º
quarteto. Nesse ponto, a imagem física do corvo, um animal reputado em geral,
repugnante e aziago, anunciador de acontecimentos trágico, é vista até mesmo por
uma ótica impressionista e positivamente, reitero, eufórica, segundo se percebe
claramente no 1º quarteto acima-citado, no qual existe até uma comparação
indireta, ou melhor, uma associação estética de cunho eufêmico.
Ao eu lírico o corvo lembra uma “abelha”. O eu
lírico chega a ponto de exultar-se diante da beleza e das suas qualidades
exaltada em clave romântica. Recorde-se, por outro lado, que nos ”Poemas da
Fauna” de Da Costa e Silva, aquele sentimento em relação ao animal não exprime
uma ideia de ser desprezível ou asqueroso, ao passo que em Sylvio Figueiredo e
Lili Leitão (“A coruja”), a descrição do animal conotas-se de real sentido de
asco. De modo semelhante, não se pode negligenciar o fato de que no universo do
simbolismo, alguns seres, por exemplo, pássaros, insetos etc, expressam
significações ambivalentes, quer dizer, dependendo da cultura, da ética, da
região da Terra, tanto podem definir-se por qualidades positivas, ou do Bem,
como ainda por atributos negativos, ou do Mal. Os lexemas “corvo” e “abelha”
ilustram bem esta questão.[11]
No poema ‘The Raven”( “O Corvo”) de Edgar Allan
Poe, o pássaro ´´ simboliza um anunciador da morte. No soneto de Sylvio
Figueiredo, a ave comporta explicitamente essa mesma acepção de elemento
agourento além de animal devorador de cadáver.A “abelha”, segundo já aludi, na
condição de duplo a partir, é claro, da perspectiva visual-distancial do eu
lírico, afastada, lembra a sua condição de inseto que, por seu turno, sofre a
metamorfose, i.e., retorna à sua configuração original de “corvo”.
O soneto esteticamente valoriza-se pelo poder
de visualização, porquanto, no decorrer da sua descrição, aduz-se com
facilidade, como se víssemos por lentes de alcance gradativo, à semelhança de
uma objetiva: a imagens distanciando-se e as imagens , em seguida, se
aproximando do ponto de observador atento. Segundo o movimento, tem-se uma ou
outra forma do animal.
Provavelmente por essa forma de realização do
soneto é que me vejo compelido a ajuizar pela sua superioridade de técnica e
criatividade.
O soneto XX, não possui a elevação
aristocratizante do verso parnasiano nem as dores e frustrações do amor
romântico, nem tampouco os voos dos nefelibatas. Ao contrário, trata-se de uma
peça leve, de humor em clave menor. Sua leitura, em alguns aspectos, me faz vir
à tona um divertido poema de Lamartine,”Mon habit”” da obra Chansons no qual o
“eu-lirico” se dirige, como se o objeto de atenção fosse uma pessoa querida, a
uma velha casaca, testemunha fiel de muitos fatos e feitos. Da velha casaca não
quer se desfazer de forma alguma, assim como o soneto de Sylvio Figueiredo.
Veja-se, primeiro, em Lamartine em tradução minha considerando apenas os versos
que mais de perto atendem ao cotejo:[12]
[...]
Ó pobre casaca amada, sede-me fiel!
[...]
Bem me recordo, pois, memória boa tenho
Do primeiro dia que te vesti.
Era meu aniversário e, por cúmulo da
glória,
Elogiado foste por meus amigos.
[...]
Prontos estão todos a nos festejar.
Nada de adeus, velho amigo meu. [14]
Agora, coteje-se com os versos de
Figueiredo:
Quando a primeira vez te enverguei, meu
fraque
fiz sucesso na zona e andei de boca em
boca.
Ficou louco por mim muita menina louca,
Tornei-me nos saraus figura de destaque.
[...]
E se te visto, enfim, triste, num
desalento,
Tu, relembrando, acaso, altas glórias
passadas,
Soltas, alegremente, essas abas ao vento!
Se existe certa afinidade em alguns pontos dos
dois poemas, há também diferenças entre os dois autores, o tom soa mais
saudosista com travos românticos próprios do poeta Affonso de Lamartine. O de
Figueiredo, mais se aproxima de um tom farsesco, solto, humorístico,
divertidamente provocativo. Porém, sempre misturando sensações díspares, o “eu
lírico” posa de boêmio conquistador de corações “na zona”, em companhia de seu
velho frack, sempre disponível a outras aventuras ainda que repassadas de
deslocado “desencanto romântico.
O que une ambos os poemas é a louvação do
objeto-fetiche indissociável da vida do seu proprietário e do seu passado. Num,
um casaco; noutro, um frack. Na composição literária, Figueiredo emprega o
soneto; Lamartine, um poema de 16 versos - uma canção - composto de duas
oitavas.
A POESIA DE LILI LEITÃO
Ocupar-me-ei, agora, dos sonetos de Lili Leitão
que, consoante assinalei no estudo de Sylvio Figueiredo, se encontram na segunda
parte da obra Sonetos.
Custa-me imaginar, ante a grande vocação do
humorista, satírico, comediógrafo, repentista, jornalista Lili Leitão que esta
figura de intelectual, superiormente dotada para o humorismo, tenha também
produzido versos sérios, poesia amorosa e de qualidade. De resto, humorismo,
vazado em sólidos conhecimento de versificação, de originalidade de estilo,
domínio da língua portuguesa e, acima de tudo isso, genialmente combinando
poemas humoristas com poemas sérios, principalmente da sua dimensão amorosa,
escritos com perfeição e rara capacidade musical. Seus poemas, lidos em voz
alta, primam pela qualidade rítmica, melódica. Óbvio que não se pode nem deve
negar a superioridade deste autor para a manifestação poético-artística da
irreverência, ironia, farsa, humorismo – virtudes que o tornaram famosos no seu
tempo na Niterói das três primeiras décadas do século passado.
Não entendo tampouco por que Lili Leitão, com
toda a sua posição de liderança entre os amigos intelectuais, residindo tão
perto da Metrópole carioca, não tenha sido voz satírica influente na vida
intelectual carioca nem tenha tido a merecida visibilidade que outros poetas de
verve menos dotados do que ele tiveram. Mistérios da história literária ou
seriam outros motivos inconfessáveis que impediram injustamente que o grande
humorista tivesse popularidade nos círculos intelectuais da cidade de São
Sebastião? Cabe à história literária procurar respostas para estas indagações.
Felizmente a privilegiada veia mordaz – somente
o tempo pode fazer justiça a um escritor - de Lili Leitão agora se vê
consubstanciada na obra Vida apertada sobre cuja edição crítica recente
já me pronunciei na primeira parte deste ensaio.
Diante dessas observações preliminares, ao
refletir analiticamente sobre o legado poético que compõe a segunda parte do
pequeno volume dos Sonetos, pretendo neste trabalho considerar como diretriz
metodológica, duas linhas temáticas diferentes ou seja, divisando duas vertentes
temáticas sobre a poética de Lili Leitão, à semelhança do que fiz com respeito a
Sylvio Figueiredo: a amorosa, cobrindo 11 sonetos e a vertente que, para este
estudo, denominei, à falta de outro termo melhor, jocoso-heterodoxa., sendo esta
constituída de 9 sonetos. Pelo visto, em comparação com a classificação
temático-expressional que adotei para o estudo de Sylvio Figueiredo, deu-se, no
que concerne à divisão temática dupla, perfeita coincidência no quantitativo de
sonetos em ambos os autores. Mera coincidência ou tácito acordo entre os dois
poetas? Por outro lado, sendo um volume organizado a quatro mãos, não seria de
todo impensável que os dois amigos pudessem chegar a esse consenso na seleção e
organização dos Sonetos. Fica a pergunta no ar. Não resta dúvida,
todavia, que a semelhança ou a afinidade sejam instigantes (ou intrigante) ao
pesquisador.
Seguindo o mesmo procedimento da primeira
parte, abordarei primeiro a temática amorosa de Lili Leitão e se não me proponho
agora a analisar exaustivamente, poema por poema, algumas formulações
estético-formais pretendo extrair do pensamento poético de Lili Leitão. Isso no
que tange a essa temática. No entanto, me estenderei a análises mais abrangentes
de alguns poemas da segunda vertente, tendo em vista que, a despeito de os
poemas amorosos atingirem um bom nível de realização estética, os poemas da
vertente jocoso-heterodoxa, por suas características singulares de desvios de
formas convencionais advindas do sincretismo da época do autor, efetivamente são
os que mais riqueza estratégico-formais oferecem ao analista da poesia.
Entendo e enfatizo como vertente
jocoso-heterodoxa um somatório de tendências de formas de composição no gênero
do soneto, ás quais se podem agregar temas não centrados em situações meramente
amorosas, mas em contextos gerais da vida, no cotidiano, em fatos pitorescos,
hilariantes, trágicos, soturnos, recursos metapoéticos, metalinguísitcos,
intertextuais, cenas emolduradas, paródias, anedotas. Em outras palavras,
trata-se de um grupo de sonetos que subvertem a tradição canônico-literária e se
dirigem a uma variegado universo que, pelas suas virtualidades de formas e de
técnicas e estratégias da linguagem, abrem flancos em direção a uma postura
poética cujos sintomas não mais têm quase a ver com o passadismo estreme ao
discutir a poesia de Sylvio Figueiredo.
Neste sentido, posso antecipar ser Lili Leitão
muito mais subversor do cânone literário do que seu companheiro de livro..Nos
poemas amorosos Figueiredo e Lili Leitão não assinalam diferenças de monta no
que se refere às form as métricas do verso. Ambos usam o verso decassílabo e o
alexandrino. Contudo, Lili Leitão vai além, compõe sonetos de redondilha maior,
como é exemplo o “Cromo”.Na leitura em voz alta, aduzo que Lili Leitão consegue,
em alguns poemas, alcançar efeitos rítmicas e musicais mais felizes do que
Sylvio Figueiredo. Por outro lado, segundo foi já salientado por Roberto S.
Kahlmeyer-Metens,[14] Figueiredo se mostra mais erudito, exibe mais bagagem
literária do que Lili , que é mais inventivo, espontâneo e possui maior
habilidade e maleabilidade do instrumental técnico-estratégico da arte do
verso.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE AMOROSA
Na ordem em que estão distribuídos os sonetos
amorosos, a seguir identifico os temas explorados por Lili Leitão:
a) O amor impossível (soneto
“Pequenina”);
b) A mulher inacessível (soneto “Quando ela
passa”);
c) A oposição amorosa entre o passado e o
presente (soneto “Recordação”);
d) A transcendência amorosa (soneto “Olhos
d’alma”);
e) O amor apenas acessível na forma poética
(soneto “Supremo brinde”);
f) O reencontro da felicidade (soneto “Nosso
amor”);
g) O amor desfeito pela morte (soneto “Noive
morta”;
h) O amor como sentimento mutável no tempo
(soneto”Noivos”);
i) Amor sensual (soneto”Contraste”);
j) Amor e erotismo (soneto “Súplica”);
l) A falência erótico –amorosa com o passar do
tempo
(soneto “Eu e tu”)
À vista da divisão acima, os temas amorosos em
Lili Leitão pouco se diferenciam do leque de temas dessa vertente em Sylvio
Figueiredo. O que os separam são alguns elementos de natureza
retórico-estilístico-semântica, conforme se pode verificar no soneto
“Pequenina”, no qual certos jogos de lexemas homônimos e homógrafos mostram-se
engenhosamente empregados na economia do poema. Para ilustrar, tomo o lexema
“Pequenina”, extraído do título do soneto, onde desempenha função
temática-nuclear no poema, notadamente se o leitor atentar para o aspecto
semântico, pois é a partir dele que o soneto adquire consistência estetica e
perfeição artesanal.
Um jovem bela e de porte pequeno é objeto da
admiração do eu lírico que a ama e por ela não é correspondido. Disso tem
certeza, como certeza tem de que nem mesmo ao nível do pensamento interior, do
amor sentido, há para ele qualquer esperança.
Todavia, como bom soneto de corte romântico, o
“eu lírico” faz da impossibilidade do amor físico, a possibilidade de um amor
platônico, quando reconhece estar aquém do poder da conquista do amor
carnal.
Uma plêiade de atributos de beleza cerca a
amada, atributos que ascendem até ao plano místico, ao proclamá-la “santa.
Vejam-se o 1º quarteto e o 1º terceto, respectivamente:
Pequenina, a formosa pequenina,
De pequenina boca e pés pequenos
É a deusa que idolatro, a púrpura
Constelação dos sonhos meus amenos.
[...]
Em parte, tem razão: - Como essa santa
Há de adorar-me com loucura tanta,
Sendo eu tão pobre e tendo pobre sina?
A repetição, por boa parte do poema do lexema
“Pequenina” (título do soneto), nome da amada, como substantivo próprio, seguido
de “pequenina”, substantivo comum, e de “pequenina”, adjetivo no sintagma
“pequenina boca”, a par da forma variante adjetiva no sintagma “pés pequeninos”,
reforça, do prisma do sentimento da amizade, a fragilidade desse sentimento
entre a amada e o pretendente desprezado. A reduplicação do desvalor, do ser do
eu lírico, através da enunciação “pequenino”, este último lexema, colocado no
fecho de ouro do soneto, concorre ainda mais para rebaixar a condição humilhante
em que, no poema, se encontra o eu lírico:
[...]
É pretensão demais, de louco amante,
Pois eu devo lembrar-me, a todo instante:
- Sou pequenino para Pequenina!
A reduplicação em número de sete vezes,
variando a grafia e a semântica do lexema liderado pela forma primeira do
titulo, e aliada à aliteração da palatal surda “p” no conjunto das ideias da
peça literária, não deixa de ocultar algo do texto enquanto fatura poética de
extrema ludismo linguístico e mesmo uma atmosfera patética de
auto-comiseração.
Convém, ademais, notar a dominância da palatal
“p”, que ainda se faz presente nos lexemas “pobre”(1º terceto, 3º verso), a
predisposição do poeta (e mesmo precocidade) para o relevo que Lili Leitão
atribui à linguagem sobre a linguagem, i.e., a metalinguagem. Releva recordar
que o humorista joga muito com o trocadilho, o inusitado da língua, a
anfibologia, como no caso da anedota ou da piada, que exigem certo esforço
mental para entender jogos de sentidos, empregos de nonsense e outros
expedientes que põem o ouvinte/leitor em estado de alerta à compreensão da
mensagem.
O tema da impossibilidade da conquista amorosa
por razões financeiras ou de nível social superior, caracteriza um soneto de
corte romântico.Recorde-se que a vida pessoal de Lili Leitão foi pontuada de
aperturas financeiras A relação entre Romantismo e biografia do autor é uma
questão polêmica recorrente envolvendo os liames entre autor e literatura.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE
JOCOSO-HETERODOXA.
Para a vertente jocoso-heterodoxa, escolhi como
objeto de análises quatro sonetos de poeta com os quais pretendo concluir este
ensaio: “Um poema”, dedicado à mãe do autor; “As fitas,” explicitamente
classificada por Lili Leitão como uma paródia ao soneto parnasiano “As pombas”
de Raimundo Correia; “Analisando” e “Na loja”.
“Um poema”, a começar do título, conota-se
primordialmente de motivos que combinam dois constituintes temáticos
fundamentais: o sentimento de amor materno e a velha questão da criação
literária – este ultimo sempre retomado por poetas e escritores, ensaístas,
críticos e teóricos da literatura. O primeiro constituinte motivacional do
sentimento profundo de amor à mãe não vem enunciado somente na superfície dos
lugares-comuns dirigidos à mãe do poeta.
Como se sabe, a mãe é símbolo primordial da
criação do homem na Terra, desde as referências bíblicas da criação do mundo, da
costela de Adão, da vida no Paraíso e da queda da inocência pelo pecado de Eva –
a primeira mulher , a que dará frutos para sempre, a mulher-símbolo da
fertilidade, da reprodução, do caminhar da humanidade e da perpetuação da
espécie.
O segundo constituinte motivacional, enquanto
houver a capacidade humana para criar Arte, será retomado pelos poetas e todos
os autores de outros gêneros literários e inelutavelmente conduzirá a dois
caminhos teóricos: o da inspiração, que é de procedência romântica, e o da
construção do poema ou outro gênero literário como resultante do trabalho
lógico, consciente, produto da imaginação, da emoção e do conhecimento técnico a
serviço da linguagem-objeto, do que os formalistas russos designaram como
literariedade.
Por conseguinte, na criação literária do soneto
e no correspondente desvelamento analítico do “Poema” reside a força-motriz da
essência do sentimento profundo do amor à mãe. Repare-se que, no desenvolvimento
dos versos tem-se a tensão dialética entre o que o eu lírico anseia concretizar
e a formalização poética no processo de construção pela escrita.
A dificuldade que se põe perante o eu lírico
estará entre conseguir escrever um poema de homenagem à mãe e o receio de que
não seja capaz de externar esse sentimento extremoso de forma ideal e
artisticamente compensadora, i.e., que esteja à altura da nobreza do ato da
escrita do poema.
O campo semântico do soneto é francamente
romântico, especialmente pelo desejo manifesto de louvar as virtudes maternas. O
esforço do eu lírico soa até com intensidade épica no quarteto inicial:
Tentei fazer um poema, em que pudesse
Despejar flores sobre o teu regaço,
Revelando o teu nome a cada passo,
Com todo o ardor que a inspiração me
desse.
No 2º quarteto, a dificuldade da comunicação
poética mais se intensifica quando o eu lírico se defronta com o elevado nível
de emoção, o qual se torna até obstáculo à realização do poema. Em outras
palavras, a emoção sufoca a razão, a ponto de, no 1º terceto, sofrer uma
interrupção do processo criativo:
[...]
Parei, porque nem sempre a pena exprime
Tudo que é puro e tudo que é sublime.
O 1º terceto mostra claramente um dos grandes
problemas da criação literária: a de que nem sempre a expressão comunicativa é
lograda pelo artista.
Neste diálogo silencioso entre o “eu” do poeta
e o “tu”, a destinatária da mensagem, a mãe do poeta, a confissão se reveste de
aparente sinceridade no sentido de que a obra literária virtualmente pode
atingir seu objetivo, só que no plano abstrato, no plano do pensamento. A função
conativa, em tom de desculpa pela impossibilidade de realização estético-emotiva
do poema reitera a contradição entre o que se construiu fisicamente como poema –
o soneto de título “O poema” – e o tumultuado coração romântico do poeta: Vale,
por fim, acrescentar que a chave de ouro do soneto em causa, longe de negar a
existência do poema a ser produzido, o confirma pela presença da enunciado do
discurso poético, ou seja, por todos os seus elementos configuradores : versos,
ritmas, estrofes, acentuação, métrica, sintaxe, imagens, metáforas, disposição
grafemática do poema de forma fixa, enfim, tudo distribuído no espaço que lhe é
próprio, que é o espaço físico, visual, da poesia:
[..]
Mas não te zangues, não, nem fiques
triste...
O poema que mereces, ele existe:
Ficou guardado no me coração!.
No soneto “As fitas”, claramente definido pelo
autor como uma paródia ao soneto “As pombas”, de Raimundo Correia,[15] famoso
vate parnasiano, ao explicitar o texto original do qual Lili Leitão faz um
exercício parodístico, ele dessacraliza todo o clima aristocrático do uso de
lexemas raros, solenes, “o lavor do verso” como queria Bilac por influência de
Gautier que, por sua vez, redundou no seu “Profissão de fé”, embora seja preciso
sublinhar um fato: Raimundo Correia, tendo sido parnasiano, não o foi nos
exageros formais e marmóreos deste estilo literário. Até chegou mesmo a
confessar certa hostilidade a essa forma de linguagem.
Tendo-se como princípio de que a paródia tanto
serve para descaracterizar criticamente a forma do texto original quanto se
emprega para prestar homenagem ao autor parodiado, na situação de Lili Leitão,
meu ver, e conhecendo-lhe alguns traços de sua poesia como de sua própria
personalidade inclinada ao humorismo, não é difícil concluir que sua paródia
decalcada do soneto “As pombas” mais se deve à sua habitual vocação
satírico-humorística – o prazer do jogo lúdico com a linguagem em si - que mais
explica histórica e socialmente o poeta Lili Leitão do que algum componente de
cunho corrosivo da paródia em si.
Apagando do texto de Raimundo Correia as
imagens e construções mais grandiosas no que diz respeito ao conteúdo de ordem
filosófica ou moral do soneto “As pombas”, as quais são inerentes ao
Parnasianismo, o poeta de Vida apertada manteve o essencial espécie de
vigas mestras compostas de palavras que indicariam as “marcas” do texto
original, que foram empregadas no texto parodiado, de que resultou a seguinte
figuração espacial :
Vai-se a primeira x x,
Vai-se outra mais ... mais outra xxx
x x vão-se, x x, apenas,
x x x x.
E x x x x x,
x x x x x elas, x,
Voltam todas x x x.
Também dos x x x,
x x x x x
Como x x x x.
x x x x x x x x Soltam
x, x x, x x voltam
e x x x não voltam mais !
Os símbolos representados por x constituem as
palavras do texto parodiado. A pontuação figurada é a empregada por Lili Leitão.
Pelo visto, os lexemas retirados do poema-fonte são reduzidíssimas ressaltando
que, no 3º verso do 11º quarteto, o lexema “apenas” que parece no texto de
Correia, aí foi deslocado, no soneto de Lili para o princípio do 4º verso deste
quarteto. Da mesma maneira, o esquema rimático obedece à mesma disposição no
texto parodiado.
Não pretendo neste estudo por ora examinar
pormenores da estrutura versificatória em Lili comparando-a, no âmbito do
soneto, com a de Raimundo Correia. Apenas posso antecipar que os dois sonetos se
realizam em versos decassílabos, nos quais o elemento rítmico e rimático em
ambos mantém rigor no discurso poético.
A grande diferença entre o texto de Correia e o
de Lili se patenteia na desconstrução do pensamento filosófico elevado do
primeiro, em que os sonhos idealizados pelos corações na adolescência são, mais
tarde, desfeitos, ao passo que, em Lili Leitão existe uma intencional
comportamento caricatural ligado à diversão. Na mudança de ambientes
completamente diversos de um soneto (“As pombas “) e outro ( “As fitas”), e dos
seres neles envolvidos, num os pombais com as suas pombas que deles partem e
voltam mais tarde; noutro, os cinemas que, em sessões de horários noturnos
diferentes, exibem velhos filmes assistidos por seus habitués noturnos.
A paródia tem sido um velhíssimo recurso
intertextual muito utilizado na história literária ocidental. Num capítulo sob o
título de “Limites da Intertextualidade”, da obra A retórica do
silêncio, o poeta e ensaísta Gilberto Mendonça Telles[16] enumera algumas
situações de relações formais e semânticas entre textos que guardam entre si
relações de semelhanças, contiguidades formais, semânticas, retóricas, que
implicam discussão de conceitos de texto-fonte e textos derivados, modificados,
influenciados, imitados, plagiados e até textos que se relacionam a um outro por
servirem como referência cultural, forma de diálogo ou chancela de uma
autoridade reconhecida e respeitada., tais são os exemplos de epígrafes,
prefácios, posfácios, manifestos, paródia, introdução ou apresentação de obras.
Mendonça Telles, nos exemplos enumerados por ele, os chama de “discursos
paralelos”.
O princípio da paródia se estabelece nesta
mudança, neste deslocamento, numa descida de tons, de ambientes cênicos, da
linguagem que da pompa retórica desce à vulgaridade coloquial, da anulação
praticamente do seu nível conotativo, da subtração das imagens finamente
elaboradas do texto-fonte. A paródia, no soneto de Lili Leitão atinge seu clímax
de rebaixamento moral-existencial quando, no último terceto, citado mais adiante
na conclusão desta análise, contrasta a ideia central dos sonhos juvenis
desfeitos do soneto de Correia com o lamento carnavalizado do gasto minguado dos
cinco tostões na compra das entradas ao cinema, num patético gesto de um
mendigo.
Neste aspecto, o soneto de Lili se enquadraria
nos três tipos de paródia da classificação de Joseph T. Shipley, os quais extraí
do citado livro de Mendonça Telles: [17]
1) A verbal, “ ... na qual a alteração de uma
palavra torna trivial uma peça literária:
2) A formal, “na qual o estilo e os
amaneiramentos de um escritor se usam como tema de zombaria. Estes dois níveis
são humorísticos;
30 A temática, “em que a forma e o espírito do
escritor são caricaturizados.”
Entre o tom de impassibilidade parnasiana e a
veia satírica de Lili a metamorfose, no tocante ao tema, rebaixa a linguagem, a
situação existencial de um “eu-lírico” que, além disso, sinaliza uma recorrente
situação da temática da obra humorística de Lili Leitão, de resto aludida
anteriormente neste trabalho: o problema da fome, das aperturas financeiras, o
que explica os seus desacertos de intelectual boêmio em constante combate
quixotesco contra os “tostões” que a vida madrasta lhe negou e como é exemplo
paradigmático o soneto em exame citado abaixo no seu último terceto :
[...]
Nas trevas da gaveta o timbre soltam,
Porém, noutra sessão, as fitas voltam
e esses cinco tostões não voltam mais!
O soneto “Analisando...” é bem curioso pelos
desvios estratégico-compositivos. Foge aos paradigmas poemáticos tanto dos
estilos literários conhecidos em que poderia se moldar como sobretudo pela
introdução de um breve diálogo. Mais se ajustaria a uma breve peça de palco de
revista. A conversa se trava entre um professor, o eu lírico, e uma
aluna.Veja-se o 1º quarteto do poema:
- Sei eu conheces bem a língua
portuguesa.
Vamos analisar um pouco uma oração.
Aí tens: “O nosso amor domina o n osso
coração”.
É um trecho bem comum, de máxima clareza.
Tudo é muito simplesmente desenvolvido, sem
rodeios nem artifícios retóricos, sem aparente poeticidade. Seria, a princípio,
um soneto apenas nos seus elementos extrínsecos com intenção de aliar a função
metalinguística à alusão do amor, lexema recorrente sobretudo no Romantismo.. O
soneto ganha em invenção, leveza e originalidade na medida em que joga, como
disse, com a forma de composição poética.
Aqui repousa em grande parte a significação
básica do soneto, assim como cria uma ambiguidade: saber se “o nosso coração”
ultrapassa as fronteiras de uma simples aula de língua portuguesa ou se o
pretexto da frase escolhida adrede como objeto de análise sintática esconde
alguma intenção de natureza sentimental entre mestre e discípula. Poesia é
plurissignificação, mesmo quando subentende ludismo, humor e irreverência –
recursos altamente iteratiavos e identificáveis a quem se familiariza com os
textos de Lili Leitão.
A atmosfera do soneto segue sem voos poéticos.
Apenas toma forma poemática para mostrar como a construção de um soneto pode-se
valer de um pequeno diálogo teatral que, servido dos protocolos técnicos do
verso, do poema, consegue fazer-se poesia. Alguém já disse que a poesia moderna
está em todas as coisas. Dos grandes e pequenos temas ou mesmo de tema algum,
Girando em torno de si mesma, a poesia ainda encontra amplo espaço para ser
menos tema, menos assunto e mais literatura, mais linguagem.
A ruptura que o Modernismo de 22 desencadeou,
no que dizia respeito a tema, formas e linguagens próprias do conservadorismo
literário até pelo menos a fase epigônica da produção poética brasileira, fez
emergir uma nova postura anti-aristocratizante e, aos poucos, foi substituindo o
uso de vocábulos solenes por vocábulos fora dos circuitos e temas elitistas e
eruditos, como seriam dois bons exemplos um poema de Manuel Bandeira,[18] o que
estaria dentro da nova postura bandeiriana que se iniciou com a sua conhecida
“Poética”, da obra Libertinagem (1930) e ainda nesta mesma direção com
o poema “Nova Poética”, da obra Belo Belo (1948)
Para os objetivos da minha análise do poema “A
loja” de Lili Leitão recorro a uma fonte de comparação e de referência devido a
pontos comuns na natureza do material empregado na composição do soneto de Lili
e daquele poema de Bandeira extraído de uma notícia de jornal. Reporto-me ao
“Poema tirado de uma notícia de jornal,”[19] do mencionado livro
Libertinagem, obra editada já em plena ebulição modernista . Bandeira
já havia aderido às formas modernistas da poesia, com o livro O ritmo
dissoluto (1924), que anunciava um divisor de águas de sua poética ainda
presa aos cânones tradicionais.
O poema criado a partir de uma notícia de
jornal exemplifica aquele preceito proclamado pelas vozes modernistas segundo o
qual não existem temas especiais para a poesia. Esta se pode achar em qualquer
espaço físico ou mesmo em qualquer fonte não necessariamente “ poética.”.
Ao utilizar uma matéria narrativa no espaço
poético, Bandeira transfunde o prosaico em poético e, por cima disso, ainda
constrói um pequeno poema criativo, com traços até pré-concretistas, porquanto a
organização estrófico-espacial por ele empregada produz emoção e apelo
visual-espacial (os verbos “Bebeu”, “Cantou”, “Dançou” verticalmente dispostos)
fruição lírica e até agrega ao lirismo uma dimensão trágica. Não há nada
semanticamente no poema que na superfície faça o leitor pensar estar diante de
poesia. Só pelo poder da manipulação das imagens, dos artifícios
“técnico-compositivos”, como diria Aguiar e Silva [20], ao sintetizar as ideias
de Paul Valéry sobre o complexo ato de escrever um poema, aproveitando um
assunto digno de matéria sensacionalista de jornal, consegue o lírico de
Itininerário de Pasárgada realizar um poema de impacto e de natureza
eminentemente poética.
No soneto “A loja” de Lili, consta, todavia,
observar que o autor, apropriando-se de uma anedota, a qua, em certa medida, l
se alinha entre todas aquelas formas escritas (ou orais) como a piada, a ironia,
a sátira, a zombaria, o chiste, a transfere para uma forma poética
tradicionalmente de natureza canônica, sem que, no trabalho de elaboração
criativa e original, o soneto deixe de perder sua intenção humorística. Já no
exercício da paródia, cujo exemplo é o soneto “As fitas”, a transferência se
concretiza diretamente de um poema de formalização séria que, pela paródia,
provoca o estranhamento de natureza cômica. Neste caso, valeria esta citação de
André Jolles: [21]
[...] Certas formas de zombaria – penso na
paródia - oferecem uma certa semelhança com a imitação. Elas repetem aquilo de
que zombam, mas sublinhando, pelo cômico, o que continha os germes de um
desenlace; reptem-no de uma maneira que o desfaz como um todo.
Mantidas as proporções devidas, o poema “Na
loja” presta-se a comparações pertinentes. Se no poema de Bandeira há uma
“notícia” de jornal, e no de Lili textualmente se declara a origem da fonte do
tema, uma “anedota”, mas nem um nem outro reproduzem a fonte, já que ambos os
poemas se apresentam feitos diante do leitor.
O material em ambos é apropriado de uma
realidade não–poética. Em Bandeira, João Gostoso é o protagonista da
“narrativa”, que se suicida se jogando nas águas da Lagoa Rodrigo de Freitas. No
soneto de Lili, a personagem, uma jovem “meiga” e bonita”, entra numa loja em
companhia da avó a fim de comprar uma fita de cetim azul-marinho. Ao perguntar
pelo preço, o vendedor, um galanteador, não se demora e como resposta lhe diz
que o preço seria “um beijo” para “cada metro”.
A mocinha se queixa do preço, mas acaba pedindo
ao vendedor que “lhe corte dez metros”. O caixeiro, prelibando o prêmio em forma
de dez beijos, rápido, exultante, atende ao pedido da jovem.
No momento de pagar, em chave de ouro, a
mocinha malandramente dele se despede e conclui com essa tirada imprevisível : a
avó pagaria a conta:
[...]
- Pronto, formosa! O pagamento, agora...
E a moça lhe responde, sem demora:
- Adeus! Quem paga as compras é vovó!.
Na leitura dos poemas humorísticos de Lili
Leitão, a chave de ouro mantém regularmente um insuspeitado final cuja
consequência por parte do receptor da mensagem é o humor, a galhofa, o intento
carnavalizado.
Tomando o ensaio teoricamente como tentativa de
não esgotamento das virtualidades estéticas dos dois poetas, Sylvio Figueiredo e
Lili Leitão, nos aspectos da pesquisa ora concluída, posso reafirmar que a obra
de ambos em muitos ângulos mostra uma certa unidade poética, seja pelos temas
dominantes em Sonetos , seja pelos seus valores literários.
Este estudo não confirma absolutamente serem os
sonetos reunidos de qualidade secundária ou dignos do limbo, posto que, em
termos de avaliação crítica, diria que Lili Leitão, por ser dotado de maior
talento inventivo e de dispor de mais recursos estratégicos compositivos , por
vezes atinge um nível de qualidade superior a Sylvio Figueiredo, malgrado este
dispor de mais sólida formação cultural, segundo já referi neste trabalho.
Por outro lado, a leitura de ambos bem merece
ser objeto de maior reflexão e, no meu entender, ainda se presta tanto aos
rigores da crítica de hoje, quanto maior divulgação e entre o público
ledor.
O passado da literatura é também um modo de
inscrição histórico-social que ao presente importa como conhecimento,
experiência e acumulação do saber. Incursionar pelo pensamento poético, imagens
e formas de linguagens destes dois poetas da Belle Époque daqueles
recuados tempos das três décadas do século passado é uma oportunidade que o
leitor não pode perder de vista.
Ainda que distante do seu contexto
literário-periodológico, os Sonetos podem bem ainda propiciar um proveitoso
momento de leitura para os amantes de poesia, sobretudo porque – releva lembrar
– a poesia destes dois poetas honram a intelectualidade boêmia e inesquecível
dos frequentadores noturnos do célebre Café Paris.
NOTAS
[1]TEIXEIRA NETTO, Wanderlino. Lili
Leitão e a Roda do Café Paris. In: LEITÃO, Luiz. Vida apertada –
sonetos humorísticos. 2 ed. crítica de Roberto S. Kahlmeyer-Mertens. Niterói:
Nitpress, 2009, p. 125-128
[2]Op. cit., nota 1.
[3]Ver o” Ensaio de Apresentação” de Roberto S. Kahlmeyer-Mertens, organizador do Sonetos, de Sylvio Figueiredo e Lili Leitão, livro prometido para publicação este ano pela editora Nitpress, Niterói, RJ.
[4]Todas as citações de versos de Sylvio Figueiredo e de Lili Leitão, para os propósitos deste estudo, foram por mim atualizadas de acordo com a grafia em vigor.
[5]MATOS, Gregório de Obras de G. de M. – IV – Satírica, vol I. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1930, p. 137-142.
[6]EAGLETON, Terry. How to read a poem. Malden, MA. USA: Blackwell Publishing, 2008., p. 165..
[7].SILVA, Da Costa e. Poesias completas.2 ed. rev..e anotada por Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: LIVRARIA Editor Cátedra; Brasília: INL/MEC, 1976, p. 177-186.
[8]Cf. RICIERI, Francine. Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. Seleção e notas de Francine Ricierei. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009,. Ver página 24
[9]RICIERI, Francine. Op. cit., ibidem.
[10]BANDEIRA, Manuel. “Os sapos”. In ---Poesia completa e prosa. Vol. único. Org. pelo autor.. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1986, p. 158-159.
[11]Ver CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT. Dicionários de símbolos. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994. Ver os verbete “Abelha”, p.3-4 e “Corvo”, p.293- 295.
[12]Apud BURTIN-VINHOLES, Suzanne. Cours de français. 1er. Année. Porto Alegre: Globo Editora, s.d., p. 244-245.
[13]Confira o poema no original em francês: Sois-moi, fidèle, ô pauvre habit que j’aime!/Ensemble nous devenons vieux/Depuis dix ans, je te brosse moi-même/Et Sócrates n’eut pas fait mieux./Quand le sort à ta mince étoffe/Livrait de nouveaux combats/Imite-moi, résiste en philosophie:/Mon viel ami, ne nous séparons pas./Je me souviens, car j’ai bonne mémoire/Du premier jour ou je te mis,/C’était ma fête, et, pour comble de gloire,/Tu fus chanté par mes amis./Ton indigence que m’honore,/ne m’a point bani de leurs bras,/Tous ils sont prêts à nous fêter encore :mon vieil ami, ne nous séparons pas.
[14]Cf. nota 3 deste estudo.
[15] CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Vol. 1. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1948, p. 38.
Eis a íntegra do soneto de Raimundo Correia: Vai-se a primeira pomba despertada.../ Vais-e outra mais... mais outra... enfim dezenas / De pombas vão-se dos pombais, apenas/Raia sanguínea e fresca a madrugada.. //E à tarde, quando a rígida nortada/Sopra aos pombais de novo elas, serenas,/Ruflando as asas, sacudindo as penas,/Voltam todas em bando e em revoada...//Também dos corações onde abotoam,/Os sonhos, um por um, célebres voam,/Como voam as pombas dos pombais //No azul da adolescência as asas soltam,/Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,/E eles aos corações não voltam mais...
[16]TELLES, Gilberto Mendonça. A retórica do silêncio. – tória e prática do texto literário. São Paulo: Cultrix/INL?MEC, 1979, p. 21-37. Para uma breve e consistente estudo sobre a paródia , assim como da paráfrase outros temas correlatos, seria bom consultar o livrinho Paródia, paráfrase $ CIA, de Affonso Romano de Sant’Anna. 5 ed. São Paulo: Ática, 1995, especialmente os capítulos 3, p.11-13, e o capítulo 12, p.6567 sobre o conceito de “Intertextualidade”, no qual desenvolve um brevíssimo e útil comentário sobre o “Poema tirado de uma notícia de jornal ”, de Manuel Bandeira.
[17]TELLES, Gilberto Mendonça. Op. cit., p. 28
[18]BANDEIRA, Manuel. Op. cit., p. 207, referente ao poema “Poética”; p. 287, referente ao poema “Nova poética”.
[19] Idem , p. 214. Por falar no poema de Bandeira “Poema tirado de uma notícia de jornal”, conviria consultar uma análise monumental que Davi Arrigucci Jr desenvolve sobre esse poema na seção 3 sob o título “Poema desentranhado” da Primeira parte da obra A poesia de Manuel Bandeira: humildade, paixão e morte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 89-119.
[20] SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. Volume 1. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1984, p. 216.
[21] JOLLES, André. Formas simples. Trad. De Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 214.
Referências bibliográficas
ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa – volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1986.
BARROS, Luiz Antonio (org.). Viagem literária através do Estado do Rio . Niterói: Nitpress, RJ., 2010.
BURTIN-VINHOLES, S. Cours de français. 1er Anné. Porto Alegre: Globo Editora, s.ed.
CAMPOS, Paulo Mendes. Forma e expressão do soneto.Os Cadernos de Cultura. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação. Ministério da Educação e Saúde. Dept. de IMP. Nacional, 1952.
CUNHA, Celso. & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985.
CASTEX, P.G. &; SURER,P. Manuel des études littéraires francçaises. XIX siècle. . Paris: Librairie Hachette, 1966.
EAGLETON, Terry. How to read a poem. Malden, MA , USA: Blackwell Publishing, 2008.
---------------. The function of critcism. – from the Spectator to Post structuralism. Thetford, Norfolk: The Thetford Press Ltd., 1984.
JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
MATOS, Gregório de. Obras de G. de M, IV – Satíricas, vol. I. Rio de Janeiro: Ed. da Academia Brasileira de Letras, 1930.
LEITÃO, Lili. Vida apertada. – sonetos humorísticos. 2 ed. edição crítica organizada por Roberto S. Kahlmeyer-Mertens. Niterói, RJ: Nitpress, 2009
MEGALE, Heitor. Elementos de teoria literária. 2 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 6 ed. São Paulo: Cultrix, 1992.
PORTELLA, Eduardo. Teoria literária.(dir.) Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 42, 1979.
REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. – Introdução aos estudos literários. 2 ed. Coimbra: Almedina, 1999.
RICIERI, Francine ( org. notas, prefácio de fixação de textos). Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. São Paulo : Companhia Editora Nacional, : Lazuli Editora, 2007
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & CIA. 5 ed. São Paulo: Ática, 1995.
SILVA, Da Costa e. Poesias completas. 2 ed. Rev.. e anotada
Assinar:
Postagens (Atom)